Meu amigo Sérgio “Pareja” foi uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Lembro-me com imensas saudades de nossos papos de boteco, os melhores que jamais tive na minha vida. Foi numa destas reuniões à base de muita cerveja que, há quase dez anos, ele anunciou que abandonaria a faculdade para voltar para a sua terra natal. Nunca mais nos vimos desde então. As notícias que me chegam são de que Pareja está no Japão trabalhando como operário. Um desperdício.
Foi graças a ele que conheci Shakespeare. Eu já tinha ouvido falar do bardo, claro, mas nunca tinha me embrenhado na obra dele. Naquele tempo, minha estante dispunha de uma edição de Romeu e Julieta e outra do Hamlet. Já havia tentado ler a primeira, sem sucesso. Eu era um adolescente obcecado pelo realismo dos bandidos dos romances que analisam sociologicamente a sociedade. Shakespeare, portanto, não me dizia respeito.
Meu convívio com Pareja se intensificou depois que, juntos, montamos o jornal-mural “O Hiperbóreo” — um marco na faculdade de comunicação da UFPR. Ali expúnhamos nossas certezas (e éramos tão cheios delas!) e nossa revolta tipicamente juvenil. Nunca vou me esquecer da leitora que corou ao ler um poema obsceno de Sérgio.
Pois foi nesta época que li, pela primeira vez, Hamlet. Por insistência dele, Sérgio. Peguei o livrinho na minha estante e comecei. Depois parei. Retomei novamente. Não estava entendo nada. Hoje eu sei que a tradução era muito ruim, cheia de rococós dispensáveis, mas na época eu não sabia nada disso. Deixei o livro de lado logo depois de passar pelo primeiro solilóquio de Hamlet. Eu estava cheio daquele negócio de ser ou não ser.
Alguns dias depois me encontrei com Pareja, que me perguntou sobre o livro. Fui atacando Shakespeare, dizendo que ele não era tão bom assim. Lembro-me exatamente do meu argumento fatídico, dito entre as árvores num dia de sol e frio: “Shakespeare só é considerado genial porque disse o óbvio antes dos outros”.
Pareja só riu. Não me desprezou, não me xingou, não me atacou. Só riu. E aquele sorriso era cheio de compreensão. Pena mesmo que Pareja esteja no Japão apertando parafusos.
Muito tempo depois, motivado sabe-se lá por quê, reli Hamlet. Desta vez numa tradução do Millôr Fernandes. Pareja já havia voltado para a sua terra natal, Cruzeiro do Oeste. E eu já não era a mesma pessoa. Dois ou três anos bastam para que as certezas caiam por terra uma a uma. Entre a primeira e a segunda leitura de Shakespeare, perdi a conta das vezes em que corei diante da minha própria ignorância. Parece que é para se curar desta doença que a gente vive.
Millôr me deu o que eu queria e precisava na época: Hamlet sem complicação. A tradução privilegia certa coloquialidade. Não há inversões demasiadas nem tampouco estruturas gramaticais arcaicas. Tudo é muito popular sem ser vulgar.
Aquela leitura me lembrou Pareja, é claro. Tanto que me esforcei para conseguir localizá-lo. Eu queria agradecê-lo e, ao mesmo tempo, pedir desculpas pelo comentário feito há alguns anos, sobre a obviedade de Shakespeare. O que eu não sabia e hoje sei é que a descoberta do óbvio é a busca de todo grande artista. Poucos conseguiram e menos ainda conseguirão. É claro que o gesto de pedir desculpas por um comentário feito na serena ignorância de outrora, que não feriu ninguém, é um exagero. Assim sou eu.
Minha história com Hamlet não se extinguiria com a leitura da peça na tradução de Millôr. O tempo passou. Em mim despertou a cobiça de uma leitura no original. Por duas ou três vezes peguei o livro na Biblioteca Pública do Paraná, mas não fui além dos primeiros versos. Depois, com o lançamento de Shakespeare — A invenção do humano, de Harold Bloom, cogitei mais uma vez fazer uma visita à corte dinamarquesa, mas por algum motivo desisti.
