Herói primitivo

De natureza fragmentária, “Macunaíma” é uma síntese de um país em pedaços, de sua diversidade de paisagem e de pessoas
Mário de Andrade por Osvalter
01/07/2008

Como os demais grandes livros do período, o que caracteriza Macunaíma (1928), definido por Mário de Andrade como uma rapsódia, é um desejo de sabotar conceitos, de frustrar expectativas de leitura, de criar ambigüidades. É portanto uma obra programada para fugir aos moldes tradicionais, funcionando como um manual das vanguardas do começo do século 20, num momento em que experimentalismo e nacionalismo se aproximaram. Ele faz também a passagem da ótica urbana para a ótica primitiva, numa reconstrução poética dos mitos nacionais. Nenhum livro do período é mais importante do que ele, tanto pela busca de caminhos ficcionais quanto pela desnegativação da nacionalidade.

No campo da filosofia da composição, Macunaímaé produto da vanguarda paulista, fazendo parte de um arsenal teórico-crítico levantado contra a literatura que tinha o passado como verdade imutável e reproduzível. A primeira manifestação da teoria que dará origem ao romance se configura em Paulicéia desvairada (1922), livro de poemas sobre a cidade de São Paulo em que Mário de Andrade testava novos recursos estéticos. Os poemas deste livro abusam do conceito da simultaneidade, tentando flagrar por meio de cortes, reticências e justaposições a música dissonante da cidade grande. São Paulo não é apenas tema no livro, é principalmente linguagem nervosa, tumultuada, ruidosa. A cidade que se faz verbo, um verbo cheio de descontinuidades, é vista do bonde em movimento, num embalo veloz que fragmenta o real e cria novos agrupamentos. A cidade se torna móvel. Esta idéia de mobilidade é o centro semântico do livro.

Nesse sentido, a metáfora fundadora do livro é o Arlequim, personagem de identidade instável. Desde a capa do livro, composta por losangos em cores preta, vermelha e amarela, numa referência à veste arlequinal, até as palavras soltas, os versos polifônicos, os poemas fragmentários, tudo é representação deste ente carnavalesco. O próprio tom de blague que marca o livro avesso à seriedade é um atributo ligado à persona de que se vale Mário de Andrade. Ele veste a fantasia e faz uma leitura zombeteira, festiva e alcoólica da cidade, dando-lhe um estatuto arlequinal.

A figura do Arlequim, nascida na antiga comédia italiana, tinha como objetivo divertir e ridicularizar os costumes, as esquisitices e as extravagâncias da sociedade. É uma espécie de espelho irônico, um bobo da corte burguesa. Segundo o Dicionário de símbolos de Chevalier, “encarnava os papéis de jovem gaiato, de bufão malicioso, de um indivíduo matreiro embora meio pateta, e de leviano. Sua vestimenta multicor sublinhava sobretudo esse último aspecto. O arlequim é a imagem do irresoluto e do incoerente, que não se prende a idéias, sem princípios e sem caráter. Seu sabre é apenas de madeira, seu rosto anda sempre mascarado, sua vestimenta é feita de remendos, de pedaços de pano. A disposição destes pedaços em xadrez evoca uma situação conflitiva — a de um ser que não conseguiu individualizar-se, personalizar-se e desvincular-se da confusão de desejos, projetos e possibilidades”. Símbolo do fragmentário, do ser em conflito, o Arlequim é metáfora da metrópole em permanente ebulição, mas também e principalmente de um autor que não se prende a nenhuma idéia de arte, a nenhum valor seguro, buscando se apropriar de todos os legados modernos da arte.

É sintomático que Paulicéia desvairada traga uma apresentação longa, o Prefácio interessantíssimo, em que o autor se manifesta camaleônico, recusando qualquer tipo de filiação estética, e se afirmando em disponibilidade, aberto para as mudanças. Embora urbano e cosmopolita, este livro antecipa os valores de Macunaíma na figura do Arlequim. Mas há ainda um outro estágio, uma obra que amplia a proposta original de Mário, abrindo novos possíveis criativos.

