A literatura portuguesa contemporânea tem atravessado um período de sensível mudança, notadamente na ficção, quando comparada à das décadas anteriores. No início dos anos 80, o romance português viveu um verdadeiro boom, uma resposta (para muitos tardia) à Revolução dos Cravos, de abril de 1974. Autores estreantes e veteranos ousavam formalmente, em romances que tematizavam, principalmente, a história de Portugal. É a década que viu surgirem António Lobo Antunes, Mário Cláudio, Lídia Jorge e Mário de Carvalho, além da melhor fase de José Saramago e de algumas dos maiores livros de José Cardoso Pires, Augusto Abelaira e Agustina Bessa-Luís. Predominavam, nessa produção, memórias das guerras coloniais, autobiografias ficcionais, romances históricos pós-modernos. Hoje, porém, as preocupações parecem ser outras. A ousadia formal não foi abandonada, mas a História não parece ser mais o tema principal, pelo menos não com a ênfase de há 20 anos.
Embora a literatura portuguesa ainda não seja publicada no Brasil com a merecida regularidade, nos últimos anos o volume de publicações tem aumentado consideravelmente. Se considerarmos apenas os autores mais jovens (digamos, na casa dos 30 anos) lançados no Brasil recentemente, temos uma lista de nomes bastante representativa do que se faz hoje em Portugal: Filipa Melo, Jorge Reis-Sá, Faíza Hayat, Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, entre outros. São autores muito diferentes entre si, de modo que seria difícil afirmar o que suas obras teriam em comum, ou quais seriam as tendências estilísticas e temáticas dessa “geração”.
Mas o leitor pode sempre arriscar alguns palpites. E os escritores também. Em entrevista concedida recentemente ao programa Espaço Aberto, apresentado por Edney Silvestre na GloboNews, a escritora Patrícia Reis opinou que, caso haja algum tema em comum entre os novos escritores portugueses, seria a reflexão sobre a vida cosmopolita e a busca de sentido em uma sociedade de consumo, em que se valoriza a ausência de compromisso e as relações são cada vez mais descartáveis. Se ela está certa, seus livros Amor em segunda mão e Morder-te o coração, lançados recentemente pela Língua Geral, são romances exemplares neste sentido.
Polifonia
Amor em segunda mão é composto por um apanhado de vozes, o que vem lhe rendendo a alcunha de romance polifônico. De fato, são vários personagens que contam suas histórias, em capítulos curtos que levam o nome de cada narrador. Há uma mulher que, infeliz no casamento, descobre um hobby e um amante; um casal enfrentando uma doença terminal; outra mulher bem-sucedida que se perde em relacionamentos superficiais; um marido frustrado descobrindo a homossexualidade. Mesmo quando ausente, o sexo está sempre por perto. É a iniciação sexual que está em jogo na curiosidade infantil pelo relacionamento dos pais, ou nos tropeços e inseguranças de um casal de amigos que se tornam amantes.
Trata-se de um romance que se lê rápido, o que pode causar a falsa impressão de superficialidade. No entanto, Patrícia Reis é uma escritora ciente de seus procedimentos. Os capítulos curtos se sucedem rapidamente ao sabor da leitura, e terminam por construir uma espécie de mosaico (essa palavra tão desgastada, mas ainda bastante pertinente para a análise da ficção contemporânea) de sentimentos e afetos. É preciso que se diga que Patrícia Reis é uma escritora sem medo de soar sentimental, mas resiste ao melodrama, principalmente ao optar pela economia de gestos e palavras.
Quando saí de casa a Júlia ajudou-me com a mudança. Apareceu-me com uma mão cheia de cabides novos.
Para que é isso?
Assim, tiras a roupa e deixas cabides novos.
Mas o meu coração estava tão vazio que tinha atirado a roupa para dentro de sacos de lixo de cinqüenta litros, a roupa aos molhos, sem critério. A Júlia ficou a olhar para mim destroçada na sua eficiência.
Já Morder-te o coração é temática e formalmente muito próximo a Amor em segunda mão. O romance se divide em três partes. A primeira é composta pelas vozes de um casal, de início não nomeado: são apenas “Ele” e “Ela”. Não se trata propriamente de um diálogo, embora suas falas sejam dirigidas um ao outro. Ele se lembra de como se conheceram em um verão nos Açores e tiveram um caso amoroso arrebatador, até que ela fosse embora misteriosamente, levando consigo sua verdadeira identidade. O homem se dedica, então, a uma busca improvável pela mulher, busca que o leva a Estocolmo e a Lisboa. Em capítulos alternados, a mulher (que, descobriremos mais tarde, chama-se Maria) conta sua história de vida: como teve uma infância difícil, seu primeiro casamento, sua paixão pela fotografia, e sua capacidade em adotar diferentes identidades. A seu respeito, o amante abandonado declara:
Agora sei que és um camaleão. Que te esbates na paisagem para que ninguém te veja e que a tua dor está apenas no contorno da dor dos outros. (…) Como te perdeste algures, vives nos outros. Calculo que não te vejas ao espelho porque se te visses terias medo e fugirias ainda mais.
Talvez seja nessa possibilidade de “viver nos outros” o mais importante sentido para o amor, neste romance. O amador se transforma na coisa amada. É assim também na segunda parte do livro, narrada por Anna, a mulher com quem o protagonista da primeira parte viveu em Estocolmo. Desta vez, é ele quem vai embora, abandonando-a aos restos de um triângulo amoroso desfeito. E, finalmente, na última parte do livro, esse mesmo homem retoma a narrativa para contar seus dias de velhice e solidão, tendo adotado, também ele, uma espécie de nova identidade.
Como em Amor em segunda mão, as identidades se formam em função dos relacionamentos, sempre maculados pelo passado. De modo que Morder-te o coração não é apenas um mosaico de vozes distintas, mas de fragmentos de memória, com grandes vazios de sentido. E é muito significativo que Maria seja uma fotógrafa, e que sua exposição seja composta principalmente por retratos. Em usas palavras,
O que importa não são os rostos, é a liberdade extrema de os trabalhar. Ela faz com que a imagem funcione. Em frente ao computador posso manipular a realidade. Tenho esse poder (…). As fotografias são apenas um princípio do trabalho e enquanto vou trabalhando no Photoshop revejo as histórias das minhas mulheres reclusas. Admiro a generosidade com que contaram a vida, na certeza de que aqui e ali, quase sem darmos por isso, há um princípio de mentira, uma ilusão, uma fachada que encobre uma vivência que sendo só delas é impossível partilhar.
Os dois romances de Patrícia Reis tratam de pessoas desorientadas, em busca de um sentido que só encontram no outro. No caso de Morder-te o coração, o tom é mais negativo: cada um dos personagens perde o momento da escolha, uma frase mínima, um gesto, que mudaria o rumo das coisas. Mas não: “Hoje, quero que saibas que não te disse nada e quando te pedi para me morderes o coração era só para me certificar que ele existia no meu peito. Tu preferis-te beijar-me, nunca me mordeste e, assim, fiquei sem saber”. Para personagens como Maria, inventar identidades para si e para os outros é controlar (ainda que ficcionalmente) um descompasso que é incontornável.
Patrícia Reis é uma escritora a se acompanhar. Há quem diga que não há nada de novo em uma história de amor: talvez elas sejam todas iguais, com simples variações, e só seja possível mudar o modo de contá-las. Talvez. Mas nas mãos de uma escritora talentosa, que arrisca em busca de uma forma particular, as velhas histórias de amor podem render momentos de bela literatura, um verdadeiro antídoto ao cinismo.