Histórias pessoais explicando a história do País

A história pode ser contada de diversas maneiras, seja sob o verniz oficialista, seja do ponto de vista pessoal
Godofredo de Oliveira Neto: sexo, amor e política
01/01/2001

A história pode ser contada de diversas maneiras, seja sob o verniz oficialista, seja do ponto de vista pessoal. Saber misturar as duas coisas não é tarefa fácil, pois é grande o perigo do autor confundir-se, e meter os pés pelas mãos, ou melhor, meter as opiniões no lugar dos fatos. No entanto, Godofredo de Oliveira Neto parece conseguir mesclar bem histórias pessoais com a história da nação, no caso a nossa pátria, a Botocúndia.

O texto de Oliveira é marcado pelo debate dos dramas pessoais em oposição à história. Não que as grandes linhas que movimentam a humanidade, como revoluções, regimes políticos e econômicos e guerras não estejam presentes na narrativa de Oliveira. Mas eles são personagens coadjuvantes, que na prática sustentam os dramas e seus desenlaces. Isso porque os gestos dos protagonistas de seus romances são explicados pela conjuntura, apesar de serem muito mais decisões pessoais do que coletivas.

Um ótimo exemplo desse equilíbrio que Oliveira dá às suas histórias é Pedaço de Santo (Nova Fronteira, 1997, 224 pág.). O livro conta a história de Fábrio Antônio Nunes dos Santos, um guerrilheiro esquerdista brasileiro, exilado na Paris de 1973, depois de ter conseguido fugir de um porão do Dops, no Rio de Janeiro, após um assalto malsucedido.

Fábio mora com Muriel Melusina, francesa que estuda cultura e literatura brasileiras. Seu amor por ela beira o fanatismo e a insanidade, e é marcado profundamente pelas lembranças da dor física que sofreu quando foi torturado no Dops. Mesmo com toda a dor, Fábio não consegue largar a luta esquerdista. Ele é membro da Aliança Socialista Libertadora (ASL) — Paris. (Sim, as organizações de esquerda desse período, ainda que nanicas, tinham diversas ramificações. Na maior parte das vezes, cada braço tinha meia dúzia de gatos pingados, quando muito.)

Seu parceiro ideológico é Lázaro da Costa Costa, negro baiano, ex-menor de rua, que fugiu do Brasil antes que a Polícia o descobrisse, após uma “expropriação bancária”, rótulo ideológico de esquerda para assalto bancário. Além das afinidades ideológicas, Fábio morre de inveja de Lázaro. Afinal, o baiano foi companheiro de Murial antes dele. O baiano é a síntese da mistura de raças brasileiras, admirado por todas as mulheres. E o baiano parece não temer nada.

O sexo e o amor, misturados com a luta política, acabam sendo o eixo de discussões de Fábio e Lázaro. Mas Oliveira tem sensibilidade para não se limitar a essa discussão anódina entre os dois esquerdistas. Por meio desse tema principal, Oliveira descreve o modo de vida dos exilados brasileiros na França. Reuniões sobre reuniões em cima de reuniões, o discurso pré-montado, pré-moldado, semelhante a brinquedos de armar, onde as palavras se encaixam uma após a outra, para sempre concluir o nada, todos contra o imperialismo americano e a ditadura burocrática stalinista, e por aí vai a luta política comandada de além-mar.

Entre uma reunião e outra, há a exuberância cultural de uma cidade livre, sem amarras de censura para impedir as pessoas de dizer e pensar o que quiser. Fábio e Lázaro contam as suas rotinas francesas, esse empregado de uma organização de ajuda a exilados políticos, aquele meio bolsista de uma universidade francesa. E permeando a discussão, Fábio relembra os dias da infância e adolescência na Ilha do Desterro, na Florianópolis onde descobriu as coisas da vida.

Na história pessoal de Fábio, o que o divide é a opção pessoal de ser feliz sozinho, ou de lutar pela felicidade de uma nação. Da França, a luta parece vazia, sem sentido para ele, pois não há ação que ele seja capaz de fazer que possa mudar a realidade brasileira. Ao mesmo tempo, é cada vez maior o desejo de largar tudo, e viver a vida ao lado de sua Melusina.

Uma crise de ciúmes e uma convocação da ASL, porém, farão tudo mudar. Muriel deixa Fábio, e com razão (não é uma questão de machismo ou feminismo, é apenas justiça). A ASL, por sua vez, convoca dois companheiros exilados para comandar uma nova “expropriação revolucionária” no Brasil. A ASL-Paris elege Fábio e Lázaro como os companheiros que retornarão ao Brasil para o assalto.

Cada um vê nessa chance a possibilidade de largar de vida, mudar tudo. O questionamento é feito a cada segundo, antes de cada decisão, antes de cada trem, avião ou ônibus que os levarão de volta ao Rio de Janeiro, de volta aos cheiros, cores, sabores e sons de uma pátria que ambos sonham ser mais justa, mas que sabem ser muito distante. A saudade é a mola mestra de seus sentimentos. O amor é o grande complicador de Fábio, ainda dividido entre Muriel e a ASL.

