Os grandes carnívoros, novo romance de Adriana Lisboa, discute, de um lado, a crueldade humana contra os animais e, com o intuito de protegê-los, a justificativa de que o uso de variados tipos de violência seja válido nalgumas situações. O assunto por si só é polêmico, mas a obra não fica só nisso. Há a outra face da moeda que foca no bicho homem. E nela a narrativa revela a crueldade, a violência física, simbólica, que seres humanos perpetram contra seus iguais.
Antes de abrir o livro, as imagens estilizadas da capa, feita por Tereza Bettinardi, chama atenção pelas formas que lembram animais e também pela textura em alto-relevo que se sente no contato com a palma da mão. No que diz respeito ao romance, há um narrador em terceira pessoa e frequentes discursos indiretos livres. Além disso, como se vê no trecho abaixo, o texto se estrutura de modo a borrar as marcas do discurso do narrador e dos personagens:
Um recanto inconfessável do pensamento de Adelaide algumas vezes chegou a cogitar: pelo menos a senilidade permitiu que ele não registrasse o que acabou acontecendo com a filha única. Em cana. Lá no meio dos gringos. Quem sai da terra natal. Sou Adelaide, você me ensinou a nadar na piscina do Piedade Tênis Clube, lembra? Adelaide, que era bamba em matemática, lembra?
Cumpre destacar que a autora emprega o verbo “dizer” para que seja possível delimitar quando se trata de falas das personagens. A título de ilustração, eis um diálogo entre Adelaide em outra passagem do romance, o parágrafo servindo como baliza de identificação de um e outro:
O seu copo de limonada é como se fosse o fundo do mar, Adelaide diz.
Ele olha, estuda.
O açúcar é a areia, ela diz.
As pedras de gelo são os peixes, ele diz.
Peixes imensos, devem ser tubarões.
Entretanto existem algumas passagens em que o discurso indireto livre — sobretudo quando Adelaide está sob forte tensão ou tratando a respeito de algum sonho — abole as fronteiras entre prosa e verso e a pontuação é abolida:
A mulher
que lavou os lençóis que bordou o lenço que pintou o quadro que limpou o banheiro que segura o filho que chora que chora que diz
vou embora e não volto mais
a sua carne
a minha carne
a minha carne a minha carne
a égua sem taxonomia.
Passado/presente
A narrativa de Os grandes carnívoros concentra-se em Adelaide, que voltou para o Brasil depois de ter ficado presa alguns anos nos Estados Unidos em razão de um incêndio que ela e alguns colegas de um grupo de ativistas em defesa dos animais atearam num laboratório de pesquisas. Como observa o narrador no primeiro capítulo, “Era um manifesto. Conforme planejado”. O grupo combate violência com violência. A justificativa do ato aparece, mais adiante na narrativa, numa das reflexões da protagonista:
O que será que esta gente daqui ia pensar de você, Adelaide? O que será que iam pensar se soubessem que você passou uma década derrubando cercas, rasgando pneus, cortando fiações elétricas (ela se lembra com particular afeto das ocasiões em que derramaram açúcar em tanques de gasolina ou diesel sempre lhe pareceu uma forma desaforadamente poética de protestar), por fim incendiando um laboratório de pesquisa.
De volta ao Brasil depois da covid-19 e do desgoverno Bolsonaro, Adelaide não se junta ao pai (Nelsinho), que cada vez mais vem mostrando sinais de demência, nem à tia Cida — únicos parentes que vivem no Rio de Janeiro. Prefere viver sozinha numa pequena casa próxima ao vilarejo de Nossa Senhora da Guia, na Serra da Mantiqueira. Como observa Maria Ester Maciel, na orelha do livro, no novo endereço, Adelaide “passa a enfrentar, a partir de então, novas e não menos impactantes experiências com os moradores das cercanias”, inviabilizando sua busca por reclusão para repensar tudo que viveu nos seus quarenta e poucos anos de vida, uma década pelo menos atuando na defesa dos direitos animais.
Algumas experiências nos Estados Unidos tinham sido incomuns, e elas surgem ao longo do romance quando nomes e ações dos companheiros ativistas vêm à memória de Adelaide. Entre as vivências, a mais divertida e também decorrente de sua necessidade de ficar no país foi ter casado com George, homossexual assumido, companheiro do grupo de ativistas. Uma das mais assustadoras relaciona-se aos três anos que Adelaide passara numa penitenciária. O suicídio da amiga Sofia, a que lhe ensinara o tarô, a líder inconteste do grupo de amigos pró-animais, tinha sido o mais angustiante e assombra Adelaide conforme mostra a narrativa composta em forma de alternância de fatos presentes e passados nos quais muitas vezes a figura de Sofia surge como um fantasma.
Portanto, esconder-se num povoado na Serra da Mantiqueira é a maneira que Adelaide encontrou para fazer “a travessia desse passado assombroso para o presente”, é sua tentativa, frustrada conforme a narrativa acaba revelando ao leitor, de cruzar a terceira margem do rio de si mesma, já que ela precisa coexistir com as pessoas do vilarejo, e esta relação com os outros vai desencadear contra ela violências sutis e outras de maior envergadura.
No vilarejo
Os laços de amizade de Adelaide no vilarejo não são muitos. Sua intenção é fechar-se em si mesma ao alugar uma casa para viver sozinha. De todo modo, ela se obriga a ter um pouco de convívio social. As relações mais próximas são com a família de Rai, sobretudo este e Gil. Com as outras pessoas Adelaide mantém o contato necessário, como ocorre, por exemplo, com Zinho, o proprietário do Incensatez, uma loja de artigos esotéricos, que a emprega a pedido de Rai.
A primeira pessoa a conhecer no povoado tinha sido Gil — um dos filhos de Rai e Leila — que a conquista de imediato quando o menino fora levar a chave da casa recém-alugada para ela. A boa impressão causada pelo garoto de “Uns dez anos de idade, supõe. Mirrado e magrelo, feito ela própria quando tinha essa idade” leva Adelaide a servir-lhe café e biscoitos e contar-lhe a história do “homem que um dia abraçou um tigre-de-bengala e que, naquele momento de terror e êxtase, sentiu que o tigre era macio” e o animal não o devorara. Adelaide suprimiu o desfecho trágico da narrativa, isto é, o ataque fatal do tigre a outro companheiro do homem.
Em seguida, Adelaide trava contato com Rai, o proprietário do imóvel que ela aluga. Apesar de cultivar a máxima “Desconfiar sempre e muito”, ela acaba se envolvendo com Rai. Cortês, atencioso, prestativo são algumas qualidades que chamam atenção de Adelaide em relação a Rai. Assim, mesmo sabendo que ele é casado e tem filhos, que o vilarejo é pequeno e facilmente poderiam ser flagrados, Adelaide e Rai mantêm um relacionamento afetivo cujo término ocorre quando ele a violenta.
Quando Adelaide comparece a uma festa de aniversário de um dos irmãos de Gil, julgara Leila distante do marido, “um corpo celeste, mas não parece dirigir o olhar uma única vez para Rai”, a ponto de supor que “Poderiam ser dois estranhos” e que o casal vivia uma crise no casamento, o que justificaria o fato de Rai trair a esposa. Apesar de tecer tais hipóteses, Adelaide teme que o caso dela com Rai seja de conhecimento de Leila. Mas tudo isso se desfaz quando as duas se encontram num posto de saúde e acabam indo a um restaurante num “recanto escondido que faz Adelaide se sentir como se tivesse desembarcado dentro de um universo paralelo”.
Na conversa entre ambas, revelam-se a gravidez de Leila e algumas mentiras que Rai tinha contado a Adelaide:
A mulher reluzente, pensa Adelaide. Aquele rosto ensolarado e feliz no meio de um inverno na Serra da Mantiqueira. Dando um peteleco nos dramas do mundo. A mulher apaixonada que é, na verdade, uma mulher grávida. Quem foi que disse, Adelaide, que as tais das primeiras impressões são mesmo as que valem? Desconfiar sempre e muito, diz Sofia, em sua memória. Mas então por que foi que Rai…
No último encontro dos dois, Rai tenta alegar que a esposa mente. Adelaide diz a ele que o relacionamento havia terminado. Quando ele “a derruba na cama como se aquele fosse um gesto consensual”, […] a vira de costas” e fica “inteiro em seus intestinos”, ela se surpreende com a violência daquele homem que fora tão diferente, que lhe dera carona, uma bicicleta, que lhe dissera palavras gentis, que lhe servira cerveja na festinha de aniversário de um dos irmãos de Gil.
A lição dos animais
Conhecidas são as fábulas — desde as tradicionais como as de Esopo e as adaptações feitas por Monteiro Lobato — nas quais os animais são humanizados e protagonizam situações diversas com o objetivo, visando sobretudo públicos infantojuvenis, de transmitir uma lição moral ou ética em seus desfechos. Millôr Fernandes também as compôs, salpicando-as de ironia e verve, destinadas ao público adulto. Outras obras, que lembram fábulas, porém bem mais extensas e dirigidas a gente grande, são A revolução dos bichos (George Orwell) e Fazenda modelo (Chico Buarque). Nelas, os animais agem como seres humanos, incorporando destes valores tais como a inveja, a crueldade, a violência etc.
No caso de Os grandes carnívoros, os seres humanos interpretam terrivelmente a si mesmos. O objetivo de Adriana Lisboa é construir uma fábula ao contrário na qual os animais, segundo Maria Esther Maciel, “aparecem sobretudo como viventes em estado de exceção, vitimados por práticas de crueldade num mundo cada vez mais dominado pelo que a própria autora chama de ‘catástrofe ética dos humanos’”. Em várias passagens do romance, a narrativa mostra o quanto os animais são submetidos a todos os tipos de violência perpetrados pelos homens. Ou seja, os seres humanos, neste romance, agem de modo contumaz como os que se julgam os melhores seres do planeta, permitindo-lhes, por conseguinte, fazer contra outros seres o que supõem mais adequado.
Ver os animais sob a perspectiva de que não merecem sofrer violência por parte das pessoas é algo que Adelaide vai construindo aos poucos, intuitivamente no início. Quando criança, ganhara um cachorro, batizado por ela de Popeye, cujos cuidados e castigos ficavam a cargo da mãe. Tivera também um pintinho que, crescido, fora para a panela de uma vizinha. Desde jovem, ela começa a ter consciência da violência a que os animais eram submetidos. Na adolescência participara de uma campanha contra a dissecação de uma rã na aula de biologia. Mais tarde, nas idas e vindas de suas recordações, ela acaba se indagando criticamente: “Será que a Adelaide futura estava prevista? Naquela rã que escapou de ser dissecada em sua sala para logo ser dissecada em outra?”.
Quando conheceu o casal Sofia e Santiago, nos Estados Unidos, Adelaide realmente conscientizou-se da importância dos animais e pôde até mesmo avaliar-se criticamente quanto a seus inadequados procedimentos relacionados ao cachorro que tivera na infância:
Estranhamente, como ela também disse a Sofia na mesma ocasião, aquele dar-se conta não mudou sua relação com Popeye, que era o animal não humano mais próximo a ela. Estranhamente continuou se desobrigando dos cuidados com o cachorro quando ele já era um velho doente com onze anos e ela uma adolescente com dezessete.
Há um quê de paradoxal na jovem Adelaide: manifestara-se contra a dissecação de uma rã, mas pouco se importara com Popeye, o cão que ganhara dos pais e cujo nome escolhera. As mudanças nela se operam nos Estados Unidos. Foi sobretudo com Sofia que Adelaide adulta de fato passou a ter consciência do quanto sofriam os animais nas mãos dos seres humanos.
Ao longo da narrativa, fica evidente que a amizade com Sofia tinha sido muito importante para Adelaide, pois esta frequentemente mergulha no passado e de lá faz emergir recordações da amiga. Tais lembranças decorrem do suicídio de Sofia e do fato de a companheira dos direitos animais ter lhe incutido um sentimento ecológico mais definido que a levou a perceber a violência de humanos contra os animais.
Em resenha publicada no jornal O Estado de S. Paulo, André de Leones destaca que Animais carnívoros apresenta “a violência dos humanos contra os outros animais, que leva à ‘violência’ dos ativistas, à qual o Estado reage pronta e violentamente, e a violência dos animais humanos contra os animais humanos em suas incontáveis variedades cotidianas”. Certamente estas palavras sintetizam bem o espírito deste novo romance de Adriana Lisboa.