Oswald, autor de Macunaíma
Em movimentos literários fortes como o Modernismo, mesmo com todas as divergências internas, as obras são construídas coletivamente. Isso foi mais praticado num período em que a idéia de autoria perdeu sua natureza exclusivista. Assim, poderíamos dizer que Macunaíma é mais uma construção do período modernista do que manifestação de um projeto pessoal. E dentro desta movimentação grupal, um dos autores de Macunaíma é o Oswald de Andrade de Pau-Brasil(1925).

Em seus poemas minimalistas, em que a língua brasileira é usada com humor e ironia, em que o eu poético percorre o país, indo de um canto a outro, de um tempo histórico ao presente, numa viagem centrípeta, que faz com que tudo se direcione para a cidade de São Paulo, temos uma ampliação do conceito de simultaneidade, que agora não é pensado apenas no interior dos versos, mas nas suas relações narrativas.

Passando dos poemas sobre a história do Brasil, desentranhados de textos dos viajantes estrangeiros, aos poemas do período colonial ou da infância cafeeira do eu lírico, para percorrer como aprendiz de turista as cidades históricas de Minas ou a festa carnavalesca do Rio, Oswald abandona, pela poesia ironicamente saudosista, as latitudes européias em nome de um país múltiplo e primitivo. Em boa medida, o herói sem nenhum caráter se confunde com a figura poética e biográfica de Oswald de Andrade, por conta de sua tendência para a blague, de seu priapismo, de seus deslocamentos pelo país, etc. Não seria incorreto afirmar que Oswald de Andrade é autor e modelo de Macunaíma, dentro desta lógica coletivista de produção.

Sem o projeto do volume Pau-Brasil talvez não se desenhasse na imaginação de Mário de Andrade a figura de Macunaíma, que solda identidades, espaços e discursos, tornando-se por sua identidade agregativa um símbolo risível do homem nacional.

Apesar das diferenças de fatura estética, os projetos de leitura de Brasil de Mário e Oswald mantêm pontos de contato. A identidade do texto e a do homem nacional são vistas pela justaposição de partes díspares. Assim, a poesia Pau-Brasil é um aprofundamento do caráter arlequinal de nossa cultura.

A palavra-chave do livro Pau-Brasilé a descoberta. Esta palavra tem vários níveis de significação no texto: descobrir o Brasil que fica sob a roupagem erudita da linguagem e desvelar suas características, não banindo os elementos estrangeiros; descobrir no sentido de mapear os caminhos possíveis da pátria, construindo itinerários país adentro, deixando-se encantar por suas paisagens e por sua gente; e descobrir no sentido de buscar a poesia naquilo que nunca foi visto, como uma espécie de disponibilidade poética para o deslumbramento.

A nossa identidade, para Oswald, é um aglomerado de elementos contraditórios. A convivência conflituosa deles é que nos caracteriza. O poeta não as escamoteia, dando-lhes uma representação literária, uma valoração exageradamente irônica.

Assim, a fórmula criativa de Oswald vai ser a justaposição de opostos, colocando lado a lado os elementos próprios do Brasil Colônia e os do Brasil burguês e industrial, mostrando os choques entre os traços pré-burgueses e burgueses. Ainda estamos dentro da idéia de uma identidade feita de pedaços, sob o signo da carnavalização, reação ao racionalismo ocidental.