Passei os últimos dois anos procurando coisas boas para ler. Na dúvida, recorri a vários clássicos, mas não sei por que deixei Shakespeare de lado. Nunca me ocorreu, nestes dois últimos anos de busca desesperada por uma centelha, que ela pudesse estar em Shakespeare. Li um livro atrás de outro, atrás do óbvio, quando bem poderia ter me deleitado na fonte.
A oportunidade surgiu com Harold Bloom, mais uma vez. Minha opinião sobre o velhinho é conhecida de todos: admiro Bloom por seu apego à idiossincrasia. Ele é o tipo de homem com quem eu gostaria de jantar e conversar sobre livros. Ao que parece, Bloom segue um pouco a idéia do Millôr: “Eu só gosto do que eu gosto”. E eu acho isso louvável, sobretudo numa época em que se prega tanto a identificação coletiva. Bloom não precisa se auto-afirmar recorrendo, para tanto, a frases feitas; ele as compõe sem medo de errar e sem medo de ser atacado por suas escolhas individuais. Talvez por isso cause tanta polêmica no Brasilsinho.
Sempre comprei os livros de Bloom na época do lançamento. Por algum motivo, porém, este Hamlet — Poema ilimitado, não me atraiu. Eu o vi uma ou duas vezes na estante da livraria, mas nem dei bola. Acho que eu não estava muito a fim de ler mais um ensaio de Bloom sobre Shakespeare. A leitura de mais de mil páginas de Shakespeare — A invenção do humano é de cansar qualquer um.
Tampouco me lembro por que comprei o livro. Foi numa arrumação de rotina da minha estante que o descobri lá, virgem e ansioso. Sem nada para fazer e sem vontade nenhuma de ler depois de uma tragédia pessoal, peguei o livro e me deixei levar pelas palavras de Bloom. Aos poucos fui me envolvendo em sua conversa absolutamente doce. Estranho usar este adjetivo — doce — para um livro sobre literatura. Mas é o que ele é: doce. Bloom não lembra em nada a prosa ininteligível da nossa suposta inteligência. Ainda que a tradução tente tornar as frases mais pomposas e cheias de vírgulas que cortam qualquer fluência em português.
Não convém comentar aqui os comentários de Harold Bloom. Seria ridículo. Já disse que a grande qualidade de Bloom é ser idiossincrático e nada dogmático. Portanto, lê-lo é um exercício também de tolerância. O aprendizado da literatura, sugere Bloom, passa necessariamente pela aplicação de um senso estético pessoal — quando ele existe.
Foi, pois, por causa de Bloom que acabei por reler Hamlet, há apenas alguns dias. A editora Objetiva, talvez sabendo que leitor brasileiro não gosta de comprar livro fino, resolveu agregar ao ensaio de Bloom a tragédia na íntegra, numa tradução de Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça.
É uma tradução mais cheia de pompa que a de Millôr Fernandes, lógico. Tem mesóclise e inversões que dão um nó na cabeça da gente. Nada disso chega a comprometer a compreensão do espetáculo shakespeariano. O que irrita é mesmo a necessidade da tradutora de mexer nas frases mais famosas da peça, ornando-as com uma originalidade que simplesmente não funciona. Por exemplo, a famosa “ser ou não, eis a questão” vira, pela pena da tradutora, “ser ou não ser, esta é que é a questão”.
Desta vez eu me detive menos nos detalhes e parti para uma compreensão mais abrangente da peça. Com a ajuda de Bloom, ficou mais fácil. E, de algum modo, eu me tornei muito próximo de Hamlet. Talvez por ele ser bastante exagerado, assim como eu; e talvez por ter um senso de justiça muito pouco comedido. Dizem que a graça de Hamlet é que todos nós somos capazes de nos vermos no personagem, mas a verdade é que só desta vez é que me senti identificado.
