Urbanidade, desigualdade social, drogas, cultura pop e de massa, globalização, existencialismo, novas tecnologias, criminalidade, neoliberalismo, multiculturalismo. Eis aí uma listagem dos principais elementos que compõem o universo da recente literatura latino-americana. Universo que engloba sobretudo os autores nascidos a partir da década de 1960 e que, é bom que se diga, tem gerado, em boa parte, uma literatura de alto nível. Prova disso são escritores como Mario Bellatin, Efraim Medina Reyes, Edmundo Paz Soldán, Alberto Fuguet, Santiago Gamboa e Jorge Franco Ramos (para ficarmos só em alguns nomes). E se por um lado esse novo contexto social, econômico e político da América Latina tem sido pródigo na geração de motes para os novos escritores, por outro será explorado como ferramenta a possibilitar a superação do essencialismo reducionista que — alimentado mundo afora pela literatura de García Márquez e companhia — associa o continente latino-americano ao exótico, ao arcaico e ao sobrenatural. Exemplos notórios de utilização dessa ferramenta são as correntes literárias Crack e McOndo, ambas surgidas na segunda metade da década 1990. Contudo, além de entendermos esse posicionamento antitético à “herança maldita” do realismo mágico apenas como um processo de reconfiguração identitária de um continente, devemos entendê-lo ainda como um processo de reconfiguração da identidade do próprio indivíduo latino-americano. O que nos permite, óbvio, incluir aí (e destacar, pois nossa finalidade é literária) o indivíduo-escritor latino-americano. E o que vemos hoje é que aquele criador como porta-voz de utopias e projetos coletivos entrou em declínio e sumiu do mapa, não lhe interessa fazer parte do todo, do nacional, muito menos ainda do continental.
A desconfiança de toda crítica ideológica e seu dogmatismo passou a ser um dos traços dominantes do escritor contemporâneo que, de dentro de sua jaula (qual um animal acuado), limita-se, no mais das vezes, a arreganhar os dentes para a cultura racionalista e objetiva que é a cultura de mercado. E isso se dá no simples e puro fato de se fazer algo tão subjetivo: literatura. Escrever, em muitos casos, passou a ser o elemento fundamental de ancoragem, de sobrevivência da identidade pessoal dentro de um mundo mercadológico homogeneizante. Por isso, seria bom lembrarmos também que tentar encerrar qualquer desses escritores contemporâneos num rótulo literário específico (mesmo que por vezes eles mesmos se associem a uma ou outra corrente, como nos casos do Crack e McOndo) seria tentar mostrá-los como farinha do mesmo saco. Seria buscar numa certa “equalização temática”, ou de qualquer outra ordem, o fácil argumento de que há uma homogeneização criativa entre eles, quando na verdade o que buscam incessantemente é fugir a essa homogeneização por meio (como já dissemos) do ato criativo e da fruição estética, que funcionam como recursos para a conformação de sua identidade individual. Mesmo porque ninguém escreve para ser igual. Então, ao falarmos desse novo ciclo da literatura latino-americana, devemos nos forçar a entendê-lo como uma tela repleta de matizes criativos e de linguagem e, às vezes, temáticos. Ou seja: forçar um pouco mais o olhar para aquilo que torna (não à-toa) cada um desses escritores uma voz distinta entre tantas outras que tentam gritar em meio à multidão.
E a partir dessa tomada de consciência de que não devemos buscar uma equalização para os novos escritores é que surge uma questão paradoxal a este próprio texto. Será que a literatura latino-americana deve ser enxergada apenas a partir dos elementos de que falamos lá no início, elementos da nossa chamada pós-modernidade (termo sempre tão debatido e arriscado)? E aqui nos lembramos de uma pergunta feita pelo antropólogo argentino Nestor García Canclini: “Como falar de pós-modernidade num continente onde surge o Sendero Luminoso, que tem tanto de pré-moderno ou ainda o exército zapatista?”. Sim, somos também e ainda anacrônicos. Atrasados. Apesar de toda a nossa urbanidade. De toda a nossa conexão cultural com o globo. De nossa economia de mercado em expansão. De nosso multiculturalismo e etc., etc., etc. E não venham dizer que quando os europeus nos rechaçam em seus aeroportos (nós, os imigrantes/turistas vindos das ex-colônias e das regiões mais pobres do planeta) ou os Estados Unidos constroem um muro na sua fronteira com o México para isolar não apenas esse país mas toda a América Latina, nós, cucarachos, não voltamos a nutrir aquele não tão velho e muito menos enterrado sentimento de inferioridade e impotência? Eis aqui o outro lado da nossa quase sempre desvalorizada moeda. Lado que, é bom que se diga (e vamos dizer), vai ser explorado por um dos mais incensados escritores da literatura contemporânea: o mexicano David Toscana — prova viva de que as tentativas de equalização para os novos escritores seria mesmo uma atitude reducionista.
Entre ironia e drama
Depois de dois romances bem recepcionados no Brasil — O último leitor (2005) e Santa Maria do circo (2006) —, a Casa da Palavra lança agora a mais recente obra desse mexicano de Monterrey: O exército iluminado. De maneira por vezes bem-humorada e irônica, por vezes cruel e dramática (a oscilação entre ironia e drama é uma das grandes competências do autor), Toscana, nesse novo romance, volta ao passado para tecer uma metáfora sobre um presente problemático. Um presente que contém não só a opressiva influência dos Estados Unidos na América Latina (iniciada lá atrás no tempo), mas também o nosso inesgotável sentimento de inferioridade e impotência frente ao dito mundo desenvolvido (apesar de nossa “pós-modernidade”). Por outro lado, o autor, nesse mesmo livro, vai aproveitar para tecer uma forte crítica à condição de seu país que sofre com as lideranças, quer seja, há alguns anos, com Vicente Fox (que segundo declaração do próprio Toscana passeava pelo país contando piadas ou ficava sentado em seu trono sem fazer nada), quer seja com o atual presidente, Felipe Calderón, eleito sob suspeita de fraude e, para Toscana, uma figura neutra.
Indo um tanto mais longe, se nos é permitido, Toscana, consciente ou não, faz da figura da personagem principal desse seu novo livro, Ignacio Matus (professor de história, maratonista e patriota inveterado), também uma sátira ao paternalismo ligado à figura do líder político e tão arraigado na cultura do nosso continente. Quantas vezes não nos vimos carentes de um tutor ou de um delirante líder carismático (ditadores, populistas e demagogos de esquerda e direita) que nos leve pelas mãos diretamente para algum abismo? Ou pior: carentes de um caudilhozinho básico — figura que, segundo Canclini, “continua guiando as decisões políticas com base em alianças informais e relações rústicas”. Isso não seria o outro lado da nossa moeda, a nossa pré-modernidade explorada, nas entrelinhas, por Toscana?
Deixando um pouco de lado a abordagem extraliterária, O exército iluminado, assim como os livros anteriores, se apresenta ao leitor, já desde as primeiras páginas, com a deliberada missão de instigar o leitor por meio de uma trama inusitada e lúdica, em que as personagens mais uma vez ganham um tom alegórico. O ponto central é a história de um exército formado por crianças com problemas mentais (Comodoro, Azucena, o Milagro, Ubaldo e Cerillo) que é conduzido por Ignacio Matus rumo aos Estados Unidos. O objetivo é reconquistar o Texas, território perdido pelo México no século 19. Em paralelo, temos a história pessoal de Matus como maratonista que vai nos revelar outra história de “reconquista”. Matus crê que a medalha de bronze ganha por Clarence DeMar, corredor norte-americano, na maratona das Olimpíadas de Paris, em 1924, lhe pertence, pois no dia dessa competição, ele percorre a mesma distância (nos arredores de Monterrey) num tempo menor que o de Clarence. A partir disso, o professor de história passa a escrever ao norte-americano lhe cobrando a medalha. Assim como crê que o Texas pertence ao México, Matus crê que a medalha conquistada pelo gringo lhe pertence. Como o tempo presente da narrativa se passa em 1968, ano em que o exército iluminado parte rumo aos Estados Unidos, nos fica a dúvida: o objetivo bélico de Matus não seria mais uma vingança desencadeada por um fato ocorrido em seu passado pessoal do que realmente uma tentativa de recuperar a honra perdida de seu país quando da perda de metade do território para os ianques? O romance gira, então, em torno de uma frustração individual e de um sentimento que se pretende coletivo (nacional), numa ambivalência que ora mostra o homem mexicano como forte e destemido, ora como destituído de auto-estima, abatido e derrotado, cobrando dos mais fortes e vencedores aquilo que eles nunca acharão ser de direito dos perdedores. E essa não seria mesmo a nossa ambivalente condição latino-americana?
Contudo, Matus segue instigando seu exército a uma vingança coletiva, com o intuito de lavar a alma mexicana. Para isso, seus soldados se armam de pequenas mochilas com mudas de roupas, uma e outra arma e (o mais cômico) tachinhas. Para piorar, tentam cruzar o rio Bravo em cima de uma charrete puxada por uma mula (eis o lado arcaico latino-americano trazido à tona e que contrasta com toda a nossa “pós-modernidade”). E essa total falta de senso da realidade (sobretudo em relação ao que é uma guerra) coloca as personagens de O exército iluminado num diálogo direto com Dom Quixote e seus desvarios. Numa época de anti-heróis, Toscana, quixotescamente, resgata a figura do herói e também o sentimento de que somos capazes de atos grandiosos apesar de nossas limitações. Vale ressaltar que o tom irônico e muitas vezes anedótico da narrativa mitiga o caráter disso (esse superar limitações) que poderia soar piegas ou coisa de livro de auto-ajuda. Por isso não seria tolo dizer que O exército iluminado apesar de nos trazer uma visão fatalista da história (em que os fatos do passado já não podem ser modificados), nos permite, através de seus iluminados, ao menos supor que a imaginação, ao menos ela, pode mudar a “ordem das coisas”. Contudo, também não há que se confundir isso com boas intenções literárias. Pois de boas intenções a má literatura está cheia. Essas leituras ficam mesmo como subjacentes, pois não devemos nos esquecer de que os livros de Toscana são feitos de histórias de fracassos. Fracassos que lhe possibilitam criar personagens sempre marginais, quer sejam esses iluminados que antes de se tornarem soldados ficavam colorindo desenhos idiotas na escola, quer sejam as aberrantes criaturas da trupe circense de Santa Maria do Circo ou mesmo o bibliotecário, marginal em sua condição de apaixonado por livros, de O último leitor. E, nesse sentido, o que salta mesmo aos olhos quando lemos os livros de Toscana é a sua maneira de colocar de modo inusitado a cada vez essa questão dos marginais. O autor talentosamente se salva da repetição criando figuras pouco convencionais que, como dissemos antes, possuem um caráter alegórico.
Guerra surreal
Interessante ainda em O exército iluminado é ver como nos serão passadas as imagens da guerra de “reconquista” do Texas planejada pelas personagens. Quando começamos a ler o livro e a ver as idéias de Matus de travar uma guerra contra os Estados Unidos ganharem corpo, até chegar à formação do pequeno exército que parte rumo ao norte, ficamos a imaginar como o autor vai narrar uma guerra que sabemos ser impossível acontecer. Uma guerra surreal visto a indiscutível e total limitação do exército iluminado. Eis que, então, Toscana habilmente se utiliza de um procedimento narrativo bastante peculiar: faz com que quase todos os fatos se dêem como projeções mentais das suas personagens. Assim a guerra vai ganhando volume dentro das cacholas dos iluminados e, por vezes, isso nos dá a sensação de que eles a estão mesmo vivenciando. Mas na realidade, a coisa é bem diferente. Não acontece praticamente nada. As personagens rumam para o norte desorientadas, em meio a uma paisagem árida, desolada. Num determinado ponto, Matus se perde pelo caminho. A partir daí, os cinco soldados seguem sozinhos e ao chegarem num casarão que supõem ser El Álamo (referência ao forte conquistado pelos rebeldes norte-americanos durante a Revolução do Texas em 1836, depois retomado pelos mexicanos), a total falta de noção da realidade leva-os a confundir um homem campesino com um combatente ianque e a matá-lo. O assassinato fará com que sejam tidos como guerrilheiros, provocando, então, a reação do exército nacional mexicano que cerca o lugar. E depois de tantos delírios sobre guerra, heroísmo, gringos, morte, estratégias, o que sobra mesmo, na realidade, é o corpo sem vida do gordo Comodoro, atingido por um tiro. Nem é preciso dizer que ele se tornará herói nacional apenas na cabeça desvairada de Matus. Comodoro morrerá sem glória alguma; no seu enterro, apenas duas ou três pessoas. E Matus, esse permanecerá para o resto da vida num total e cruel anonimato.
Após falarmos do procedimento narrativo de Toscana (em que muito do que acontece se dá por meio das projeções mentais de suas personagens), vale ainda ressaltar que isso foi um dos fatores responsáveis pelo rótulo (eis os rótulos) de realismo desquiciado (desvairado, desordenado) aplicado a sua ficção. Válido ou não, o termo designa ao menos que Toscana traz um toque todo singular em sua maneira de narrar.
Por fim, nos vemos obrigados a acrescentar — e isso talvez invalide não só a nossa análise feita a partir dos questionamentos políticos que a obra suscita mas também a nossa verve analítica, convenhamos, por vezes muito sociológica — que O exército iluminado é, sobretudo, um romance que nos convence pela sua inventividade, pelo humor corrosivo que não muitos livros (não, mesmo) têm tido capacidade de demonstrar. Convence-nos porque celebra como poucos o prazer, o simples prazer (e isso também é necessário em boa literatura), de ler e escrever. E já que a literatura não tem (nem nunca deverá ter) por obrigação ser deliberadamente política ou social, nem ser pregadora de verdades ou se construir sobre as bases do racionalismo e da objetividade, fica-lhe sempre a oportunidade da fabulação para falar da realidade que nos toca, da atualidade ou do passado que nos fere. David Toscana nos fica com um grato exemplo daqueles que não desperdiçam tal oportunidade.