Hilda Hilst

Hilda Hilst, 71 anos, tem escrito ao longo de sua carreira poesia, drama, ficção e crônica.
Hilda Hilst, autora de “Rútilo nada”
01/02/2002

Hilda Hilst, 71 anos, tem escrito ao longo de sua carreira poesia, drama, ficção e crônica. Entre seus temas, Deus, o Tempo, a condição humana. Desde 1966, reside na Casa do Sol, na região de Campinas (SP), onde abrigou artistas como Caio Fernando Abreu. A editora Globo está relançando toda a obra da autora. Júbilo, memória, noviciado da paixão é o primeiro lançamento em poesia da coleção e foi publicado originalmente em 1974. A obscena senhora D, em prosa, é de 1982.

Um café?
Um ser humano pode fazer muitas perguntas, em geral perguntas menores para maquiar as impossíveis. Esta é uma das pequenas: por que alguém estaria lendo mais uma resenha sobre A obscena senhora D em vez de ler o livro A obscena senhora D? Pergunta feita, um trecho para explicar a inicial D, embora seja uma explicação exigente (como todo o texto de Hilda Hilst):

DERRELIÇÃO. não, não parece triste, talvez porque as duas primeiras sílabas lembrem derrota, e lição é sempre muito chato. não, não é triste, é até bonita. Desamparo, Abandono, assim é que nos deixaste. Porco-Menino, menino-porco, tu alhures algures acolá lá longe no alto aliors, no fundo cavucando, inventando sofisticadas maquinarias de carne, gozando o teu lazer: que o homem tenha um cérebro sim, mas que nunca alcance, que sinta amor sim mas nunca fique pleno, que intua sim meu existir mas que jamais conheça a raiz do meu mais ínfimo gesto, que sinta paroxismo de ódio e de pavor a tal ponto que se consuma e assim me liberte, que aos poucos deseje nunca mais procriar e coma o cu do outro, que rasteje faminto de todos os sentidos, que apodreça, homem, que apodreças, e decomposto, corpo vivo de vermes, depois urna de cinza, que os teus pares te esqueçam, que eu me esqueça e focinhe a eternidade à procura de uma melhor idéia, de uma nova desengonçada geometria, mais êxtase para a minha plenitude de matéria, licores e ostras (pág. 36)

Hillé é a senhora D. Na herança involuntária deixada pelo seu pai, há pérolas que ele não quer que ela encontre, porque há nada dentro delas. Hillé e Ehud (na maior parte das vezes, seu marido morto) experienciam ambos a derrota do conhecimento diante da morte. Ehud teve a sabedoria de desaprender, Hillé insiste numa dúvida tão grande que se confunde também com sabedoria, da mais difícil de suportar. Ernest Becker, para quem o livro é dedicado, diz em Escape from Evil: “… é o disfarce do pânico que nos leva a viver na feiúra, e não na natural chafurda animal… o que significa que o mal em si mesmo é agora tratável para a análise crítica e, concebivelmente, para o domínio da razão”. Há outras formas de mentira, porém, para encobrir nossa fragilidade. Pode-se simplesmente fugir para as questões mesquinhas, mas esta é uma capacidade única dos “abestados e atoleimados”. Com estes a senhora D não pactua, por isso suas máscaras de espinhos, de panos grosseiros, as escatologias gritadas aos vizinhos na janela. Se todos vestissem máscaras apropriadas, “não seria preciso perguntar vai bem como vai etc., tudo estaria na cara” (pág.25).

No entanto, se Hillé recusa o disfarce e mesmo a luta diária, também não lhe é possível a chafurda animal, por mais que à vizinhança, que não consegue ignorá-la, ela apareça como uma grande porca acinzentada, e para outros ela seja uma pequena e viva porca ruiva. Hillé, para encontrar o Menino-Porco, quer ser búfalo, e sentir: “um grande corpo duro, eu búfalo sei da morte? eu búfalo rastejo o infinito?” (pág. 26). “O olho dos bichos é uma pergunta morta” (pág. 30). É diante de uma porca de verdade, a senhora P, que a senhora D percebe que a ferida do animal não pode ser sentida por ela: uma ferida opaca na superfície, mas sempre viva no fundo da carne. Assim a própria ferida da sua condição não pode ser tocada pelo Senhor. O Senhor [“só névoa e fundura/ é isso. adora-O. Condensa névoa e fundura e constrói uma cara. Res facta, aquieta-te” (pág. 47)]? Este que também esperava dela uma luz.

“E, sem poder, traduzo:”
Há um enredo insinuado na organização dos poemas em Júbilo, memória, noviciado da paixão. O teórico literário Alcir Pécora, organizador da coleção Obras reunidas de Hilda Hilst, diz que a obra “incorpora a ficção” exercitada também pela autora. Nas cantigas destinadas ao amado indiferente, o poeta intocado expõe sua mescla de tristeza e esperança. A imagem é de terra seca, para a qual o outro representa a água. Vida e amor se confundem chegando ao exagero, devido à saudade. Neste momento, o poeta acredita que o sentido da sua palavra está no amado. Pergunta-se como receberá a poesia, ou como receberá um amor talvez inoportuno diante de sua vida estabelecida.

O poeta passa a perceber, diante dessa falta do outro, a importância da Idéia, ou a idealização diária de Túlio ou Dionísio (nomes dados ao amigo para quem se destinam os poemas). O personagem se delineia como um homem assustado, incapaz de compreender o amor. O tempo, tanto o presente em que anoitece, em que o mundo desmorona (1974), como o tempo que traz a morte, aparece devorando tudo com seus dentes da morte, que em seguida surgirão na boca dos inimigos. O tempo é o bandolim desfiado pela poeta Hilda, enquanto expande-se o coração-corpo (ou o amor é a própria expansão). Esta parte termina com o poema Ária única, turbulenta, em que desiste de se vingar do amado com a imagem da própria morte: “Ou te transformas, rei de fogo e justo, /E, a quem merece, dás amor e alento// Ou se refaz em ira a minha luxúria/ Me desfaço de ti, muito a contento” (pág.101). Este poema inverte a relação: não é mais no amado que reside a vida, pois se Túlio é rei (no reino do amor), é “Por compulsão e ímpeto do poeta”.

Ao fim, os medrosos se misturam. O homem intocável dá lugar ao político: “E vermelhos Azuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas! Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados De infância, o plexo aberto, exposto aos lobos” (pág. 110). A recusa, se antes já representava a morte, agora causa revolta. O poeta afirma sua força superior às armas, porque não tem medo da idéia (ao pensar o amor, pensa o mundo), e convida os demais a, como ele, comprar seu próprio tempo, recusar o ouro porque ouro é sangue.

Próximos lançamentos
Bufólicas (poesia) — fevereiro
Cartas de um sedutor (prosa) — março
Cantares (poesia) — abril
Qadós (poesia) — junho
Exercícios (poesia) — setembro
Contos de escárnio/textos grotescos (prosa) — outubro
Da morte: odes mínimas (poesia) — novembro
Com meus olhos de cão (prosa) — dezembro

Sabrina Lopes
Rascunho