Romance enciclopédico
Se o processo de composição de Macunaíma é devedor de propostas anteriores, ele ao mesmo tempo as exacerba, de tal maneira que se torna a grande obra literária do período. Desde a sua escrita veloz, em poucos dias, até o seu caráter compósito, tudo leva a pensar as peripécias do herói sem caráter como uma suma da geração de 20. Depois dele, pouco sobra do Modernismo da primeira fase, abrindo-se para nossa literatura perspectivas novas. Dentro do processo pendular da evolução literária, a literatura hegemônica no período seguinte optará por um regionalismo realista, herdando da geração anterior a preocupação com o homem fora do centro, mas recusando, por achá-lo desrespeitoso, o tom crítico-irônico. O realismo se impõe como forma de tratar sociologicamente dos dramas do homem nacional. Macunaíma, portanto, fecha um período e aponta para outro.

A primeira marca forte do livro é a geograficização. Ele tenta ser um mapa nacional em que as regiões ganham cor. O processo agora é inverso ao da viagem dos modernistas. É o ser primitivo que vem para a cidade moderna, anarquizando suas conquistas por meio de um olhar adoecido. A viagem no espaço se dá mediante recursos próprios das histórias encantadas, em sucessivas metamorfoses. O índio nascido na selva passa por evoluções bruscas e chega à metrópole para desreconhecer as coisas, dando-lhes um caráter selvagem. Este movimento, da periferia para o centro, é novo na literatura de turista dos modernistas, e vai ser o mesmo dos autores do regionalismo da década de 30.

Ao vir para cidade, a princípio em busca da pedra que simboliza o seu povo e o seu amor perdido, Macunaíma traz consigo os dois irmãos, mas também traz o tempo que separa o homem moderno do primitivo. Ele é um ser carregado de temporalidades. Assim, a viagem no espaço corresponde a outra muito mais radical, que é a viagem no tempo. Depois da chegada, ele não pára, deslocando-se continuamente pela cidade e pelo país; nestas excursões, participa de diferentes momentos históricos, mantendo diálogo com seres de outras épocas. Tudo o influencia, das culturas urbanas às práticas religiosas africanas, da identidade masculina exacerbada a papéis femininos. Assim como o Arlequim, ele se deixa construir com pedaços. É um ser coletivo, que não se fecha ao outro.

Este mapa em que se converte o romance traz assim a vocação do fragmento e a soma de espaços e de linguagens, o que tem uma continuidade na personalidade de Macunaíma, que é uma coletânea de modos de ser, e no próprio romance, feito de trechos de histórias coletados em várias fontes, escritas e orais. Macunaíma é um resumo do país, mas um resumo em que as partes permanecem em conflito.

E esta é a principal dificuldade de fruição do livro, o que leva muitos a recusá-lo como obra narrativa, mesmo reconhecendo seu valor programático. Não há uma relação de continuidade no enredo, uma relação de causa e efeito, cada momento narrativo do livro é independente, funcionando mais no isolamento do que no conjunto. Uma cena não se relaciona com a outra nem segue uma lógica narrativa. Como a roupa do Arlequim, o pedaço é a unidade maior de sentido.

E aí se percebe a coerência da proposta do livro, apesar da congênita incoerência de partes. O personagem feito de retalhos aparece em uma história fragmentária, mas nada disso é gratuito, pois esta idéia está a serviço da representação de um país em pedaços, que não admite — por sua diversidade de paisagem, de pessoas, de temporalidades — uma síntese integradora. Para escrever um romance que represente o país como um todo, é preciso apostar no fragmentário, admitindo as descontinuidades, aproximando subitamente o que está distante. Os escritores da geração seguinte abrirão mão desta idéia de uma arte que seja extensivamente nacional em nome da região. O nacional, nos anos 30, será conquistado pela metonímia, em oposição à idéia totalizadora de Mário de Andrade, que tentou concentrar num único livro, e num personagem-símbolo, o país inteiro nas suas múltiplas manifestações culturais e temporais.

Houve uma concentração muito grande de poesia neste romance, por isso ler Macunaíma se tornou algo dificultoso, dentro de uma proposta de revelar o país todo, percorrendo partes que não se somam, que apenas se sucedem. Trata-se de um romance enciclopédico, em que cada cena é o verbete sobre o país.

