Heranças da guerra

O brilho do amanhã discute tradições e a reconstrução da vida em uma cidade devastada por conflitos
Ishmael Beah, autor de “O brilho do amanhã”
07/06/2015

“Quando a guerra me alcançou pela primeira vez, eu tinha doze anos. Era janeiro de 1993”. O trecho de Muito longe de casa: memórias de um menino-soldado mostra que o escritor Ishmael Beah teve contato com a destruição muito cedo. Em seu primeiro livro, ele narrou a experiência como sobrevivente da guerra civil de Serra Leoa, na África Ocidental. Beah foi uma das crianças aliciadas pelo exército do governo para atuar nos conflitos. A publicação do relato o tornou conhecido no mundo todo aos 27 anos.

Oito anos depois, a temática da guerra volta ao foco da escrita do ex-menino-soldado, mas na ficção: O brilho do amanhã, seu primeiro romance, chega em 2015 para fazer pensar o drama pós-conflitos. Como é o retorno à cidade natal depois de uma fuga em massa sem perspectiva de sobrevivência? É possível retomar a vida e a rotina de antes no local? E, principalmente, como manter as tradições da comunidade em meio à crise?

A história se passa na cidade de Imperi. Sete anos após o fim de uma guerra que destruiu a região e exigiu que todos fugissem da cidade, os habitantes voltam à terra natal e tentam retomar uma vida digna. O narrador explica rapidamente a razão para esse longo período de espera antes do retorno: mesmo quando o conflito foi declarado encerrado, levou tempo até que as pessoas começassem a pensar em voltar para casa. Sequer confiavam de imediato nas notícias sobre o assunto. Para elas, a assinatura de um acordo de paz estava longe de representar o fim do sofrimento.

Num primeiro momento, ao retornar os antigos moradores encontram uma terra feita de silêncio e morbidez. Os idosos Mama Kadie e Pa Moiwa, primeiros personagens que conhecemos, caminham pela cidade observando cuidadosamente os ossos pelo chão e tentando reconhecer, entre eles, algo que possa identificar seus netos, de quem não tiveram mais notícias. Aos poucos, os personagens reencontram suas casas, parte da família, amigos, e acreditam que com o tempo conseguirão levantar Imperi novamente.

Não é à toa que os primeiros personagens apresentados são anciãos. Os mais velhos são sujeitos fundamentais na trama, que coloca força no respeito à sabedoria dessas pessoas, às tradições que ensinam à comunidade. Pa Moiwa e Mama Kadie são como líderes para o grupo. Mas o protagonismo está nos professores Benjamin e Bockarie, que buscam na educação uma forma de reconstruir a região. Eles estão no centro de algumas das cenas mais impactantes e são os melhores personagens.

As consequências do cenário de crise se refletem inclusive na escola em que os dois amigos trabalham. Os professores estão com salários atrasados, muitos alunos não têm condições de pagar os estudos. O departamento de educação passa a exigir um uniforme que poucas crianças podem comprar. As atitudes do diretor da escola diante dos problemas sinaliza que o descontrole de Imperi compromete inclusive o caráter de alguns moradores. Mais adiante, o romance revela outros personagens corruptos e criminosos. Beah tenta exemplificar em diversos momentos como os valores morais estão fragilizados nessa condição, quando as pessoas podem perder facilmente a civilidade.

Uma história de perdão
Se a destruição despertou a maldade de alguns habitantes de Imperi, outros viram no fim dos conflitos uma chance de reparação. O autor abre caminho em meio à saga para contar rapidamente a trajetória de personagens menores e o que sofreram durante a guerra. Entre essas pequenas passagens, a que mais chama a atenção é sobre o menino Ernest, que atuava em um esquadrão com uma função aterrorizante — obrigado pelo mesmo comandante que executou seus pais, tios e a avó. A caminho de Imperi, Ernest reencontra uma das famílias que feriu durante a guerra, e sua vida passa a ser uma busca pela retratação, tentando ajudá-la nas oportunidades que conseguiu.

A esperada estabilidade que a população de Imperi acredita retomar logo se vê ameaçada. A situação piora com a chegada de uma mineradora à cidade. Os problemas gerados pela obra mal empregada começam a ditar o fim da velha Imperi desejada pelos moradores. Mesmo assim, trabalhar na empresa pareceu ser a opção mais segura para muitos homens da comunidade. Com medo de perder o emprego, eles acabaram silenciando sobre os prejuízos que a mineradora trouxe à região. Outro agravante foi a escassez da água, contaminada pelos resíduos da empresa.

Beah tem êxito na descrição de imagens fortes, para ilustrar a desigualdade e o sofrimento entre os habitantes da cidade. Uma dessas cenas acontece quando a esposa de Benjamin faz um guisado para comemorar o novo emprego do professor. Para a vizinhança que sofria há dias com a fome, a comemoração do casal virou um pesadelo.

Alguns dos vizinhos, que não dormiam bem perguntando-se como fariam para manter a família viva mais um dia, acharam o cheiro do guisado um tormento. Reviraram-se na cama, cobrindo o nariz com o lençol, que não cheirava a nenhuma promessa.

Embora seja talentoso na criação das situações tristes, Beah às vezes busca acentuar com adjetivações e descrições emocionais cenas que já são naturalmente dramáticas. A sequência de acontecimentos trágicos sem muita explicação no enredo também pode gerar um incômodo no leitor.

Ao se aproximar das páginas finais, o narrador fica mais reflexivo. O livro mostra que a reconstrução da cidade encontra obstáculos na injustiça, na corrupção, no autoritarismo de quem toma o território para si. O que Beah chama de “brilho do amanhã” pode ser a esperança da reconstrução, mas fica claro que os personagens têm dificuldade em manter a esperança naquele cenário. No ambiente corrompido, eles acreditam mais na força de contar e ouvir histórias e manter as tradições dos velhos no coração dos jovens como uma forma de preservar a civilidade.

O fim do romance é fiel a esse sentido central. Dá a ideia de que a responsabilidade de manter as tradições e os valores locais se transfere por gerações. Kula, companheira do professor Bockarie, assume tal papel quando atende ao pedido dos filhos para que conte uma história — e é uma bela história — que encerra muito bem o livro. Tudo em Imperi parece mesmo girar em torno de promessas. A promessa de dias mais justos e de novas histórias para se contar.

Tradição oral
O brilho do amanhã está repleto de personagens que contam histórias, crianças curiosas por elas, e não economiza lições morais. Tudo isso está ligado ao valor que o autor dá à tradição oral na cultura de seu país. Além da importância do ato de contar e ouvir, o romance traz um diferencial na forma de contar. As inúmeras metáforas estão obedecendo ao mende, língua materna de Beah em Serra Leoa, país que tem várias línguas e três dialetos. Na nota do autor, ele diz que “Histórias são o alicerce da vida. Nós as passamos adiante para que a geração seguinte possa aprender com nossos erros, alegrias e celebrações”.

O brilho do amanhã
Ishmael Beah
Trad.: George Schlesinger
Companhia das Letras
280 págs.
Ishmael Beah
Nasceu Serra Leoa, em 1980. Aos dezessete anos, mudou-se para os Estados Unidos. Cursou Ciências Políticas. Atualmente, vive na Mauritânia, norte da África, com esposa e filho. É embaixador do Unicef, integrante do Human Rights Watch e presidente da Fundação Ishmael Beah. Também escreveu o livro de não-ficção Muito longe de casa: memórias de um menino-soldado, publicado no Brasil em 2007 pela Ediouro e relançado recentemente pela Companhia das Letras.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho