História da Inteligência Crítica

O homenageado especial da ExpoLivro 2000, realizada entre 1 a 10 de setembro do Parque Barigüi em Curitiba, é um dos maiores, se não o maior crítico literário da língua portuguesa de todos os tempos
Wilson Martins, autor de “O ano literário”
01/10/2000

O homenageado especial da ExpoLivro 2000, realizada entre 1 a 10 de setembro do Parque Barigüi em Curitiba, é um dos maiores, se não o maior crítico literário da língua portuguesa de todos os tempos. Wilson Martins nasceu em São Paulo, no dia 3 de março de 1921, e tomou gosto pela leitura ainda no curso primário na Escola Rural Mista da Fazenda Martinópolis, em Ribeirão Preto (SP). Em 1930 sua família mudou-se para Curitiba, e o então aluno do Ginásio Paranaense, entre 1933 e 1937, alimentava seu espírito na Biblioteca Pública do Paraná, funcionando na época em duas salas do colégio, por falta de sede própria. “Quando a Biblioteca Pública do Paraná foi instalada em sua sede atual, comecei a ler sistematicamente, por prazer, todos os livros existentes ali. Às vezes penso que li todo aquele acervo, uma vez que passava todos os dias e todas as tardes lendo. Foi uma base extraordinária e, assim, adquiri o vício da leitura, deixando de lado carnaval, passeio e futebol”.

Seu primeiro emprego regular foi como revisor da Gazeta do Povo, em 1936, tendo atuado também no jornal O Estado (extinto em 1937), até ser contratado para o cargo de secretário de redação do Diário dos Campos –  em Ponta Grossa, de onde retorna como locutor da Rádio Clube Paranaense – PRB-2. Os primeiros textos de crítica literária assinados por Wilson Martins foram publicados no jornal curitibano O Dia, hoje desaparecido. Ele faz questão de ressaltar que uma grande carreira é construída lentamente. “A gente começa escrevendo artigos inferiores, apaixonados, que é a tendência natural do jovem. Eu iniciei na crítica aos 20 anos, e nesta idade a gente escreve muita coisa da qual se envergonha posteriormente. À medida que se prossegue na carreira, aumenta o volume de leitura e o conhecimento é ampliado. Ninguém é um grande crítico aos 20 anos. Pode até haver algum gênio juvenil, mas isso não deve ser levado em consideração.” No ano de 1945, participou do 1º Congresso Brasileiro de Escritores, em São Paulo, e foi convidado para colaborar em O Estado de S. Paulo, exercendo aí a função de crítico literário por 20 anos. No momento, Wilson Martins publica seus textos semanalmente nos jornais O Globo e Gazeta do Povo. Aos 79 anos, mais de 50 deles no exercício da crítica semanal, ele define – com base nessa experiência –  o crítico como alguém que sabe ler, não apenas as palavras, mas a obra literária. “Lendo e compreendendo os problemas humanos, psicológicos, as técnicas literárias, o crítico deve saber transmitir esse conhecimento ao leitor, para que este perceba que determinada obra tem qualidade ou não. É preciso evitar a opinião. O crítico pode dizer que o livro é ruim, mas tem de explicar isso com argumentos”.

Formado em Direito, em 1943, pela Faculdade do Paraná, atual UFPR, ele prestou concurso de cátedra na Faculdade de Filosofia, recebendo o título de doutor em Letras em 1952. No ano de 1947 foi bolsista do governo francês, tendo assistido a aulas de Maurice Levaillant, na Ecole Normale Supérieure, e de Jean Pommier, no Collége de France. “Ao concluir a bolsa e observando que não havia nenhum curso específico de crítica literária nas universidades francesas, fui convidado a apresentar um plano para a criação dessa cadeira, posteriormente transcrito em apêndice em minha tese de cátedra: Les théories critiques dans l’histoire de la littérature française”, comenta o crítico. Naquela época, colaborou na revista Joaquim, editada mensalmente por Dalton Trevisan em 1948, com grande repercussão nacional.

Sua carreira de professor universitário iniciou em 1948 e, por mais de 10 anos, lecionou as disciplinas de língua e literatura francesa na Faculdade de Filosofia no Paraná, até que no ano de 1962 houve uma grande e definitiva mudança em sua vida. “Fui lecionar literatura brasileira em Kansas, EUA, onde permaneci por um ano. Quando me preparava para retornar ao Brasil, em 1963, a Universidade de Wisconsin-Madison fez um convite e aceitei. Lecionei dois anos no território norte-americano, e inesperadamente a Universidade de Nova York fez uma nova proposta. Em 1965, eu e minha esposa, a Annie, fomos morar em Nova York, mas com o dinheiro da passagem de volta guardado no bolso, caso não desse certo. Fiquei 26 anos em Nova York, me aposentei por limite de idade e voltei em 1991 para Curitiba”. Em sua temporada no exterior, Wilson Martins produziu obras fundamentais para a compreensão da literatura brasileira, hoje verdadeiros clássicos, como O Modernismo (1965), História da Inteligência Brasileira (1976-1979) e A Crítica Literária no Brasil (1983).

Pontos de Vista
Desde os 14 anos Wilson Martins devora um livro após outro, e atualmente acredita que o melhor horário para a leitura é depois do jantar, quando costuma ler de 80 a 100 páginas. “O livro que te adormece nas 10 primeiras páginas não presta, mas aquela obra que te deixa acordado tem valor”. Idiossincrasia à parte, Martins esclarece que para ser crítico é necessário conhecer todo o panorama de uma época, o contexto social, político e religioso do local onde a obra foi escrita. “Há uma consciência possível de cada época. No século 19 nem todos os brasileiros eram abolicionistas nem partidários de igualdade racial. Então, muita gente diz: ‘como eles eram atrasados!’ É um grande erro, afinal, naquele momento não era possível pensar como hoje. Não dá para fazer um julgamento do passado com base nas idéias atuais. Agora todos se dizem feministas, mas até certo momento isto não era possível”, ensina Martins, ressaltando o nome de Miguel Sanches Neto, 35 anos, como o mais importante crítico que surgiu nos últimos anos.

Questionado a respeito do comentário preconceituoso, que diz que “todo crítico é um escritor frustrado”, Wilson Martins responde que crítica literária e literatura de criação são duas atividades completamente diversas, exigindo, em cada caso, vocação específica. “Claro, alguns críticos escreveram ficção e poesia, e vice-versa. Mas, se o crítico escrever bem, o que nem sempre acontece, será também escritor”, raciocina. Um comentário “positivo”, assinado por Wilson Martins, pode fazer com que uma obra seja valorizada, tanto que no livro Chatô – O Rei do Brasil, o escritor e jornalista Fernando Morais observa que Terra Desumana, livro escrito por Assis Chateaubriand, só ganharia reconhecimento anos depois da morte do autor, quando Wilson Martins fez uma análise definitiva da obra em sua História da Inteligência Brasileira. E, por outro lado, uma opinião “negativa” de Wilson Martins pode perfeitamente acabar com a trajetória de uma obra, e ele tem plena consciência do poder de suas palavras. “Na minha prática, uma crítica desfavorável só se justifica quando um autor é importante, como Machado de Assis e José de Alencar, uma vez que as obras desses autores agüentam o repuxo. No entanto, é covardia criticar severamente um iniciante. O mais sensato a fazer, quando um estreante apresenta uma obra ‘inferior’, é ignorar”. Ele afirma que é um equívoco elogiar permanentemente autores importantes e recorda que T.S. Eliot, poeta norte-americano que residiu em Londres, redigiu um artigo afirmando que Hamlet, de William Shakespeare, não valia nada. “Mas Shakespeare agüenta uma crítica dessas e o Eliot tinha autoridade e argumentos para abrir os olhos dos leitores para aspectos que ninguém enxergava na peça. Afinal, Shakespeare recebe elogios sem limites, todo mundo fala bem. Mas se ele fosse entregar suas peças para um diretor de teatro atual, provavelmente elas seriam rejeitadas”.

79 anos de lucidez, e inteligência
Um dos stands mais visitados durante a ExpoLivro foi o dos Autores Paranenses, que reuniu inúmeros autores e mais de duas centenas de obras, com destaque para as presenças de Jamil Snege, Domingos Pellegrini, Ernani Buchmann, Miguel Sanches Neto, Cristóvão Tezza, Valêncio Xavier, Roberto Gomes e Sérgio Rubens Sossélla. “A literatura contemporânea no Paraná está vivendo um momento de sensível vitalidade. Não é o caso de julgá-la em conjunto, numa escala comparativa, mas os escritores individualmente e na oportunidade dos livros que publicam”. No entanto, Wilson Martins não concorda com o culto a Paulo Leminski, um fenômeno pop dos anos oitentas que até hoje tem seguidores e fiéis. “A poesia dele é feita de lugares comuns, idéias simples e trocadilhos. Não dá para comparar com os grandes poetas brasileiros, do passado ou do presente, como Drummond ou Manuel Bandeira. No contexto de seu tempo, Leminski é apenas um autor bastante secundário”, sentencia Martins, ressaltando que Leminski obteve fama por ter feito letras de músicas, que foram gravadas por Caetano Veloso, Guilherme Arantes, Morais Moreira e Blindagem. E o Leminski “crítico”? “É muito pobre. As biografias que ele escreveu (de Jesus, Cristo, Trótski, Cruz e Souza e Bashô) são informações copiadas de enciclopédias e podem enganar apenas quem não leu as obras importantes sobre os personagens. Leminski não acrescentou nenhuma idéia como crítico nem como biógrafo”, enfatiza. A respeito do “Vampiro de Curitiba”, Wilson Martins entende que ele deixou uma obra e marcou um estilo narrativo, criando um minimalismo na ficção brasileira, quando lançou Novelas nada exemplares, em 1959. “Dalton Trevisan foi o primeiro que deu ao Paraná uma presença nacional e internacional importante, mesmo por que já foi traduzido em inúmeros países. O lugar dele está garantido”.

Ano passado ele pesquisou, escreveu e no dia 17 de dezembro publicou A Invenção do Paraná, obra em que ressalta a importância do primeiro presidente da província, Zacarias de Goés e Vasconcellos. No dia 10 de agosto, em uma cerimônia realizada no escritório de Itamaraty no Paraná, o crítico foi promovido a comendador da Ordem Nacional de Rio Branco, distinção honorífica conferida pelo presidente da república para aqueles que se destacaram por seus serviços ou méritos excepcionais e – a  menos de um ano de completar 80 anos – Wilson Martins, lúcido e em plena atividade, se prepara para concluir a coleção com toda a sua crítica jornalística desde 1954, intitulada  Pontos de Vista, obra com 13 volumes já publicados. Em 2001 ele deve ser homenageado em todo o país, seja pelo conjunto de sua obra como também por sua trajetória que, por incrível que seja, não foi planejada. “Na verdade, eu nunca tive projeto nenhum. As coisas foram acontecendo e eu fui vivendo”.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho