História e grito

Dacia Maraini revela, com lirismo e crítica, a condição feminina na Sicília do século 18
Dacia Maraini, autora de “A longa vida de Marianna Ucrìa”
01/09/2025

A longa vida de Marianna Ucrìa é o livro mais conhecido de Dacia Maraini, considerada uma das grandes vozes da literatura italiana; sua convivência com Alberto Moravia e a amizade com Pasolini (a quem dedicou um livro) são momentos significativos de seu percurso.

A primeira tradução é de Mario Fondelli, publicada em 1994 pela Objetiva. Esta nova tradução, de Francisco Degani, traz um olhar atento para toda a reconstrução histórica que está na base da trama, inclusive para as partes em dialeto siciliano, que haviam tido tratamento diferente na edição de 1994. Em 31 anos, muita coisa aconteceu e mudou no campo da tradução literária. Se traduzir, como aponta Marcos Siscar, “não é decifrar, mas executar uma partitura sui generis, processo no qual o tradutor dá corpo e realidade a um conjunto não saturável de sentidos”, é uma alegria ter essas duas traduções em momentos diferentes.

O livro de Maraini foi publicado na Itália em 1990 e recebeu vários prêmios, já vendeu mais de um milhão de cópias e está traduzido para mais de 25 países, além de ter sido adaptado para o cinema, em 1997, pelo diretor Roberto Faenza, o mesmo de Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi.

Este romance é fruto de uma mistura interessante: imaginação, pesquisa e memória. Isso porque Maraini se inspira na vida de sua antepassada Marianna Alliata Valguarnera, estuda e pesquisa por mais ou menos cinco anos para reconstruir os hábitos, as roupas, os cheiros — um detalhe importantíssimo —, modos de pensar e fazer, o dialeto, os comportamentos e os costumes; e depois a imaginação é o fio que conduz o leitor pela história de três gerações dessa família. O início de tudo está em um quadro na casa de Bagheria, pertencente à família da autora; é aqui que ela vê o retrato de Marianna, que a inquieta e, pirandellianamente, pede para se tornar uma personagem. Maraini lembra que o encontro de seus olhos com os olhos da pintura — tristes e alegres —, aliado ao fato de saber da condição de surda-muda, é o estopim para que a figura do quadro começasse a falar com ela. Maraini, então, começa a ler livros e a frequentar bibliotecas para se documentar.

Uma das primeiras cenas do livro insere o leitor na brutal e cruel realidade de uma prisão, onde um garoto é justiçado pelo Tribunal da Inquisição:

No fundo do corredor, encontram escadas íngremes de pedra escorregadia […] Os degraus de pedra destilam umidade e se enxerga mal, apesar de um guarda os preceder, carregando alta uma tocha acesa. Não há janelas, altas ou baixas. De repente, cai uma noite com cheiro de óleo queimado, excrementos de rato, gordura de porco.

Já neste fragmento tem-se um detalhe que marca esta escrita: o cheiro. O cheiro é uma marca, um rastro de algo; nesses momentos de grande construção literária, talvez se possa perceber o entrelaçar de imaginação, pesquisa e memória, que é oferecido ao leitor. Na verdade, o cheiro pertence ao infraordinário, àquele familiar cujo reverso pode ser o infamiliar; é, certamente, um elemento do ritmo dessa narrativa.

Em outro momento, é primeiro o cheiro da mão de Innocenza (a cozinheira da casa) e depois o toque que oferecem um acolhimento:

A mão gorda, com um bom cheiro de alecrim misturado com sabão, pousa no ombro da patroa e a sacode docemente como que para livrá-la dos pensamentos espinhosos. Por sorte, Innocenza não sabe ler: bastará um gesto para tranquilizá-la. Não é preciso mentir para ela.

Condição humana
Mas o que chama a atenção neste que pode ser considerado um romance histórico moderno? O que fala e como fala este romance em nossa contemporaneidade? Numa de suas muitas entrevistas, Dacia Maraini diz que gostaria que a personagem Marianna pudesse ser uma companhia com seu silêncio carregado de pensamento. O romance, mesmo retratando a história de uma família aristocrática na Sicília do século 18, traz alguns questionamentos que nos inquietam: o papel da mulher na sociedade, as injustiças sociais, brigas familiares, as relações humanas, enfim, a própria condição humana. Os acontecimentos são entremeados por festas e grandes recepções, que vão tecendo o cenário de uma sociedade hierarquizada e altamente patriarcal — o que não deixa de ser, ao mesmo tempo, um quadro desencantado da vida siciliana na metade do século 18.

Marianna era surda-muda, mas já fizera treze anos, a idade em que as moças se casam. Além disso, concordaram a senhora mãe Maria e o senhor pai que era um desperdício dar Agata ao tio; com sua beleza, seria possível contratar um magnífico casamento. Por isso, era justo que fosse Marianna a se casar com o excêntrico Pietro, que se mostrava ser-lhe muito afeiçoado. Também havia uma necessidade urgente de dinheiro vivo para pagar dívidas antigas e novas; era preciso reformar o palácio da Via Alloro, que caía aos pedaços, comprar carruagens e cavalos e renovar todas as librés da casa.

Porém, Marianna não nasceu surda-muda, não se lembra por qual motivo começou a habitar o silêncio aos cinco anos, quando seus ouvidos se recusaram a ouvir e sua boca emudeceu. Esse estado é consequência de um grande trauma: o estupro sofrido na tenra infância, do qual ela não guarda lembrança, mas traz inscrita no próprio corpo essa experiência — o ouvido e a boca se fecham.

E é justamente essa sua peculiar condição que vai fazer com que ela tenha acesso à biblioteca do pai — a coisas que as outras mulheres da família não podiam ter. Será uma leitora, por exemplo, de Hume. Ela vai descobrindo o universo dos livros, um mundo outro, aprende a ler e a escrever e passa a se comunicar por meio de bilhetes com todos aqueles que a cercam. Maraini, na verdade, vai dando voz e potência para essa VOZ, na medida em que esse corpo passa a não ser mais um fantasma:

Entrou e saiu das vestes como um fantasma, seguindo um sentimento de dever que não vinha de uma inclinação, mas de um sombrio e antigo orgulho feminino.

A escritora vai escavando dentro da vida da personagem e mostra que “toda vida é um verdadeiro microcosmo”.

No seu silêncio, pululam pensamentos. Marianna, a protagonista enredada pelo silêncio, descobre mundos desconhecidos a partir da letra, da capacidade de fazer com a palavra, enfim, com a escrita. De fato, a escrita se torna um meio de comunicação com o mundo. A escrita como um olho outro, um furo que remexe no passado para pensar um futuro diferente. Um isolamento que abre espaço para a leitura, uma abertura para diferentes mundos; a página escrita que lê, que se sonha, que se deseja. É o passar de uma página à outra, nas leituras e na escrita, que faz com que ela olhe para além do seu limitado e controlado cotidiano.

O silêncio é uma água morta no corpo mutilado da menina que recém completou sete anos. Naquela água parada e clara boiam a carruagem, os terraços com panos estendidos, as galinhas que correm, o mar que se vê ao longe, o senhor pai adormecido. Tudo isso pesa pouco e facilmente muda de lugar, mas cada coisa está ligada à outra por aquele fluido que mescla as cores e desfaz as formas.

Essas são as coordenadas iniciais da protagonista Marianna Ucrìa, que vive num espaço que lhe nega o direito à palavra.

É só mais para o final do livro que o leitor vem a saber da brutal violência sofrida: seu tio, o futuro senhor marido, é quem a estupra. Hélène Cixous, ao falar sobre a escrita, diz ser esse gesto uma forma de recuar do esquecido, um modo de não se surpreender com o abismo. Se a escrita de Dacia Maraini olha para um passado longínquo, para histórias que fazem parte de sua família, essa mesma escrita pode ser vista como um grito. A vida de Marianna, de algum modo, pode evocar a de tantos outros nomes, como o de Artemisia Gentileschi. A sensibilidade da protagonista a leva, então, a refletir sobre a condição humana, sobre a sua própria condição — a feminina —, numa trama de poder e injustiça, num universo falocêntrico do qual ela mesma é uma vítima.

Neste romance de Maraini, o passado volta para falar ao presente, para além das fronteiras culturais, porque o que está em questão é a condição feminina. Marianna traz consigo os outros personagens femininos presentes no romance, que falam sobre o espaço da mulher. A letra, aqui, é uma janela. Do silêncio ao grito, da reclusão à independência, é esse processo que o olhar cortante de Maraini, além da precisa reconstrução da história siciliana, oferece para quem lê.

A longa vida de Marianna Ucrìa
Dacia Maraini
Trad.: Francisco Degani
Nova Alexandria
256 págs.
Dacia Maraini
Nasceu em Fiesole, na região da Toscana (Itália), em 1936. É uma das mais importantes escritoras italianas contemporâneas. Autora de romances, peças teatrais e ensaios, tem obra marcada por temas como a condição feminina, memória e justiça social. Foi companheira de Alberto Moravia e amiga de Pasolini. Seus livros foram traduzidos para mais de 25 idiomas e premiados internacionalmente. A longa vida de Marianna Ucrìa é seu romance mais conhecido.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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