Há um lugar para “nós”?

"Os substitutos", de Bernardo Carvalho, está centrado na relação entre pai e filho, num Brasil violento e viril
Bernardo Carvalho, autor de “Os substitutos”
01/02/2024

Os substitutos, novo romance de Bernardo Carvalho, está centrado na relação entre um pai e um filho. O menino de 11 anos acompanha o pai em uma viagem pela Amazônia onde este realiza transações derivadas da exploração madeireira no período da ditadura militar.

Na maior parte do romance, seguimos essa narrativa que vai e volta no tempo construindo a história de uma relação que o leitor vai montando aos poucos. A figura autoritária, empreendedora e “viril” (a virilidade é um tema bastante explorado no romance) do pai contém uma semente de degradação e autodestruição que se intensifica com o passar do tempo e desenha-se em contraponto à personalidade mais contemplativa e reflexiva do filho. O contexto de época também trata de uma Amazônia “rifada” para aqueles que conseguiram negociar com os militares — caso do pai —, além da consequente aniquilação dos povos indígenas da região. Já seria o bastante para um romance, mas a história narrada não é apenas essa.

Em paralelo à narrativa principal, também acompanhamos trechos de um livro que o menino lê e que lhe faz companhia durante a viagem — um romance de ficção científica intitulado “Os substitutos”. Só vamos descobrir o nome do livro que o menino lê no final do romance, o que provoca essa reflexão em retrospecto sobre o título do próprio livro que estamos lendo. Essa estrutura ficcional que se volta sobre si mesma e o jogo da “história dentro da história” são uma tônica comum a outros livros de Carvalho, cujo romance mais celebrado é Nove noites, vencedor do prêmio Portugal Telecom em 2003.

A leitura avança, portanto, em meio a vários caminhos que se abrem seja o da história do país no período, o da narrativa intergaláctica e principalmente o da relação pai e filho. Longe de se explicarem, os três caminhos se iluminam na construção de um enredo que discute o tema da “substituição” em várias camadas, oscilando entre o pessoal e o coletivo.

Espelhamentos
Um paralelismo se constrói entre o menino que lê e o protagonista do livro lido. A “substituição” é o foco do livro de ficção científica, uma vez que seu enredo gira em torno de um grupo de crianças com dons especiais enviadas em uma missão para buscar um planeta substituto à Terra e, assim, salvar a humanidade. O protagonista desta história não entende por que foi escolhido para a missão pois, ao contrário das outras crianças, não é excepcional em nada. Esse lugar “estranho” que ocupa acaba espelhando a condição do menino que lê. Este, sem entender muito bem os negócios e o comportamento do pai durante a viagem, também se encontra em um lugar de isolamento, potencializado no trecho em que fica sozinho na fazenda do pai, e apenas na vida adulta tentará juntar as peças e sondar o que viveu neste período.

“Juntar as peças” é algo que o leitor também tenta fazer ao acompanhar as duas histórias e refletir sobre os significados que o termo substituição vai oferecendo ao longo do romance: gerações que se substituem, donos de um território que se substituem (pelo uso da força), um planeta esgotado que precisa ser substituído e até mesmo substituições espirituais entre humanos e animais, como no caso do animismo okano — objeto de estudo do menino já adulto que deseja se tornar antropólogo:

Os Okano acreditam numa lei natural de equilíbrio e compensação: toda vez que um homem mata um animal, outro homem morre em algum lugar do planeta para que seu espírito, ao abandoná-lo, converta-se num indivíduo daquela mesma espécie, compensando o que morreu. Uma morte pela outra.

