Humor refinado

"Nostalgias canibais", de Odorico Leal, reúne cinco contos marcados por originalidade e apuro com a linguagem
Odorico Leal, autor de “Nostalgias canibais”
01/07/2025

Vencedor do Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) na categoria contos, Nostalgias canibais marca a estreia de Odorico Leal como ficcionista. O livro reúne cinco narrativas repletas de humor, todas ambientadas no Brasil e a maioria com tons de realismo fantástico.

A primeira delas, Paraíso canibal, conta, ao longo de 30 páginas, uma história que atravessa séculos e remete a obras como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Forrest Gump, de Winston Groom, mais conhecido a partir da adaptação cinematográfica dirigida por Robert Zemeckis e protagonizada por Tom Hanks.

A história apresenta um indígena adepto ao canibalismo, não com o objetivo ritualístico de absorver características positivas de outra pessoa, como a força ou a coragem, mas simplesmente porque gosta — e muito — de comer carne humana. Num primeiro momento, ainda na época de colonização do Brasil, convive com Padre Mundim, um homem que parece bondoso e carismático aos olhos do personagem-narrador, a ponto de fazer com que o indígena lute ao máximo contra a sua vontade de devorar o religioso.

Mais à frente, no período imperial, o protagonista se junta ao amigo Oliveira no trabalho com uma das grandes invenções daquele tempo: a fotografia. Os dois organizam exposições, criam um ateliê, fazem sucesso e até mesmo chamam a atenção do imperador.

Na aventura seguinte, encontra na figura de Ernesto uma espécie de guru dos negócios, investe em uma bebida gaseificada de açaí e enriquece. Esse momento se passa no período em que Getúlio Vargas foi presidente do Brasil e é o trecho em que os acontecimentos históricos nacionais e internacionais — como a Segunda Guerra Mundial — impactam a narrativa de forma mais direta.

O conto ainda traz outros enredos e se aproxima dos dias atuais, pouco a pouco, história a história, numa dinâmica que acena à ideia de eterno retorno. Os capítulos do conto trazem situações envolventes e um humor refinado, além de referências culturais e políticas de cada época.

Embora tenha mais páginas que o padrão do conto contemporâneo e possa até mesmo ser classificado como uma novela, Paraíso canibal tem potencial para se estender e ganhar uma nova versão, como romance. Afinal, tem uma ideia central capaz de permitir que esse personagem tão interessante viaje pela história do Brasil, interaja com figuras reais e fictícias e deixe sua marca por onde passar.

Os gatos e o feio
Se o primeiro conto reúne uma série de situações engraçadas, o segundo — Os gatos — leva o humor a um nível mais escrachado, ao apresentar Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, dois gatos batizados com heterônimos de Fernando Pessoa.

A dupla vive em um apartamento com a dona, Andressa, e discute sobre várias questões ligadas ao lugar onde moram. Ambos os gatos são ácidos e sarcásticos, o que torna os diálogos hilários e provocativos. Ao longo da narrativa, os bichanos acreditam que eles e Andressa serão despejados e começam a traçar novos planos, apesar do evidente apego ao apartamento.

Em meio a conversas debochadas e comentários cruéis sobre os humanos que os cercam, os gatos referenciam o cinema francês e até mesmo têm discussões relevantes sobre o uso de palavras como “Éden”.

Nessa breve narrativa, Odorico Leal consegue utilizar os diálogos para apresentar as características psicológicas de cada gato, como se de fato os animais absorvessem algumas das qualidades mais marcantes dos dois heterônimos de Pessoa. Dessa forma, o humor presente no conto ganha outros significados, embora, acertadamente, não precise deles para funcionar.

O terceiro conto, História da feiura, gira em torno de um homem de trinta e poucos anos que se enxerga como alguém muito feio. O tema é constantemente abordado em suas sessões de análise e ganha novas camadas quando o personagem revisita traumas de infância e se depara com um exemplar da obra de Umberto Eco que dá título ao conto.

Em meio à intensa preparação para um concurso público e o adoecimento da mãe, o protagonista se aproxima de Oriana, a beldade do curso preparatório. A garota recorre a artigos científicos para tentar convencê-lo de que, no fim das contas, ele não é tão feio assim.

Entre piadas autodepreciativas de seu narrador e referências a Kafka, o conto traz humor sutil e discussões pertinentes sobre procedimentos estéticos, transtornos disfórmicos e redes sociais, sem cair em discursos óbvios ou prolixos.

Getulinhos
A febre dioneia tem o enredo mais convencional de todo o livro, o que não significa que o conto é menos interessante. Na história, uma jornalista entrevista um escritor a respeito do novo fenômeno político do país: o Getulinhos.

O autor Eduardo Aguardi age como muitos escritores na vida real (qualquer pessoa que já tenha trabalhado com jornalismo cultural sabe o que isso quer dizer): é amargurado, presunçoso, saudosista e evasivo. Saboreia cada frase que sai de sua boca e não se enxerga como mero ficcionista, mas sim como um grande intelectual de seu tempo.

Mais uma vez, Odorico Leal recorre à fina ironia para construir situações ácidas e divertidas, ao mesmo tempo em que demonstra desenvoltura para trabalhar diálogos arrebatadores.

O último conto, O jardineiro, é o menos interessante da coletânea. Traz enredo com diversas subtramas (a maioria funciona bem, vale dizer), mas a história não soa como parte do universo de Nostalgias canibais, ainda que referencie diretamente outros contos do livro.

A trama foca em um músico que namora Mira, uma mulher que viaja o tempo todo. A rotina do protagonista se divide entre cuidar do jardim da parceira, irritar-se com uma vizinha barulhenta e trabalhar em seu estúdio na gravação do disco de um pastor que tenta convertê-lo. Ao mesmo tempo, acompanha a tensão crescente entre dois grupos políticos no Brasil — o Getulinhos e o Secto — e reencontra o amigo Vina.

Pensado inicialmente como um romance, o conto está longe de ser ruim ou de comprometer a experiência do leitor, mas não está à altura das quatro narrativas anteriores, todas marcadas pela irreverência e pela sutileza de um escritor autêntico e bastante criativo.

Elegância e rigor
Com pouco mais de 100 páginas, Nostalgias canibais não é apenas o melhor livro de contos de 2024, mas também uma das estreias literárias mais instigantes dos últimos anos. A escrita de Odorico Leal é madura, imprevisível, hilária, sensível e inteligente. Ao longo de seus contos, o autor demonstra que trabalha com elegância e rigor tanto no que se refere à linguagem quanto o que diz respeito ao conteúdo.

Em tempos em que muitos livros se parecem entre si, o escritor traz frescor à literatura brasileira, ao demonstrar que o inusitado também pode funcionar e que o humor satírico não saiu de moda.

Nostalgias canibais
Odorico Leal
Âyiné
110 págs.
Odorico Leal
Nasceu em Picos (PI), em 1983. É doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo. Atua como professor, crítico literário e tradutor, tendo vertido para o português obras de Hisham Matar, Toni Morrison e Abraham Verghese. Nostalgias canibais é seu livro de estreia.
Bruno Inácio

É jornalista e escritor. Autor de Desprazeres existenciais em colapso (contos) e Desemprego e outras heresias (romance)

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