Mário de Andrade por Ramon Muniz

O herói risível
A sua raiz é paródica. Macunaíma não traz uma idéia triunfal do homem brasileiro, vendo-o a partir daqueles elementos tidos como negativos. Se há uma crítica ao caráter nacional nestes retratos risíveis, há também uma aceitação pelo humor daquilo que somos. Historicamente, sempre houve um descompasso conceitual entre quem somos e quem gostaríamos de ser, o que fez com que tentássemos impor pela literatura uma idéia de civilização sobre as vastidões selvagens de nossas terras e de nossos sentimentos. Este projeto de mascaramento é um contínuo em nossa história, tendo se iniciado com as obras religiosas, passando pelo arcadismo, pelo romantismo, pelo parnasianismo. O real imediato, por incômodo, é apagado em nome de uma idéia de civilização. Mesmo nosso naturalismo, com toda a sua obsessão de escancarar a podridão da sociedade, via o desvelar das mazelas como um processo profilático: mexer na ferida para que ela fechasse. Ou seja, ainda no naturalismo havia uma incapacidade de aceitar os traços desviantes de nosso caráter.

Com o modernismo, houve uma liberação total dos recalques. Dessa forma, os escritores puderam ver o homem nacional como ele era nos seus piores momentos. Não havia um projeto de anular o que fosse fora de padrão, ao contrário, o diferente passou a ser um valor cultural. Macunaíma é a obra que mais investiu na positivação pelo riso das nossas marcas.

Na construção deste personagem-multidão, Mário de Andrade intensificou alguns elementos identitários. Talvez, o mais saliente seja a sensualidade. Desde sua mais tenra idade, Macunaíma sofre de uma pulsão erótica que não conhece barreira. Ele dorme com mulheres mais velhas, une-se à Mãe do Mato e tem várias namoradas, rouba os afetos da cunhada, sai com as prostitutas paulistas. O hedonismo é sua marca. E ele está sempre brincando com as mulheres. E há as insinuações de uma homossexualidade festiva no caso do travestimento de francesa: “Então Macunaíma emprestou da patroa da pensão uns pares de bonitezas, a máquina ruge, a máquina meia-de-seda, a máquina combinação […]. Era tanta coisa que ficou pesado mas virou numa francesa tão linda que se defumou com jurema e alfinetou um raminho de pinhão paraguaio no patriotismo para evitar quebranto”. Seu objetivo é seduzir o gigante, mas depois de muitos jogos ambíguos, acabará empalado pelo pretendente, que enfia um tronco no buraco em que ele se esconde.

Este erotismo exagerado não se restringe ao âmbito da sexualidade, atinge todos os níveis do texto. Macunaíma erotiza a máquina, tirando dela o poder racional e industrial para fazer uma relativização de todo o ideário moderno. Mas o erotismo fica mais explícito na linguagem usada por Mário, uma língua portuguesa dilatada pelos elementos da oralidade, pela contribuição indígena, africana e estrangeira. O que ele busca nesta língua que não se quer nacional como forma de negação do outro, mas nacional enquanto soma de todos os possíveis, é construir um código contemporâneo em que caibam nossas múltiplas experiências lingüísticas. Tudo isso é feito num tom sensual, que nos afasta da língua de matriz lusitana, mais formal. Mais do que uma crítica às duas línguas portuguesas, a falada e a escrita, a “Carta pras Icamiabas” é uma prova de como nos afastamos das origens mesmo quando queremos copiar um padrão, pois erramos a língua em qualquer circunstância. Habitante recente da língua erudita, Macunaíma comete erros risíveis, ganhando com isso autenticidade. Errar é, tanto do ponto de vista gramatical quanto sexual, conquistar uma face própria.

Neste processo de desvelamento do homem local, há também a valorização da natureza dissimulada. O herói é uma versão de Pedro Malasarte e está sempre contando mentira para se dar bem. Mentir é algo natural em sua lógica, e reflete uma compulsão para o ficcional, para o imaginário. Numa cultura em que os elementos maravilhosos estão muito presentes, qualquer fidelidade ao real se torna inadequado. Então, o herói conta coisas inventadas como se fosse verdade, sempre com desfaçatez.

Outro elemento formador do homem nacional é a preguiça. O livro é todo pontuado por um refrão que Macunaíma repete inúmeras vezes “ai que preguiça”. Ele não quer trabalhar pois sempre viveu do trabalho de alguém, restando, quando está à deriva na cidade, a malandragem. Trabucar, como ele diz, é coisa para os outros, ele passa os dias dilapidando os recursos trazidos do Mato-Virgem, e depois tenta arranjar dinheiro de várias formas, até pedindo bolsa de estudo ao governo. Esta aversão ao trabalho é uma constante em nossa história de povo forjado no balanço da rede, no ardor sensual dos trópicos.

Se Macunaíma é astuto o suficiente para viver sem trabucar, ele é igualmente ingênuo, e acaba ludibriado a cada instante. Astúcia e ingenuidade se alternam em sua trajetória, de tal forma que uma depende da outra. A sua esperteza nasce de sua ingenuidade, e vice-versa. Isso não o leva a um final luminoso, e sim depressivo, não obstante a alegria que perpassa a maioria das páginas. Ao voltar para a selva, segue perdendo pessoas e coisas pelo caminho, perde até partes de seu corpo, como uma das pernas. Ele volta como um vencido, que possui um único bem, a história (mais inventada do que vivida) de seus combates.

Nesta narrativa em que se sucedem células dramáticas autônomas, há todo um processo de “explicação” mítica para as coisas que o herói conhece. Ele revela a origem do futebol, de expressões, de pragas, do truco, do automóvel… Tudo tem uma narrativa fundadora, como nos mitos de origem. O próprio livro é uma coleção de narrativas, sem maior estrutura do que a figura de um personagem que não se mantém uno. E isto está relacionado à natureza ambígua do herói.

No início de sua vida, ele passa de criança a adulto por intermédio de expedientes mágicos. Sentindo que, na condição de criança, não tem acesso a todos os objetos de desejo, o caçula se sente excluído da vida tribal e vive no plano do maravilhoso as experiências adultas. Esta vivência contemporânea de duas identidades vai se cristalizar quando ele se torna um “menino-home”. O episódio em que sua identidade dupla se estabiliza tem muitas conotações. Pode ser comparado à nossa prematura maioridade tropical, pois historicamente o menino logo passa a desempenhar funções adultas, seja no trabalho, seja a esfera sexual. Macunaíma sofre a transformação depois de ter enganado o Curupira, quando encontra a cotia, que joga nele uma poção mágica, um caldo envenenado de mandioca: “Macunaíma fastou sarapantado mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou do tamanho de um homem taludo. Porém a cabeça não molhada ficou para sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá”. Estava determinada a condição dupla, de alguém que tem a força e o desejo adulto, mantendo a cabeça infantil.

Toda a história, da sua lógica aos objetos de seu interesse, pertence ao mundo infantil. Mas há um elemento deste universo que é estruturante: a coleção. Como criança, e como ser primitivo (que está para o civilizado como a criança para o adulto), Macunaíma tenta compreender o mundo acumulando gratuitamente peças díspares, avulsas. Assim como o gigante coleciona pedras, ele resolve colecionar palavras feias, usando-as em vários momentos. Esta coleção guarda um sentido muito claro. O herói se reconhece nas palavras sujas. Mas é também uma pista para entender o romance todo, que seria uma coleção de histórias, de causos, de narrativas sem pontos de contato entre si. Ou seja, a obra de arte criada por Mário de Andrade participa, do ponto de vista tanto da lógica quanto da estrutura, do universo da criança e do primitivo. É fruto desta mentalidade infantil de Macunaíma, que assim questiona o excessivo racionalismo da arte.