A exposição da crença dos Okano coloca o tema da substituição em uma chave de equilíbrio e compensação e o pai questiona o filho a esse respeito: “E quando um homem mata outro? […] E se mata vários homens? Como é que fica esse seu equilíbrio de compensações? A conta não fecha”. A fala do pai está em consonância com a violência que pratica e com a forma que percebe o mundo — é necessário tomar, lucrar e, se preciso, até matar para se conseguir o que quer, ainda que seja para chorar e pedir perdão depois. Em um sobrevoo de suas terras ele avança com o bimotor sobre uma aldeia para “dar um susto” nos índios (“Achei vocês, seus putos!”). Em paralelo, o desenrolar da história de ficção científica também descamba para a violência, uma vez que os “escolhidos” se revoltam ao perceberem que foram cobaias de um experimento cruel. Se a ficção científica imagina mundos possíveis, um rastro de violência parece unir presente e futuro imaginado. A violência também parece estar associada a uma discussão sobre a virilidade que o romance apresenta.

“A parte viril da nossa história”
Em Os substitutos todos os personagens principais são homens e se pensarmos em termos de hoje, há uma toxicidade no modo masculino de ser especialmente concentrada na figura do pai, na forma com que se relaciona com as mulheres e em como encara seu papel de “desbravador”. No entanto, o tema surge para ser problematizado e tratado dentro de suas ambiguidades. Esse assunto se apresenta logo no início do romance através da fala de um militar:

Precisamos de homens como você. Pioneiros dispostos a assumir a parte heroica, viril, da nossa história. Desbravar esta terra antes que ela passe de virgem a puta. Sim, vamos nos adiantar. Vamos deflorar o que é nosso antes que nos roubem nossas riquezas.

O tema da virilidade circula pelo romance em vários momentos e muitas vezes, como no trecho acima, como parte da atitude exploratória e de aquisição de terras. Outros dois exemplos seriam o capítulo sobre o mateiro que tenta estuprar uma índia (Impotência) e, numa chave mais cômica, o capítulo Os supositórios em que o pai diz ao filho que “Nada deve entrar no cu”. A “firmeza” do pai é sempre destacada, ainda que lado a lado com sua personalidade autodestrutiva ou, como comenta o narrador, sempre ouvindo “o chamado da sarjeta”. Apesar dos projetos grandiloquentes, o fim de sua vida passará longe de qualquer glória.

Essa narrativa sobre homens alcança ainda outra camada na parte final do romance, quando o filho, já adulto e numa relação homoafetiva, entrará em desacordo com o namorado a respeito de uma possível denúncia de abuso sexual. O conflito que se arma faz com que o filho rememore suas diferenças com o próprio pai:

Ele pensava em poder reproduzir entre ele e o namorado o intercâmbio de orgulho que o havia ligado ao pai no conflito. Pensava em contar ao namorado o voo a dois, pai e filho, sozinhos no coração do Brasil, a aventura da paternidade, para salvá-lo da vingança. Mas um oco o impedia. O oco era a memória, a história do país.

É nesse ponto, já no final do romance, que história pessoal e coletiva finalmente se unem em uma cena catártica vivida pelo filho durante um show de PJ Harvey. É ali que ele se lembra ou adquire a consciência de ter sido a testemunha involuntária de uma matança quando criança. Os corpos que dançam e gritam evocam, para ele, imagens de corpos assassinados. O romance que, entre outros temas, também discute culpa e salvação termina pincelado com versos de A place called home, da cantora inglesa. O final melancólico e perturbador questiona a possibilidade de conciliação e o próprio desejo de encontrarmos a place called us.

Os substitutos
Bernardo Carvalho
Companhia das Letras
230 págs.
Bernardo Carvalho
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1960. É escritor e jornalista. Entre seus romances estão Nove noites (Prêmio Portugal Telecom 2003), Mongólia (Prêmio Jabuti 2004), O sol se põe em São Paulo (2007), Reprodução (Prêmio Jabuti 2014) e O último gozo do mundo (2021).
Lívia Bueloni Gonçalves

É doutora em Teoria Literária pela USP, professora de literatura e tradutora. Autora do livro Em busca de Companhia: o universo da prosa final de Samuel Beckett (Humanitas/Fapesp, 2018)

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