[O homem]
Poucas horas depois de um dos temporais mais violentos que já sacudiram São Paulo, aqui estou de volta ao anfiteatro do Instituto Itaú Cultural. Semáforos apagados, ruas e avenidas alagadas, prédios sem energia elétrica, inundações, o trânsito tumultuado na avenida Paulista e nos arredores, o caos. Duas horas depois do temporal, aqui estou para participar do seminário Leitura de Inquietações, idealizado e coordenado pelo Claudiney Ferreira, sob a curadoria da dupla Felipe Lindoso e Jorge Vasconcellos. Literatura: só quem a lê é leitor? Esse é o título da mesa-redonda para a qual me convidaram. Título bastante provocativo. Duas horas depois de sair da estação Vila Madalena do metrô e, sem guarda-chuva, subir a passos largos a rua Cayowaá, aqui estou, no palco do anfiteatro quase lotado, ao lado do Claudiney e da professora Marisa Lajolo. A mesa-redonda já está rolando, mas o poeta Ivan Junqueira e o editor Carlos Augusto Lacerda ainda não chegaram. Talvez nem cheguem, telefonemas desencontrados falam que o vôo no qual estariam os dois convidados cariocas nem sequer decolou no Rio, por falta de teto. Opa, tudo mentira. Aí estão os dois, já se acomodando ao nosso lado.
Não vou contar agora tintim por tintim como transcorreu a nossa mesa-redonda. O encontro teve lá os seus momentos divertidos, descontraídos, didáticos, sérios e melodramáticos. Eu não conhecia pessoalmente os demais convidados, todos mais velhos do que eu… Dizem que a diferença de idade só faz diferença no esporte, não na arte e na literatura. Não estou bem certo disso. O fato é que, durante a nossa mesa-redonda, senti-me levemente deslocado, como se tivesse acabado de chegar de outro planeta. Deslocado, porém confortável. Nesse momento eu não queria estar em outro lugar, apreciei muitíssimo o encontro e o depoimento dos colegas de mesa. Mesmo assim não escreverei agora a crônica do que rolou no anfiteatro do Instituto Itaú Cultural horas depois que o céu quase veio abaixo em São Paulo. Quero falar do que rolou antes dessa mesa-redonda, bem antes, nos dias que antecederam a sua realização. Porque o tema proposto pelos organizadores do seminário realmente me atazanou a vida. Ao mesmo tempo simples e complexo, tive que queimar muito neurônio até decidir qual a melhor maneira de abordá-lo.
Literatura: só quem a lê é leitor? Em primeiro lugar concluí que o enunciado precisava ser levemente modificado. Sempre preferi alta literatura para me referir à prosa e à poesia de qualidade, em vez de apenas literatura, palavra que designa um ecossistema muito amplo, que abarca desde os manuais técnicos e os livros de culinária até, é claro, a prosa e a poesia de qualidade. E a noção de leitor sofisticado? Essa noção está implícita no simples leitor do final da questão, quanto a isso não há dúvida. Só os que estão capacitados a ler e a compreender a alta literatura devem ser considerados leitores sofisticados. Aí está, o que os organizadores querem pôr em xeque é essa até então inquestionável verdade. Os milhões de brasileiros para os quais Joyce e Rosa, Maiakóvski e João Cabral, Kafka e Clarice não fazem o menor sentido, esses não podem ser considerados grandes leitores. Os milhões de brasileiros cujo cardápio não vai além do jornal, da revista de economia ou de informática, das histórias em quadrinhos, dos livros de marketing ou de auto-ajuda, esses também não podem ser considerados leitores sofisticados.
Desconfio que me convidaram para essa mesa pelo simples fato de eu ter afirmado inúmeras vezes a minha preferência pela alta literatura. Realmente, quando o assunto são os livros, só me interessam os mais sofisticados. A vida é curta, não há vida após a morte, logo não posso perder tempo com a chuva de mediocridade que, dentro das impressoras, diariamente molha todo o tipo de papel seco. Por mais que na infância e na adolescência eu tenha sido alimentado só com gibis e romances baratos de suspense e ficção científica, desde que tomei contato com a alta literatura nunca mais voltei a essas maquinetas de puro entretenimento. Nos livros comerciais tudo é previsível, tudo é grosseiro. Nos livros verdadeiramente literários tudo é inquietação, tudo é desregramento. Desse modo, é claro que a minha resposta à provocação dos organizadores do seminário só podia ser a mais politicamente incorreta possível: sim, apenas quem lê a alta literatura deve ser considerado um leitor sofisticado. A fim de que o ranço claramente aristocrático dessa sentença fique camuflado, existem formas mais sutis de se afirmar isso. Como também há maneiras mais sutis de se afirmar o contrário disso. Mas, pensando bem, às favas com a sutileza. Quando o assunto é o conflito entre os que detêm e os que não detêm a chave de determinado código — a chave da alta literatura, por exemplo —, toda a sutileza, seja ela positiva ou negativa, só faz mascarar a demagogia e a hipocrisia.
Que é a alta literatura afinal? Como já foi dito é o conjunto das obras que realmente inquietam e desmistificam, que não têm outra função a não ser incomodar. É o conjunto dos livros tão bem articulados, seja em prosa seja em verso, que acabam sintetizando e exprimindo toda a cosmovisão do artista e do povo que os produziram. Mas essa é só a face iluminada e bela da alta literatura, a face que a maioria dos poetas e dos prosadores talentosos gosta que seja mostrada. A face obscura, sobre a qual não é de bom tom ficar comentando, é a face dominadora e perversa, que subjuga e humilha. Porque as grandes obras de arte requerem apreciadores escolados, leitores e fruidores com bom nível cultural. A alta literatura não é democrática, ela é classista, sectária, restritiva. Ela é a moeda que, por circular apenas entre os membros da elite, é constantemente usada como arma de dominação. Para auferir prazer com os livros mais sofisticados, o leitor precisa antes assimilar o seu código, as suas regras, a sua estrutura peculiar, a sua história. Às vezes necessita até mesmo aprender outros idiomas e freqüentar grupos de estudos. Tudo isso requer tempo e investimento intelectual e financeiro. Tanto esforço, tanta disciplina, tanta dedicação solitária precisa ser premiada de alguma forma. A recompensa é o prestígio social. Ter lido Dante, Goethe, Mallarmé, Kafka, Machado, Pound, Pessoa e tantos outros autores canonizados é sinal de superioridade intelectual. Nas sociedades como a nossa, pautadas pela raiva, pela vaidade e pelo egoísmo (sublimados ou não), o desprezo que a minoria culta vota à maioria inculta é exatamente o mesmo desprezo que os ricos sempre votaram aos pobres. Mas, se a maioria inculta nunca deixou de ser a mesma, hoje, diferentemente do que ocorria no passado, a minoria culta e a minoria rica já não são mais uma só. São duas, formadas por pessoas diferentes, que também se desprezam. Isso só aumentou a complexidade desse conflito milenar: o bilionário dono de construtora, que adora música sertaneja e filmes de ação, sente repulsa pelo professor universitário que há quarenta anos estuda as consoantes fricativas na poesia do último Hölderlin. E vice-versa.
Dias antes da mesa-redonda no Instituto Itaú Cultural, parado diante do ponto de interrogação esculpido à minha frente pela dupla Felipe & Jorge, eu me perguntava: é possível desfazer essa relação de subordinação? É possível quebrar o gesso da hierarquia, de maneira que os pratos da balança fiquem no mesmo nível? Quatro amigos que estavam comigo, depois de ouvirem a minha pergunta, foram categóricos: não. De jeito nenhum. Eram cinco horas da tarde, hora do tradicional café com pão de queijo. Atravessamos a avenida e nos acomodamos no canto mais tranqüilo do nosso quartel-general, o Fran’s Café que fica na esquina da Pompéia com a Heitor Penteado. A discussão pegou fogo. Não porque meus amigos discordassem uns dos outros, muito pelo contrário. Pegou fogo porque o assunto em pauta pedia eloqüência e socos no ar. Haja vista a minha total incompetência para debates de grande envergadura, nessa mesma hora eu decidi que levaria meus quatro amigos comigo ao anfiteatro da Paulista. Foi o que eu fiz.
[é o lobo]
À mesa do Fran’s Café, o bafafá. O camarada mais velho, tentando dar conta das raízes da amargura e do egoísmo humano, disse bem: “Todo querer se origina da necessidade, portanto, da carência, do sofrimento. A satisfação lhe põe um termo, mas para cada desejo satisfeito dez permanecem irrealizados. Além disso, o desejo é duradouro, as exigências se prolongam ao infinito; a satisfação é curta e de medida escassa. O contentamento finito, inclusive, é somente aparente: o desejo satisfeito imediatamente dá lugar a outro; aquele já é uma ilusão conhecida, este ainda não. Satisfação duradoura e permanente objeto algum do querer pode fornecer; é como uma caridade oferecida a um mendigo, a lhe garantir a vida hoje e a prolongar a sua miséria amanhã. Por isso, enquanto nossa consciência for preenchida pela nossa vontade, enquanto estivermos submetidos à pressão dos desejos, com suas esperanças e temores, enquanto formos sujeitos do querer, não possuiremos bem-estar nem repouso permanente. Caçar ou fugir, temer desgraças ou perseguir o prazer é essencialmente a mesma coisa; a preocupação quanto à vontade sempre exigente, seja qual for a forma que a caracterize, preenche e impulsiona constantemente a consciência; sem repouso porém não é possível nenhum bem-estar. Destarte, o sujeito da vontade está constantemente preso à roda de Ixion, colhe continuamente pelas peneiras das Danaides, constitui o eternamente supliciado Tântalo”.
O amigo sentado ao seu lado esquerdo pegou a calculadora e multiplicou por muitos milhões o indivíduo acossado pela sucessão de desejos, o conflito agora era de toda a comunidade: “Embora a sociedade esteja dividida em classes e cada qual devesse ter as suas próprias idéias, a dominação de uma classe sobre as outras faz com que só sejam consideradas válidas, verdadeiras e racionais as idéias da classe dominante. Que é, então, a ideologia? A ideologia é o processo pelo qual as idéias particulares da classe dominante se tornam as idéias de todas as classes sociais, ou seja, se tornam as idéias dominantes. As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade também é a sua força espiritual. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe ao mesmo tempo dos meios de produção espiritual, isso faz com que a ela sejam submetidas as idéias de todos os que não detêm os meios de produção espiritual. As idéias dominantes nada mais são do que a expressão idealizada das relações materiais dominantes concebidas como idéias, ou seja, a expressão das relações que tornam determinada classe a classe dominante. Dizendo de outro modo, são as idéias de sua dominação”.
Mas por que esse impulso irresistível à dominação? Por que esse terrível afã em subjugar o semelhante? O amigo sentado ao lado direito do camarada mais velho explicou: “Os indivíduos de qualquer população biológica existente irão diferir entre si em pequenas particularidades e terão características ligeiramente diferentes de estrutura e comportamento. Esse é o princípio da variação. Essas variações podem ser passadas de uma geração para outra, e a prole dos que possuem um tipo particular de variação também tenderá a ter essa mesma variação. Esse é o princípio da hereditariedade. Algumas dessas variações darão ao seu possuidor uma vantagem na vida, permitindo que o organismo obtenha mais alimento, fuja mais facilmente de predadores e derrote os outros competidores. Dessa forma, os organismos que possuem uma variação útil tenderão a sobreviver por mais tempo e a gerar mais descendentes do que os outros membros de sua população. Esses descendentes, através do princípio da hereditariedade, também tenderão a possuir essas variações vantajosas, e isso terá o efeito de aumentar, sobre um número de gerações, a proporção de organismos na população que possui essa variação. Esse é o princípio da seleção natural. Na Terra, cada população de seres vivos tem a tendência de crescer exponencialmente, caso se verifiquem as condições adequadas no meio ambiente. Isso leva a uma superprodução de descendentes. Como o ambiente não comporta todos os descendentes, ocorrerá uma luta pela sobrevivência entre os indivíduos de cada população, permanecendo apenas alguns, ou seja, os mais aptos. Toda e qualquer população é caracterizada pela existência de uma grande variabilidade entre os indivíduos que a ela pertencem. Os indivíduos que apresentam características que lhes conferem vantagem competitiva num determinado ambiente, esses são mantidos por meio da seleção natural, ocorrendo assim a sobrevivência e a reprodução diferenciada. Os que não apresentam vantagem são eliminados ou apresentam menor número de descendentes. A sobrevivência e a reprodução diferenciada conduzem a uma gradual alteração nas características da população. É ainda digno de nota que a seleção natural é um fenômeno que, num sentido estrito, ocorre primária e essencialmente dentro das próprias populações. A natureza está em guerra, como dizia Augustin de Candolle, porém a luta pela sobrevivência, que serve de motor para a seleção natural, ocorre basicamente dentro de cada espécie ou, mais geralmente, dentro de cada população. No que diz respeito a essa luta, o principal concorrente do antílope não é o leão, mas sim outro antílope”.
