Homero hoje

Em "Ilíada e Odisséia de Homero: uma biografia", Alberto Manguel explora a história da leitura em chave homérica
Alberto Manguel por Osvalter
01/09/2009

Alberto Manguel, argentino naturalizado canadense, é escritor consagrado internacionalmente, com mais de quarenta títulos publicados entre obras de ficção, não-ficção e antologias. Entre os livros já aparecidos em português, podemos citar Uma história da leitura (1997) e o fantástico Dicionário de lugares imaginários (em co-autoria com Gianni Guadalupi; 2003). Ilíada e Odisséia de Homero: uma biografia insere-se na produção ensaística de Manguel, e aborda um tema caro ao autor, qual seja o do papel do livro na cultura, das viagens que realizamos através dos livros e que os próprios livros realizam no mundo (ou na imaginação do mundo). Desta vez, Manguel concentra sua atenção na história das leituras, interpretações e recriações de dois poemas cuja centralidade no cânone ocidental (e universal) é rivalizada por poucos, de tal modo que a história da leitura de Homero funciona praticamente como uma história da leitura tout court.

O estudo da recepção dos textos clássicos, ou daquilo que mais tradicionalmente se conhece com a expressão alemã Nachleben (traduzida muitas vezes como “sobrevivência”, mas que implica muito mais, apontando na verdade para toda a herança e os significados de um texto, idéia ou obra de arte na cultura de que faz parte), sempre foi uma faceta importante dos estudos da Antigüidade clássica, e é hoje uma área das mais ativas na crítica acadêmica. Impulsionados mais recentemente pela reader-response criticism ou teoria da recepção, que considera o papel ativo do leitor na determinação dos sentidos de uma obra, e o coloca muitas vezes mesmo como co-autor daquilo que lê, os estudos da recepção, ao que parece, estão mais do que nunca em voga, como demonstra o lançamento do Classical Receptions Journal, que passa a ser publicado em Oxford este ano.

Com o livro sobre a “biografia” das duas epopéias gregas, Manguel dá a um público mais amplo a oportunidade de acompanhar um pouco desse rastreamento dos passos de Homero na nossa história, desde as críticas de Platão até as recriações do século 20, com Joyce e Walcott (entre outros). Como não poderia deixar de ser, Manguel não é o primeiro nem será o último a tratar desse assunto. Em meio à profusão de trabalhos, encontramos, por exemplo, A sombra de Ulisses, de Piero Boitani (2005), que acompanha as transformações dessa personagem homérica na tradição poética e mais além, chegando até o poema de Haroldo de Campos intitulado Finismundo: A última viagem, e passando pela presença do mito de Odisseu no período das grandes navegações. Ainda esperando tradução para o português, temos o texto de Edith Hall, The return of Ulysses: A cultural history of homer’s Odyssey (2008), e a coletânea de artigos organizada por Barbara Graziosi e Emily Greenwood (Homer in the twentieth century: Between world literature and the western canon, 2007). Mas Manguel tem a virtude de escrever habilmente para o não-especialista, e seu estilo é carismático e acessível.

Crítica pop
Ilíada e Odisséia de Homero: uma biografia é uma espécie de crítica literária pop. A erudição de Manguel, alimentada por uma vasta convivência com a literatura mundial e por um contato frutífero com a crítica universitária, não torna a leitura laboriosa. Pelo contrário, a grande quantidade de informações é organizada de tal modo, que a impressão é de estarmos assistindo a um documentário que entretém associando livremente imagens sobre um grande poeta. E nem por isso o livro é fragmentário ou pouco instrutivo: cada capítulo tem conexões internas relevantes e encaminha a leitura do capítulo seguinte de maneira natural e não desprovida de lógica. Qualquer pessoa que ame os livros vai devorar este em uma ou duas sentadas, e ainda aprender muito sobre Homero.

E não apenas sobre Homero. Uma qualidade dos bons trabalhos sobre recepção é contar não só a história de um texto específico, mas dar a conhecer os contextos em que tal recepção tem se realizado. Assim, no livro de Manguel aprendemos sobre a querela “antigos versus modernos” na França dos séculos 17 e 18, sobre como Homero aparece no mundo islâmico por intermédio das traduções árabes dos clássicos gregos produzidas sobretudo no século 9, e sobre como as leituras de Homero na Europa ocidental se relacionaram, na Idade Moderna, com as diferentes ênfases dadas ao grego ou ao latim na educação, conforme o país e a religião predominante (nomeadamente, o conhecimento de Homero e de outros clássicos gregos foi mais forte em nações como a Inglaterra e a Alemanha, onde o protestantismo incentivava o aprendizado do grego para a leitura da Bíblia no original, enquanto os países católicos, mais ligados ao latim da Vulgata, tiveram um contato menos direto com o texto homérico). Enfim, o livro é repleto de histórias saborosas sobre os leitores de Homero, embora nem todas elas sejam exploradas com a profundidade e os detalhes que poderíamos desejar. O próprio Manguel, no entanto, está ciente de que seu livro é simplesmente uma introdução, e que o público mais ávido de informações terá de procurá-las em outras fontes (algumas das quais são citadas nas notas do final do volume).

Imagem adequada
Feita essa ressalva, o texto cumpre o objetivo de atiçar a curiosidade de quem o lê, e oferece uma imagem adequada da magnitude do tema. A pluralidade de interpretações que a Ilíada e a Odisséia despertaram no decorrer dos séculos é imensa. Manguel consegue, num livro curto, mostrar muitas delas, e de um modo que as explica sem banalizá-las, dando uma real dimensão da sua plausibilidade e de suas ressonâncias num contexto cultural mais amplo. Um efeito dessa enorme galeria de leituras é propiciar uma experiência de humildade: Homero é tão grande, que ninguém poderá supor ter percebido tudo o que ele contém, todas as idéias e sensações que ele gerou e ainda gerará. Uma boa lição para a crítica acadêmica, tão ciosa de seus feudos temáticos e temerosa de invasões de outsiders, que muitas vezes lêem mais e melhor do que aqueles que imaginam ter a chave de determinados textos e controlar as técnicas para a sua interpretação.

Entre as melhores partes do livro está o capítulo 9, sobre as recriações da seguinte passagem da Ilíada (6.146-9, na tradução de Carlos Alberto Nunes):

As gerações dos mortais assemelham-se às folhas das árvores,
que, umas, os ventos atiram no solo, sem vida; outras, brotam
na primavera, de novo, por toda a floresta viçosa.
Desaparecem ou nascem os homens da mesma maneira.

Esses versos são parte de uma fala que Glauco, aliado dos troianos, dirige a Diomedes, herói grego, quando os dois se defrontam no campo de batalha, e este pergunta àquele sobre sua estirpe. A célebre comparação dos homens com folhas toca no tema da mortalidade humana de maneira objetiva, sugerindo com simplicidade o quanto o homem é frágil e ao mesmo tempo apresentando-o no contexto maior da sucessão das estações, como parte da natureza que decai e renasce. A consciência que as personagens da Ilíada têm de seu caráter perecível, muitas vezes verbalizada com altivez quando elas estão de fato no limiar da morte, alia-se nessa cena à sensibilidade das figuras homéricas para a importância dos laços sociais. Isso porque, alguns versos adiante, Glauco e Diomedes descobrem que suas famílias um dia ligaram-se por relações de hospitalidade, tão respeitadas entre os gregos antigos (Eneu, avô de Diomedes, havia hospedado Belerofonte, avô de Glauco). Tal descoberta faz que os dois guerreiros se recusem a lutar um contra o outro. As folhas, então, são da mesma floresta. A imagem das folhas foi reutilizada por diversos poetas posteriores: Vergílio, Dante, Milton, Verlaine, Shelley, Hopkins. Ao acompanhar o percurso da imagem pela obra desses diversos autores, Manguel mostra com perspicácia como cada um associou a passagem a outros versos de Homero, misturou a versão homérica à de algum outro poeta, expandiu ou modificou o teor do grego.

Traduções
Também é interessante o tratamento do eterno problema das traduções de Homero. Estas são, é claro, parte da recepção, e com elas também aprendemos muito não só sobre o “original” traduzido, mas também sobre o mundo que as produziu. Manguel ocupa-se mais das traduções de língua inglesa, contando a (quase incrível) história de Alexander Pope, geralmente considerado o maior poeta inglês do século 18, que alcançou a independência financeira com suas versões da Ilíada e da Odisséia, enorme sucesso na época e até hoje tidas como clássicas. Isso mostra, de maneira bem concreta, o prestígio de Homero. O poeta que dele se aproxima e não naufraga na comparação, reveste-se de autoridade sem igual. Mas Manguel também fala dos defeitos que foram apontados no trabalho de Pope: nenhuma tradução é “a” tradução definitiva. (Note-se aqui uma desastrosa opção do tradutor brasileiro: passar para o português as múltiplas traduções inglesas do primeiro verso da Ilíada citadas na pág. 59.)

Nenhum livro é perfeito. O capítulo sobre Vergílio revela uma interpretação um tanto reducionista do excepcional poeta romano. Um contato com alguma bibliografia um pouco mais recente teria salvado Manguel dessa gafe (bastaria dar uma olhada em R. O. A. M. Lyne, Further voices in Vergil’s Aeneid, 1987). É também decepcionante o capítulo 22, em que o autor resume-se a parafrasear, num estilo pálido, o conto O imortal, de Borges. Quem já leu o conto não encontrará em Manguel nenhum grande acréscimo ao seu entendimento. Somem-se a isso alguns equívocos nos detalhes, o mais irritante dos quais é escrever (todas as vezes) in media res (sic) em vez de in medias res. Terá o erro surgido na tradução brasileira ou já aparece no original inglês?

Seria impossível resumir aqui todos os caminhos trilhados neste panorama da trajetória de Homero, quer naquilo que o poeta sugeriu aos arqueólogos ou aos filósofos, quer nas ansiedades que causou na Antigüidade cristã; seja no desafio que sempre representou para a filologia, seja na empolgação com que o leram os românticos. A referência aos românticos, aliás, que tinham grande interesse pela poesia de origem popular, deve nos fazer lembrar as teorias sobre a composição oral da poesia homérica, influentes desde o trabalho seminal de Milman Parry (a começar por L’Épithète traditionnelle dans Homère, 1928). Manguel também aborda esse tema, e dá uma boa idéia da utilização que os poemas homéricos fazem das conhecidas fórmulas, expressões tradicionais relativamente fixas, que exprimem uma idéia básica e se encaixam de modo exato no verso homérico (o hexâmetro datílico), facilitando a improvisação. Estudos da tradição poética oral de diversos povos demonstram a presença maciça de fórmulas nesse tipo de poesia. Homero também seria tributário de uma tradição oral, em que o poeta, ao se deparar com a necessidade de narrar uma determinada situação, como, por exemplo, a queda de um herói em combate, pode empregar um repertório de expressões prontas, que aprendeu com outros “bardos”: é assim que freqüentemente o guerreiro, atingido pela “lança de sombra comprida”, tomba “ressoando-lhe em torno a armadura”, e “densa caligem os olhos lhe cobre”. O uso dessas expressões consagradas não implica, contudo, um estilo monótono, já que a cada vez que Homero as repete é possível detectar uma nova combinação. O estudo desse aspecto do estilo homérico alterou completamente a maneira como vemos o poeta.

O livro de Manguel é altamente recomendável para o público em geral, e será igualmente proveitoso para professores e historiadores da literatura. Mais do que todos, apreciará o livro o leitor que se compraz na descoberta de conexões (muitas vezes inesperadas) na tradição literária. Tal como a Ilíada e a Odisséia, esta “biografia” é uma leitura apaixonante. Homero teria escrito há aproximadamente dois mil e oitocentos anos, e desde então sua presença tem sido sempre forte. Esse período de quase três milênios, é claro, é apenas uma pequena parcela da história do homem, que existe há muito mais tempo. Homero aconteceu ontem, talvez esta manhã. Manguel consegue presentificar esse (não tão distante) passado de leituras e mostrar sua relevância para o presente. O exemplo mais desconcertante vem do início do livro, em que o autor conta um episódio ocorrido num vilarejo da Colômbia em 1990. O único livro que a população não queria devolver aos responsáveis por um esquema de bibliotecas itinerantes organizado pelo Ministério da Cultura, era a Ilíada. Segundo uma bibliotecária, quando perguntadas sobre a razão pela qual queriam ficar com aquela obra, as pessoas do local responderam que “a história de Homero refletia a história delas próprias: falava de um país dividido pela guerra, em que os deuses loucos se misturavam com homens e mulheres que nunca sabiam exatamente qual era o objetivo da guerra, ou quando seriam felizes, ou por que seriam mortos”.

Ilíada e Odisséia de Homero: uma biografia

Alberto Manguel
Trad.: Pedro Maia Soares
Jorge Zahar
269 págs.
À mesa com o Chapeleiro Maluco
Alberto Manguel
Trad.: Josely Vianna Baptista
Companhia das Letras
243 págs.
A cidade das palavras
Alberto Manguel
Trad.: Samuel Titan Jr.
Companhia das Letras
151 págs.
Alberto Manguel
Nasceu em 1948, em Buenos Aires, e hoje é cidadão canadense. Passou a infância em Israel, onde seu pai era embaixador argentino, e fez seus estudos na Argentina. Em 1968 transferiu-se para a Europa e, à exceção de um ano em que esteve de volta a Buenos Aires, onde trabalhou como jornalista para o La Nación, viveu na Espanha, na França, na Inglaterra e na Itália, ganhando a vida como leitor para várias editoras. Autor de livros de ficção e não-ficção, também contribui regularmente para jornais e revistas do mundo inteiro. Atualmente vive no interior da França, num antigo priorado transformado em residência onde instalou sua vasta biblioteca.
Alessandro Rolim de Moura

É professor.

Rascunho