A infância tem um valor programático neste período, servindo para marcar as diferenciações dos trópicos em relação aos modelos europeus. Pela ótica do herói-criança, do menino-home, Mário de Andrade capta o país.

É dessa forma que a sensualidade, a tendência para o fabuloso e para a mentira, a preguiça, a malícia, a ingenuidade e a infantilização se positivam no romance, tirando do homem nacional os recalques que faziam com que ele se sentisse menor do que o modelo europeu. Se há um caráter sociológico neste livro, ele é bem menor do que a sua função psicanalítica, que permitiu que nos aceitássemos como somos, tanto na esfera da linguagem quanto na dos comportamentos.

Erudito narrador popular
Mesmo não tendo uma preocupação eminentemente sociológica, a obra foi fundamental para fazer a passagem para os anos 30. A temática do nacional, aliada a conceitos modernos de arte, serviu para criar uma gramática literária própria nas obras dos anos 20, em que a principal imagem do escritor era a do viajante, sempre em busca de novas paisagens, tanto físicas quanto humanas e verbais. Mário de Andrade inscreve Macunaíma, sua ficção mais experimental, dentro da linhagem das narrativas orais, valendo-se de uma estrutura tradicional, subvertendo-a ao operar em campos antagônicos.

Do ponto de vista externo, o livro é uma construção intelectual e atende a um projeto que ultrapassa a esfera da literatura, atingindo outros campos. Mário se fez pesquisador de linguagens, estudioso de folclore, viajante e crítico cultural antes de produzir uma obra em que o elemento programático é mais forte do que qualquer outro. No interior do livro, a história é contada por um narrador popular que saiu do passado profundo, da floresta, e passou rapidamente para o presente urbano, movido pelo entusiasmo da máquina, mergulhando num novo mundo em que tentará domesticar a ferocidade capitalista. Ao retornar, ele só leva algumas conquistas da civilização: um revólver Smith-Wesson, um relógio Patek e um casal de galinha Legorne. Estes objetos podem ser pensados como símbolos do poderio do conquistador: a arma, o tempo cronológico e o animal exótico. Macunaíma faz um uso ritualístico destas coisas, tirando-lhes o caráter civilizado na hora em que se reintegra a seu mundo original, já modificado. A volta é cheia de peripécias e de perdas, pois encontrará extinto seu povo. Ele faz o caminho do filho pródigo, mas não reencontra sua casa. É uma viagem de morte, de retorno a um reino devastado. Depois de perder tudo, resta-lhe um papagaio.

E a história termina com uma reviravolta. A voz do personagem-narrador dá lugar à voz do autor-narrador, revelando sua estratégia narrativa: “Tudo ele [o papagaio] contou para o homem e depois abriu asa rumo a Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei para vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente”. O narrador é o autor, mas travestido de contador popular de histórias diante dos ouvintes. Nesse momento, o livro funciona dentro de uma outra lógica. Ele, em tese, deixa de ser livro para ser narrativa oral. O autor abandona sua condição e assume o lugar de um outro, para contar uma história como os narradores tradicionais. Este é o último travestimento do livro, em que o próprio autor, transformado em personagem, conecta-se à história, dando-lhe um sentido coletivo, porque herdado, e socializador, porque partilhado fora do âmbito da literatura.

Tudo isso é tratado como metáfora. A oralidade comandando a invenção da história será um projeto que terá continuidade na geração seguinte, quando os romancistas localizados nas regiões vão conseguir, num verbo mais simples, esta aproximação com o povo que, em Mário de Andrade, era mais um programa estético.

Macunaíma
Mário de Andrade
Agir
237 págs.
Os filhos da Candinha
Mário de Andrade
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187 págs.
Amar, verbo intransitivo
Mário de Andrade
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181 págs.
Eu sou trezentos, eu trezentos e cincoenta
Mário de Andrade visto por seus contemporâneos
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191 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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