Heráldicos & herdeiros

Falar sobre a situação da poesia atual demandaria uma reflexão maior, tal a diversidade das tendências no Brasil
01/04/2002

Falar sobre a situação da poesia atual demandaria uma reflexão maior, tal a diversidade das tendências no Brasil. De saída, podemos dizer que tais tendências configuram um espaço francamente antagônico em relação umas às outras, em disputa pelo poder literário, nos principais suplementos culturais do país, na academia, revistas e jornais especializados. Há uma indisfarçável luta estética e midiática de grupos e gerações, para fazer predominar, em tom aguerrido, idéias e práticas literárias. (É bastante sintomático, nesse sentido, que um dos principais grupos de poetas do Rio intitule seu veículo de Inimigo Rumor…). Que tendência literária irá prevalecer nos próximos 25 ou 30 anos? Que nome terá no futuro a poesia do momento, vista em seu conjunto? Não sabemos.

Desconfio, no entanto, que essas brigas são dos netos brancos do modernismo, que, a partir da década de 90, chegaram ao poder, nas esferas de legitimação (mídia e universidade). Quando falo em “brancos”, quero me referir aos grupos dominantes, nos dois grandes e decisivos centros culturais do Brasil: Rio e São Paulo. A diversidade de vozes não é tão diversa assim. Na verdade, reflete uma disputa entre as duas capitais, desde, pelo menos, o modernismo dos anos 20 até hoje. Disputa que não é só literária, mas política, econômica e cultural tout court. Os poetas de outras regiões são mais ou menos figurantes desses senhores da guerra literária. Se o provérbio tem razão, os poetas modernistas foram ricos, seus filhos nobres e agora os netos, pobres. Daí se falar na crise da poesia atual.

De fato, pobres netinhos esses que se encontram aí, disputando (como sói acontecer) o legado dos fundadores de fábricas e marcas poéticas dos modernistas (Mário e Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília, Murilo e Drummond…) e de brasões, títulos e heráldicas dos filhos diretos (Cabral, os irmãos Campos, Pignatari, Chamie, Gullar, Affonso Romano, Moacir Félix, Carlos Nejar, Tolentino, Ivan Junqueira…). Estão aí, disputando a dentadas, os netos pós-modernistas: os Alexeis Buenos e os Carlitos Azevedos , os Walys e os Bonvicinos, uns Mais!, outros Menos, por entre Prosas & Versos, Idéias e Rascunhos, compondo esta Babel, que é o Brasil poético…

Mas o que ocorreu foi o seguinte, a meu ver. Tendo São Paulo, a partir da Segunda Guerra, despontado como o grande eixo econômico do país, os poetas do espaço ali plantaram suas bases em busca do tempo futuro. O trio concretista, com enorme habilidade e senso de oportunidade, logo se disse herdeiro de Oswald de Andrade e da Antropofagia; em seguida, cooptou João Cabral como precursor da poesia concreta; foi ao século 19 e resgatou Sousândrade; ao século 17, a irreverência do Boca do Inferno. Atento ao presente, adotou, nos anos 60, Caetano Veloso e o tropicalismo, para em seguida abençoar os netos Leminski, Bonvicino, Ascher, Carlito, Antunes, Ávila, etc. Não por acaso os criadores do concretismo são vistos como “patriarcas” pelos seus meninos… Fecharam como que um círculo. Enquanto isso, com o progressivo esvaziamento econômico do Rio, os poetas do tempo (a turma do “Violão de rua”: os acariocados Gullar e Affonso Romano, Moacir Félix, Geir Campos, dentre outros) ficaram na janela, esperando a banda passar, o morro descer e a revolução dialeticamente chegar… e perderam o espaço, para os do lado de lá. Achavam que tendo Drummond, passeando por Copacabana, tinham tudo. Só que Drummond não deixou herdeiros. Foi único.

Para concluir, quero falar de minha posição em relação a esses grupos e tendências. Como escritor, não me alinho com nenhum deles. Minha briga é comigo mesmo e com o bando de poetas que abrigo cá dentro de mim. Um discordante do outro. Minha voz é dramática, como, aliás, se manifesta em meu primeiro livro, Fala, favela, de conteúdo político-participativo, que foi levado ao palco, em Fortaleza (1980) e publicado em 1981 (a 2a. ed. é de 1998 pela Topbooks). O poeta favelado, por sua vez, não tem nada a ver com o consumista irônico-cínico de O lote clandestino, de 1982 (a sair, em 2a. edição, pela mesma editora, este ano), assim como o apolíneo e metafórico autor de Beira-Sol (Topbooks, 1997) e o autor de haicais, em Trapézio (1984), desconhece(m) o dionisíaco fazedor dos longos poemas épico-urbanos Táxi (1986) e Metrô (1993) — revistos e reunidos sob o título de Em trânsito(Topbooks,1996) —, que, por sua vez, passa longe do poeta de O morcego e o cão, meu próximo livro, que traz experimentações diversas.

Autor, assim, ao longo desses 21 anos, de poemas e projetos poéticos de variadas formas e linguagem — para mim, o “estilo” como marca do escritor é uma ficção romântico-modernista —, sinto, por minha própria prática fragmentária, que não me afino, como falei acima, com nenhuma estética contemporânea específica, nem me coloco na defesa de um determinado território lírico ou sócio-geográfico. Por último, quero dizer que não pertenço a nenhuma facção do Comando Vermelho da poesia brasileira. Estou fora. Ou melhor, dentro de mim mesmo, atento, porém, às vozes do Tempo, que é outra coisa.

Nota: Depoimento dado de início ao professor e jornalista Mário Hélio, para o Diário de Pernambuco, que o publicou parcialmente e que ora segue revisto.

Adriano Espinola

Nasceu em Fortaleza (CE), em 1952. Publicou, entre outros, Em trânsito: táxi/ metrô (1996), Beira-sol (1998), Praia provisória (2006) e Escritos ao sol (2015). É professor universitário aposentado e integrante da Academia Carioca de Letras. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Rascunho