Por trás de toda obra de arte (as que fazem por merecer a denominação) existe no mínimo uma mente e personalidade singulares com as quais nos acostumamos a “entrar em contato” pela mediação do narrador (que, vale lembrar, é também criação ficcional). Não que o narrador não possa encarnar as ideias e sensações do ser humano que lhe deu vida, porém ninguém com bom senso veria em Riobaldo o reflexo da mente de Guimarães Rosa, ou mesmo em Marcel a imagem de Proust. Ademais, quando no narrador reconhecemos o autor falando, por inequívocos sinais, é sempre em função do que o conteúdo pede, do que aquele universo delimita.
Vem daí a enorme satisfação com que o leitor folheia os cadernos de trabalho, os diários, as missivas e os ensaios do artista cuja obra já conhece e admira. Não lhe basta contemplar o produto e fruir o prazer estético que ele oferece, quer também contato com a mente que o projetou, em textos de natureza outra, ocasionais, e por isso mesmo mais reveladores.
Tal é a satisfação que o leitor brasileiro deve estar sentido com a série de edições que a Zahar vem preparando dos ensaios do grande escritor alemão Thomas Mann. São seis volumes que contemplam ensaios sobre temas variados, mas que têm em comum, no prazer que proporcionam, uma estrutura argumentativa e intuitiva cativante, envolvente, e surpreendentemente próxima de nós.
A título de exemplo, no volume que é tópico da presente resenha e no ensaio que lhe dá nome, em Travessia marítima com Dom Quixote o leitor ficará surpreso ante a admiração que a “crueldade desenfreada de Cervantes” também provoca no escritor alemão, “a despeito da estima que tem (Cervantes) por dom Quixote”.
“Mas como?”, pensará o leitor, “também a Thomas Mann causou estranheza as novelas intercaladas, de corte aventuresco e sentimental, na obra?”
É por assim estarem tão próximos esses ensaios, em suas impressões e questionamentos, do leitor, ao mesmo tempo em que tão distantes em suas intuições e considerações geniais, que o livro é fonte de valor permanente.
Variações
Em dez ensaios, tão variados em conteúdo quanto em forma, temos um quase-conto de teor intimista em Doce sono!; um diário de viagem no ensaio-título da obra; um fragmento sucinto Sobre o humor, etc. Eles versam sobre assuntos tão díspares quanto casamento, tempo e obras literárias. Apesar desses contrastes, o conjunto assim organizado, sem o dedo do autor, auxilia no sentido de construir a imagem de um humanista autêntico, preocupado com questões estéticas, morais e éticas no fazer artístico. Não são precisamente tais questões que estruturam sua percepção de oposição entre O artista e o literato, em ensaio de mesmo nome?
O artista (…) é eticamente indiferente, irresponsável e ingênuo como a natureza (…) O literato é correto até as raias do absurdo, é honrado até as raias da santidade.
Curiosa essa ascese que Mann enxerga no literato! Há aqui um instinto moral que, embora não alcance níveis tolstoianos, não deixa de surpreender por não ser um atributo que o leitor necessariamente enxergue no autor de Morte em Veneza. Já sobre estética, o tom é mais familiar:
O romance, com sua mistura de elementos sintético-plásticos e analítico-críticos, certamente não é um gênero muito alemão.
Eis um trecho de O romance de formação, ensaio que aborda este que é o gênero “tipicamente alemão”, entrelaçando a ele a identidade social alemã, seu conceito de humanidade, donde “desde sempre faltou quase totalmente o elemento político”. Para o conhecedor da obra de Thomas Mann, certamente chamará a atenção nesse ensaio as alusões a um projeto em andamento, obra que passaria por paródia do gênero, “escárnio do progresso em forma de autobiografia de um impostor e ladrão de hotel” — a saber, Félix Krull.
De estética também trata A arte do romance, onde o autor revisita considerações já clássicas, como a superioridade do drama sobre o épico, deste último a derivação do romance, suas diferenças, a “interiorização” do romance na era da ascensão burguesa, etc. Não é um ensaio de alicerces meramente históricos, pois nele encontramos considerações atemporais sobre arte:
O princípio, porém, que permitiu ao romance trilhar esse caminho humanamente relevante é o da interiorização. (…) O mistério da narrativa (…) é tornar interessante o que deveria ser enfadonho.
Considerações de natureza semelhante reverberam no já citado ensaio sobre Dom Quixote e Em homenagem ao poeta, prefácio à edição americana de O castelo, de Franz Kafka. No primeiro, Mann empreende uma leitura sistemática da obra-prima de Cervantes enquanto segue num transatlântico rumo aos EUA, em 1934. Em dez dias de viagem, o escritor disseca a obra e tece, em contínuas digressões, considerações espantosas e insuspeitas sobre ela, como esta que especula sobre a já citada crueldade do espanhol com o “cavaleiro da triste figura”:
Chego a pensar que o autor age como quem submete ao riso as próprias crenças nas ideias, nos homens e na perfectibilidade humana.
No ensaio sobre O castelo, descobrimos o elo existente entre esses dois mestres, Kafka e Mann, que transcende o campo linguístico, revelando ecos de Tonio Kröger na obra kafkiana. O autor vê Kafka como um “humorista religioso” a quem a busca incessante por Deus e sua Graça (consubstanciada em O castelo) não elidia a comicidade oriunda do absurdo.
Perspectiva
São dignos de nota ainda os extraordinários Elogio da transitoriedade e O casamento em transição. No primeiro, o brilho está na perspectiva singular com que se enxerga a transitoriedade: ela é a “alma do ser”, dignificando a vida, proporcionando o aperfeiçoamento do trabalho. Ela é movimento, oposta ao estático eterno. E a dádiva da vida consiste exatamente na consciência dessa transitoriedade. Perspectiva genial de um elemento que tanto atormentou outrora o homem barroco!
Por fim, em O casamento em transição, o fascinante não está tanto nas elucubrações que o autor faz sobre emancipação feminina e juvenil, nem na distinção entre o casamento e a relação homoerótica – aquele visto como “amor fundador” e esta como “esteticismo erótico”, “l’art pour l’art”, cuja natureza interior é “libertinagem, o nomadismo, a inconstância”. O extraordinário nesse ensaio é lê-lo tendo em conta o homossexualismo enrustido do autor, imaginando como a mente que concebia o casamento como “comunhão sexual” de “fundamento sacramental” lidava com seu próprio impasse.
A todos os atrativos acima some-se um estilo sóbrio e fecundo de ideias, cujas digressões, imbuídas de uma cultura vasta que abarca tanto a tradição europeia quanto a oriental, permite uma ampla dimensão de perspectivas, e então se terá a exata medida da riqueza do volume.
Um humanismo, em suma, do qual só restam vestígios nos tempos atuais.