A verdade é que tragédia de Hamlet bagunçou a minha vida. Correu de lá para cá na minha alma, levantando poeiras que eu julgava já assentadas todas. Arrancou de mim confissões inimagináveis de culpa. Me libertou de pecados que eu tomava por meus. Dizer que sou outro homem depois da primeira leitura de Hamlet pode soar mais uma hipérbole, das tantas que fazem parte do meu dia. Mas, desta vez, estou sendo é econômico.
Tudo aquilo que eu julgava óbvio eu reaprendi. Foi como me descobrir um ser humano novamente. Foi como se eu tomasse um porre do tal do sopro de vida. Sem aquele óbvio de que fala Shakespeare parece ser impossível viver. Eu não entendo, sinceramente, como pode tanta gente viver na ignorância do óbvio. Fico pensando, às vezes, em quantos males não nos seriam poupados se o óbvio fosse assim tão óbvio quanto parece. Se tivéssemos assimilado mesmo o óbvio.
* * *
A primeira coisa que chama a atenção em Hamlet é a melancolia do príncipe. Hoje estamos acostumados aos depressivos que nos rodeiam, mas no século 17 a melancolia era vista como uma verdadeira falha de caráter. O ar soturno de Hamlet nas primeiras cenas da peça é algo de dar medo. Eu sempre achei que, se o fantasma não aparecesse, ele se mataria. Hamlet parece fazer aquele tipo frágil, que se realiza mais pela idéia do que pela ação. De certo modo, o fantasma atua como um antidepressivo e um estimulante, fazendo com que o príncipe intelectual abandone as palavras (na célebre cena em que Polônio o encontra lendo e Hamlet desdenha: “Palavras, palavras, palavras”) e pegue em espadas. No final das contas, é o mesmo tratamento dado hoje aos depressivos.
O problema, neste caso, é que a alma atormentada pela relação incestuosa da mãe, pela perda do pai e pela felicidade do tio jamais vai reagir bem a qualquer estímulo. Apesar de ser um intelectual, um homem de suposta razão, é interessante perceber como a melancolia das primeiras cenas se liga à violência das últimas. A explosão de fúria de Hamlet começa com o sermão que passa em Ofélia e culmina com a carnificina final. Mas tudo tem origem na tristeza extrema e, claro, na visão e revelação do fantasma. Eu acredito, porém, que Hamlet só viu o fantasma do próprio pai porque já estava suficientemente deprimido. Esta minha teoria, porém, não explica como os guardas e Horácio também viram o fantasma do rei. Mas daí também é querer explicações demais.
Acredito que hoje em dia a leitura desta melancolia de Hamlet lhe dê um ar de vítima. Infelizmente, não tenho travado muitos diálogos com leitores de Hamlet, simplesmente porque eles são escassos. Mas acredito que todos tenham uma reação parecida nas primeiras cenas: sentem pena do príncipe. Realmente, Hamlet está quase pedindo colo. É de dar dó. Mas novamente eu chamo a atenção para um deslocamento histórico que se faz necessário nesta parte da peça: a melancolia era vista, antigamente, como desvio grave de caráter. Por isso, é possível que as platéias nos séculos anteriores tenham visto em Hamlet nada menos do que um vilão. Sua reação absolutamente canalha com relação à pobre Ofélia reforçaria ainda mais a idéia do príncipe como um homem com uma missão nobre, mas ainda assim não desprovido de defeitos.
Seria uma mudança interessante na idéia do herói planificado, isto é, pautado por ideais nobres e ação mais nobres ainda. Ora, Hamlet é vingativo — o que pode haver de nobreza nisso? E é melancólico a ponto de perder a razão e de pôr em risco todo o reino de Elsinor — há defeito mais grave num monarca? Esta verdadeira confusão, em Hamlet¸ é o que deixa a peça mais interessante. Afinal, nossa estima ou repulsa pelo príncipe variam de cena para cena. Se pensamos nele como um coitadinho no começo, depois nos enojamos com o modo rude como trata Ofélia; adiante, queremos que ele acabe com o rei — e nem nos damos conta de que Hamlet está cometendo uma carnificina em nome das palavras de um fantasma! Aqui cabe a pergunta: o quanto da nossa repulsa por Cláudio não é motivada pela revelação do fantasma, e somente por ela?