Esse é um livro onde o final feliz é esperado, mas o que vem é totalmente inesperado. Qualquer comentário sobre ele estragaria o romance. A narrativa de Oliveira é um doce passeio entre um dos períodos mais conturbados da história brasileira, e também uma amarga caminhada na cabeça de revolucionários, que sem saber direito como lutar, lutavam.

O último romance de Oliveira mostra novamente como a vida pessoal pode ser utilizada para explicar os grandes movimentos da história, e inclusive nos ajudam a compreender melhor, do ponto de vista de um homem (mulher) comum, o que aconteceu. Marcelino Nanmbrá, o Manumisso (Nova Fronteira, 2000, 212 págs.).

O protagonista do romance é Marcelino Alves Nanmbrá dos Santos, pescador da Praia do Nego Forro, na Ilha de Santa Catarina. Ali se desenvolve uma comunidade de pescadores que pouco contato tem com os grandes centros ou com a política nacional. Um dos únicos elos de ligação com a assim chamada “civilização” é o rádio do armazém da vila.

E os tempos não eram tão fáceis para a nação. O livro se passa em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial. O Brasil tinha um presidente vindo do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, que desde 1937 governava ditatorialmente, com o Estado Novo. Vargas e uma parte de seu governo tinham simpatias pelo fascismo, que no início da guerra aparecia como vencedor de diversas batalhas, e inspirava políticos de países menores. De outro, havia o movimento das assim ditas forças democráticas, que procuravam convencer Vargas a alinhar-se com os Estados Unidos, a Inglaterra e os Aliados.

Além do radinho de pilha do armazém, o outro elo da Praia do Nego Forro com é o ex-senador Nazareno Corrêa da Veiga di Montibello. Antes de o Congresso Nacional ser fechado, ele era representante de Santa Catarina, apesar de morar no Rio de Janeiro, e ter propriedades espalhadas por todo o Brasil. Durante as férias de verão, o senador Nazareno e sua família permanecem na Praia do Nego Forro, na Villa Faial, sua residência de verão. O senador, sua mulher Emma, os três filhos, entre eles Sibila, moça de 15 anos, mas já corpo de mulher, e a governanta Eve, alemã que educa os filhos do senador.

A cada verão, a rotina de Marcelino é alterada com a chegada da família do senador. Todo ano, o pescador é convocado a brincar com os filhos do senador, sob os olhos e comando da governanta Eve. Mas no ano em que corre o romance tudo está mudado. Marcelino já tem desejos de homem, e sabe quem pode satisfaze-los. Martinha, a filha do dono do armazém, já pensa em ser mulher. Sibila tem olhos para lá de desejosos para cima de Marcelino. E Eve.

Eve acaba introduzindo Marcelino nas delícias do sexo. Com extrema volúpia, Eve acaba elegendo Marcelino como o salvador da pátria, a pessoa que iria redimir o Brasil de seu destino cruel, a que pessoas alheias ao verdadeiro interesse da nação e próximas a Vargas estavam conduzindo. A escolha do pescador não é feita por acaso. Eve faz parte de um plano maior, que pretende usar uma figura brasileira típica para concretizar seus planos. Marcelino é cafuzo, filho de negros e índios, e tem uma mentalidade dócil, inocente e ingênua.

A Praia do Nego Forro é o resumo do Brasil arcaico. Praticamente isolados da civilização, os valores principais são a amizade, o companheirismo e a fé. O melhor amigo de Marcelino é Tião, negro neto de escravos que viviam em quilombos, proprietário de um lote de terras ao pé da serra, em constante litígio com a empresa de estradas de ferro, que querem lhe tomar sua posse. Tião é o resumo da luta que os ex-escravos e filhos de escravos ainda têm em busca de sua cidadania. A comunidade também trabalha de maneira integrada. Quando um não pode, os outros ajudam.

Por um acidente, Marcelino terá que trocar por alguns meses seu lar pela capital federal, na época localizada no Rio de Janeiro. O contraste entre a vida na Praia do Nego Forro e no Rio de Janeiro, que têm como única semelhança o mar, acaba provocando um extremo desconforto em Marcelino. Seu coração também está dividido, entre o sexo de Eve, o corpo de Sibila e o carinho de Martinha, filha do dono do armazém.

O texto de Oliveira é rápido, elegante. Não há travessões para indicar os diálogos. No entanto, sentimos as personagens conversarem dentro de nossas cabeças. Oliveira usa e abusa do vocabulário, e sabe usar as palavras como um pescador analisa os ventos e marés para saber onde estão os cardumes. Mas acima de tudo Oliveira sabe escrever bem, e não são poucos os momentos em que vamos às lágrimas com as suas palavras.

Godofredo de Oliveira Neto
É catarinense, nascido em Blumenau, em 1951. Mestre e doutor pela Universidade de Sorbonne (Paris, França), é professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio do Janeiro (UFRJ). Além desses dois romances, também fazem parte da lavra de Oliveira Faina de Jurema, O Bruxo do Contestado e Oleg e os clones, entre outros.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho