Guerra e espetáculo

Imagens da catástrofe impulsionam a poesia de Ricardo Pozzo em "Alvéolos de petit pavê"
Ricardo Pozzo, autor de “Alvéolos de petit pavê”
27/01/2017

Os que acreditam em certo potencial vidente das artes talvez se assustem com a atual proliferação de formas que de alguma maneira tocam o fenômeno da violência, da destruição, da guerra e da terra arrasada. As teses de que a arte antecipa certos fenômenos e desejos que se instalam no inconsciente coletivo, e que só mais tarde virão à consciência e às vias aparentes de fato, talvez amedrontem diante da constatação de que se produz hoje alguma literatura como a de Eduardo Sterzi, Ademir Assumpção, Guilherme Gontijo Flores, Pádua Fernandes, Leila Danziger e Liv Lagerblad (estas últimas com suas mínimas, diante das grandes catástrofes dos outros) — poetas que versam ora sobre uma terra arrasada, ora sobre os momentos de abate.

Diante das teorias de uma catástrofe iminente, no entanto, resiste outra maneira de encarar esses estranhos sinais que se apresentam poeticamente: talvez eles não se refiram ao futuro, tanto quanto ao passado e ao presente. E o medo com relação ao tempo que virá se apresenta de fato como assombro diante daquilo que segue sendo. Em outras palavras, talvez essa gama de poetas que escrevem uma terra arrasada e bombardeios constitua, de fato, não uma previsão de futuro, mas um testemunho dos massacres presentes que as forças dominantes tentam apagar.

Pertence a essa linhagem o primeiro livro de Ricardo Pozzo, Alvéolos de petit pavê, que se inscreve na família de poetas não apenas da terra arrasada, como também da guerra infracotidiana. E é tão consciente dessa sua inscrição que inicia seu livro com um poema chamado Nada novo, de novo (evocando o livro de Erich Maria Remarque, Im Westen nicht NeuesNada de novo no front, no Brasil), e alarma: “A qualquer momento,/ o soar do segundo toque” terá de fazer o poeta avançar contra as tropas que o querem esmagar. No livro de Pozzo, não acontece apenas de a guerra ser iminente; os poemas são somente um respiro entre uma batalha e outra.

O poeta Guilherme Gontijo Flores captou a imagem que se apresenta a partir do estado bélico ininterrupto, afirmando, na orelha do livro, que “estamos diante de uma figura fendida no espaço”. E esta figura fendida abre-se também para uma disfunção temporal: é que a dicção de Pozzo, e mesmo muitos de seus temas, misturam a atmosfera da guerra contemporânea de drones com a da literatura produzida no pré-guerra e no entreguerras europeu. O Poema para alguém que disputa sua comida com ratos, por exemplo, tem algum parentesco de motivos com Baudelaire, realizando um jogo de contrastes entre “cristais & degredo”. Esse contraste aparece muitas vezes ao longo do livro, em que figuram títulos avassaladores e corpo delicado: expressam um abismo análogo ao abismo social que separa os despossuídos do restante da cidade, e é este o principal tema de Pozzo. É disso que se tratam os tais Alvéolos de petit pavê: pequenas cavidades nas ruas de Curitiba em que convivem a miséria social e a promessa de poesia.

Visibilidade e invisibilidade no espetáculo
“Um drone observa-me/ por entre alvéolos de petit pavê.” Seria pouco dizer de Pozzo que ele expressa um mundo do espetáculo à imagem e semelhança daquele de Debord. Ao invés disso, é preciso investigar de que matéria é feito este espetáculo apresentado nos poemas de Alvéolos. Pois o mesmo poema que narra um drone na calçada, declara que “a vida é rinha/ sem saída”. Trata-se do espetáculo das guerras, uma atualização daquele da poesia antiga em que humanos combatiam para o deleite dos deuses gregos. Aqui, o espetáculo é a forma do véu que invisibiliza o espoliado.

O poema que dá nome ao livro apresenta a imagem da vida como guerra ininterrupta, irmanada do estado permanente de vigilância. Enquanto se vive o espetáculo, no entanto, não se pode enxergar o fraturado: “a infância invisível,// tal qual o mendigo,/ por entre alvéolos de petit pavê”. Essa invisibilidade é ambígua, tanto quanto a política inscrita no livro de Pozzo: não ocorre apenas que a infância não possa ser vista, mas também uma esperança, a de que a infância aparentemente perdida talvez ainda caminhe nas ruas, aguarda a sua salvação (esperança que retorna no poema Alvéolos de petit pavê II, um oposto complementar do primeiro).

O que pode, no entanto, salvar ainda as coisas? Se a catástrofe não é iminente, mas já ocorreu, o que é exatamente que ainda pode ser salvo? Pozzo não responde a essa pergunta, mas registra o momento de seu surgimento. O poema Anoréxico software de tédio o faz em dois tempos: apresenta-nos a suspensão do abismo social, pelo defeito no espetáculo, no “cidadão”, que, ao se assombrar com um desdentado, se torna simplesmente “humano”; e apresenta o retorno do fosso social pelo enigma do miserável dirigido àquele que se assombra: “Sois engrenagem sonâmbula/ de fazer girar dinheiro?”

Interrupção e anacronia
As imagens da guerra se imiscuíram à elaboração imagética de Pozzo em Alvéolos de petit pavê. Os versos “Aperte o gatilho para saber/ que você está vivo” substituem a imagem do pulso pela de uma arma de fogo; “um ar tão denso quanto um/ derramamento de mil barris de óleo” assemelha elementos da percepção a catástrofes da técnica; e em Sagrado coração humano a esperança morre como as crianças das guerras contemporâneas:

a criança, que vive
no interior do meu
sagrado coração
humano, morre 

bombardeada em Gaza,
despedaçada no ônibus
em TelAviv,
com um tiro na cabeça,
no banco de trás
do carro dos pais

Por que um livro antibélico aceita as imagens da guerra como produtoras de sentido? Pozzo não espera dar fim às guerras “por fora”, isto é, a partir de um campo significante que lhe seja estrangeiro, mas pela imersão mesma no funcionamento dos conflitos. Aguarda, ou tenta fabricar, com isso, pequenas interrupções na engrenagem da vigilância (do espetáculo) e da guerra (da catástrofe). O poema Ácido Malabar quer interromper o fluxo da cidade; a Falsa Varsóvia, ao identificar a multidão de esfomeados consumidos pelo vício a uma “micro sinagoga/ de alumínio,/ a menorá de isqueiros” quer dar um curto circuito espaço-temporal nas estruturas anestesiantes da miséria.

Entre um poema que são “Dicas para se visitar lugares sem fazer uso de papel moeda ou cartão de crédito” (um manual de instruções para quem quiser passar para “o outro lado” do espetáculo, uma espécie de guia de calçada, de petit pavês), e poemas como Estrelas & Nuvens, que tentam dar alguma força aos desterrados, seguem pequenos salvamentos das coisas perdidas. É o caso do poema Ela, que contraiu matrimônio com Tânatos e nos deixou cedo demais, que quer redimir a imagem de uma suicida “acuada por forças inimigas” e lhe:

conceder por apenas
uma noite, no verão, retornar ao
revestimento frondoso do corpo
para, com suas filhas, poder admirar
sóis longínquos e com elas rir,
sem nenhum motivo.

Em meio a essa espécie de Tanatologia das relações humanas (título de um poema que também poderia ser o nome do livro de Pozzo), o poeta se apresenta como “Anthropocetáceo”. Acredita emergir “do frívolo mar/ espesso das/ convenções sociais”, mas não percebe que o que considera uma “saída” é de fato um “mergulho”. Não para a essas convenções aderir, mas para com elas “fuçar” — assim como um ser humano fuça uma pilha de lixo mas nunca se torna, ele mesmo, lixo. É claro que aqueles que produzem o lixo — os que autorizam, legislam e executam a guerra — não sabem distinguir matéria inorgânica da vida misturada. Pozzo não se satisfaz com a denúncia: é nessa não-distinção que mergulha a sua linguagem para nela interferir.

Alvéolos de petit pavê
Ricardo Pozzo
Patuá
80 págs.
Ricardo Pozzo
É poeta, fotógrafo e músico. Nasceu em Buenos Aires, é um dos organizadores do projeto Vox Urbe e editor assistente do jornal RelevO. Vive em Curitiba (PR).
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

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