Para mim, a parte mais tocante de Hamlet continua sendo o longo conselho que Polônio dá a seu filho Laertes, que parte para a França. Primeiro porque é o único momento da peça em que sinto certa estima por Polônio. Segundo porque aquele trecho parece resumir todo o ensinamento de Montaigne em seus Ensaios — fonte da qual bebo esporadicamente, quando estou em busca de uma opinião de longas barbas brancas.
Vale a pena reproduzir aqui o trecho. Eu diria que também vale a pena emoldurar e recitar para o filho ainda dentro do ventre da mãe. Os conselhos de Polônio substituem absolutamente todos os livros de auto-ajuda que estão nas estantes das livrarias neste exato momento (que, aliás, são apenas uma versão vulgaríssima de Montagine). Shakespeare só não explica como adequar nosso temperamento àquilo que sabemos certo, ainda que para isso desdenhemos. Eu leio os conselhos de Polônio e me encho de uma sabedoria alegre que, no entanto, se esvai no primeiro erro que cometo, talvez por influência dos astros. Os grifos abaixo são meus, é claro:
(…)
Guarda estes poucos lemas na memória:
Sê forte. Não dês língua a toda idéia,
Nem forma ao pensamento descabido;
Sê afável, mas sem vulgaridade.
Os amigos que tens por verdadeiros,
Agarra-os em tu´alma em fios de aço;
Mas não procures distração ou festa
Com qualquer camarada sem critério.
Evita entrar em brigas; mas se entrares,
Agüenta firme, a fim de que outros te temam.
Presta a todos ouvido, mas a poucos
A palavra: ouve a todo a censura,
Mas reserva o teu próprio julgamento.
(…)
Nem sejas usurário nem pedinte:
Emprestando há o perigo de perderes
O dinheiro e o amigo; e se o pedires,
Esquecerás as normas da poupança.
Sobretudo sê fiel e verdadeiro
Contigo mesmo; e como a noite ao dia,
Seguir-se-á que a ninguém serás falso.
O solilóquio mais famoso de Hamlet, aquele do “ser ou não ser”, caiu numa vulgaridade obscura. Hoje em dia qualquer pessoa é capaz de identificar nas palavras “ser ou não ser” o autor, mas poucos, pouquíssimos mesmo, são capazes de extrair da questão algo mais do que uma dúvida retórica. A mim a vulgaridade do trecho sempre me incomodou. E, infelizmente, serviu como uma barreira para um entendimento maior do assunto. Até hoje.
Eu percebo que as pessoas são incapazes de passar por esta parte sem achar que já a conhecem. Eu mesmo fiz isso quando li a peça pela primeira vez. E da segunda. O problema, neste caso, é que compramos uma interpretação já pronta do grande enigma de Hamlet. Assim, nos furtamos da interpretação pessoal, que busca (ou deveria buscar) a originalidade de forma idiossincrática e nada dogmática. É mesmo uma pena que nos contentemos com tão pouco.
Para quem não conhece, eis um pouco deste momento absolutamente mágico da literatura universal:
Ser ou não ser, esta é que é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer?
Desta vez, li Hamlet com olhos aráveis. E me surpreendi com o solilóquio mais famoso. A escolha de que fala Hamlet é muito mais profunda do que eu pensava e, ao mesmo tempo, muito mais pragmática também. Talvez porque eu viva um momento de indecisão, ser ou não ser virou para mim um enigma a ser decifrado. Sorte é que o decorrer do solilóquio nos dá algumas dicas de como fazer a Grande Escolha.
Se bem que eu acho que os homens já nascem com as escolhas feitas. Não que eu acredite em fado. Nada disso. Mas a personalidade acaba determinando se o homem escolhe ser ou não ser. Conheço homens que jamais se identificariam com a dúvida de Hamlet, porque a essência do não-ser é a ausência de dúvidas, de conflitos. Já considerei isso um mal; hoje acho que é apenas diversidade — para usar uma palavra da moda. No que me diz respeito, sempre escolherei ser. Ainda que, ultimamente, tenha flertado com o oposto.
Ser ou não ser me parece uma dúvida clara entre a humilhação e a bravata, a resignação e a inconformidade (o que não tem nada a ver com rebeldia, por favor!), ainda que resignação não implique necessariamente em humilhação, é preciso dizer. A escolha de Hamlet é pela vida simples, mas desonrada, ou pela vida honrada, ainda que turbulenta. É uma escolha que, em certo sentido, vai contra os conselhos de Polônio ao filho Laertes, ambos, por sinal, mortos pela espada do Príncipe.
Eu sou um homem de fogo, daqueles que ainda se indignam. Tenho cá para mim que um temperamento como o meu está completamente deslocado na História. Não nasci para o século 21, ainda que, hoje, consiga me ver tendo alguma utilidade nele. Meu olhar é sempre pretérito, para um tempo em que as bravatas eram indispensáveis para o andamento do mundo. Hoje o que é um homem que pega em espadas, ainda que metafóricas, se não um palhaço quixotesco? Ficou mais difícil optar por ser. Ao menos ser em sua plenitude.
Não que o homem possa ser de forma completa. Eu estimo muito a invenção da sublimação — que é o que nos tem permitido viver em algo parecido com uma civilização. Mas, ultimamente, a sublimação atingiu níveis tais que nos humilham. A mim me humilha, ao menos. Eu percebo o quanto deixo de ser para não ser, na esperança de que um dia eu possa ser — isto é muito complicado? Digamos assim, então: eu percebo o quanto eu deixo de travar batalhas que me são queridas para silenciar em sábia resignação, na esperança de que um dia eu não precise mais me humilhar deste modo.
Hamlet, porém, é um príncipe. E ele não precisa se humilhar. Além disso, vive num tempo em que a coragem é venerada — e não um tempo de ratos, como hoje. A dúvida de Hamlet, portanto, é muito menos pragmática. Se em mim, em pleno século 21, a questão entre humilhação e bravata almeja fins práticos, terrenos, em Hamlet a querela é espiritual. Ao príncipe a escolha é por uma opção que se encaixe melhor em seu temperamento poluído pela melancolia. É óbvio que Hamlet opta por ser — ainda que isto lhe custe a vida.
Deste modo, as páginas finais de Hamlet podem ser interpretadas, à luz do século 21, como um final moralista. Porque Hamlet é punido com a morte por sua bravata. Ele resolve vingar a morte do pai e restaurar a justiça moral em Elsinore — e morre por isso. Morrem ainda a mãe e o tio-rei; morrem Laertes, Ofélia e Polônio. Horácio pensa em se matar. Tudo por causa da melancolia que, estimulada pelas palavras do fantasma, vira fogo vital que a tudo queima. Mas não é próprio do fogo queimar? Onde está aí a subversão da natureza das coisas, que é o princípio básico de todas as tragédias?
Fechei o livro com uma sensação de incompletude. Soube, assim que o recoloquei na estante, que a ele voltaria em breve. Porque ali há todas as dúvidas — e também algumas respostas. Sou contra estas pessoas que transformam livros em oráculos. Não é esta a minha intenção. Quero apenas voltar a Hamlet porque, voltando a ele, volto a mim. Não posso negar que, de vez em quando, fico certo de quem sou — o que é um pecado enorme na minha idade. Hamlet é minha consciência mais crítica; é o encontro de mim com minhas porções boas e más. A leitura da peça é uma reunião de forças conflitantes que lutam para predominar nesta carcaça. Ainda que as reuniões jamais cheguem a um denominador comum (o que é próprio do humano), o resultado sempre é bastante interessante. Tanto que hoje não sou mais o que fui ontem. O que significa um começo de melhora. Sempre.
* * *
Harold Bloom é da opinião de que Hamlet é um fracasso artístico, já que, por sua extensão, provavelmente jamais foi montada na íntegra em um palco. Eu tenho de concordar, mesmo tendo visto ao menos uma versão cinematográfica com a versão completa da peça: o Hamlet dirigido por Kenneth Branagh, sobre o qual falarei adiante.
Primeiro, é preciso comentar o Hamlet de Lawrence Olivier, de 1948. Elogiado por todos, o filme me pareceu de uma grosseria absurda. E só por um motivo: o príncipe é plano na visão de Olivier. A idéia do Hamlet como vítima parece tomar conta de toda a produção. Logo, tudo é feito para corroborar esta impressão primeira que, como já vimos, é falsa. Falta ao Hamlet de Olivier os altos e baixos característicos do personagem cuja riqueza reside na ambigüidade.
Além disso, Olivier é um tanto quanto operístico demais em sua interpretação. Assim como os demais atores do filme. Algo que me chamou a atenção, ainda, foi a idade dos atores. O Polônio parece um Matusalém. O próprio Hamlet já está na meia-idade, no filme. Entendo que isso seja uma necessidade da nossa época, afinal são poucos os atores jovens capazes de interpretar Hamlet. O efeito, porém, é de uma comicidade involuntária. Fazer o quê?
Quanto à versão de Branagh, o que dizer? É a versão integral da peça — e aí está o seu único mérito. O elenco é bastante diversificado, o que não é de modo algum uma virtude. Branagh é melhor como Hamlet do que Olivier — ainda que esta opinião possa chocar os puristas. Kate Winslet é perfeita como Ofélia. Quanto ao resto, até mesmo os grandes atores como Gerard Depardieu e Judi Dench, parecem todos virtuoses demais, pomposos demais para um papel que, na maioria das vezes, requer apenas humanidade.
Sou pessimista. Não consigo imaginar as pessoas lendo Hamlet daqui a cinqüenta anos. Basta que nos perguntemos: há quantos anos não há uma montagem integral e ortodoxa de Hamlet no Brasil? Nos últimos dez anos, eu não me lembro de nenhuma. E, no entanto, há Hamlets de todos os tipos sendo inventados nos palcos do país: modernos, rappers, clubers, apocalípticos, revisitados, ensaiados. Tenho a impressão de que são crianças, como eu fui um dia, dizendo umas para as outras que aquilo, isto é, a peça, é óbvio demais. Ah, como não é!
Resta-nos as versões cinematográficas, cujos pecados são muitos, já se disse. As gerações futuras, porém, verão com olhos mais interessados a ação da luta de espadas entre Hamlet e Laertes do que a violência do discurso do príncipe contra Ofélia, que a leva ao suicídio. Há escapatória ou a tragédia mais influente da cultura ocidental cairá no esquecimento? Espero apenas não estar aqui para ver.
Enquanto isso, sigo lendo. Com ou sem a ajuda de Bloom, uma quarta, quinta, décima vez. Ou até que eu não me detenha mais nos conselhos de Polônio, porque eles já estariam assimilados.
Leio porque os melhores intérpretes de Shakespeare, feliz ou infelizmente, não sei, estão dentro da minha cabeça. Hamlet é muito parecido comigo, tenho de confessar. Ofélia é linda e pura, porém de uma malícia sutil, quase imperceptível. Polônio é cruel a maior parte do tempo; só tem cara de vovô quando aconselha o filho. E assim por diante, vou compondo os personagens, cenários e figurinos como minha imaginação mandar. Não há, definitivamente, lugar mais propício a florescer Shakespeare do que na imaginação de um leitor.