O amigo que até então permanecera quieto, mastigando tranqüilamente o terceiro pão de queijo, sorveu o restinho de café, arrotou baixinho e comentou, completando o raciocínio dos demais: “A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que também esteja presente nos outros, constitui o fator que perturba nosso relacionamento com o nosso próximo e força a civilização a tão elevado dispêndio de energia. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida, pois as paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle, por meio de formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas à identificação e aos relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí também o mandamento ideal de amar o próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. A despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos. No entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que na juventude foram depositadas em nossos semelhantes, e aprender quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à nossa vida pela má-vontade deles. Ao mesmo tempo, seria injusto censurar a civilização por ainda não ter conseguido eliminar da atividade humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas oposição não é necessariamente inimizade. A oposição é simplesmente mal-empregada e tornada uma ocasião para a inimizade”. Tossiu, limpou a boca no guardanapo de papel com o logotipo do estabelecimento, pigarreou e continuou: “Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outro instinto, contrário a esse, buscando dissolver essas unidades e conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico. Isso equivalia a dizer que, assim como Eros, existia também um instinto de morte, Tanatos. Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, desses dois instintos. Não era fácil, contudo, demonstrar as atividades desse suposto instinto de morte. As manifestações de Eros eram visíveis e bastante ruidosas. Poder-se-ia presumir que o instinto de morte operava silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruição, mas isso naturalmente não constituía uma prova. Uma idéia mais fecunda era a de que uma parte do instinto é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade e destrutividade. Dessa maneira, o próprio instinto podia ser compelido para o serviço de Eros, no caso de o organismo destruir outra coisa, inanimada ou animada, em vez de destruir o seu próprio eu. Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição, que, em todo e qualquer caso, sempre prossegue. Ao mesmo tempo, a partir desse exemplo, pode-se suspeitar que os dois tipos de instinto raramente — talvez nunca — aparecem isolados um do outro, mas estão mutuamente mesclados em proporções variadas e muito diferentes, tornando-se assim irreconhecíveis para nosso julgamento. No sadismo, há muito tempo conhecido por nós como instinto componente da sexualidade, teríamos à nossa frente um vínculo particularmente forte, isto é, um vínculo entre as tendências para o amor e o instinto destrutivo, ao passo que sua contrapartida, o masoquismo, constituiria uma união entre a destrutividade dirigida para dentro e a sexualidade, união que transforma o que, de outro modo, é uma tendência imperceptível, em outra, conspícua e tangível”.
[ do homem ]
“Bellum omnium contra omnes”, murmurou o atendente do balcão, que estivera o tempo todo prestando atenção à nossa conversa. “Quê?”, eu perguntei. “Guerra de todos contra todos… O intelecto, para funcionar eficientemente como meio de conservação do indivíduo, tem de ser sempre o mestre dos disfarces. O que sabe propriamente o homem sobre si mesmo? Nada! A natureza e os instintos sempre se esforçaram para ocultar do homem a verdade sobre a vida e o universo. Se comparado à eternidade anterior ao seu aparecimento, o tempo de existência do gênero humano não ultrapassa dois segundos. Daqui a pouco o sol esfriará, o homem desaparecerá e outra eternidade reduzirá o homem ao nada que de fato ele sempre foi. O indivíduo, quando em sociedade, encontra no seu intelecto a melhor ferramenta dessa caixa de primeiros socorros chamada instinto de conservação. Agora essa arte do disfarce chega ao seu ápice, agora o enganar, o lisonjear, o ludibriar, o falar pelas costas, o representar, o mascarar-se diante dos outros e de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra geral que quase nada é mais inconcebível do que o aparecimento de pessoas interessadas unicamente em desmascarar essa situação. Porém o homem, por necessidade ou tédio, quer conservar-se. Então, para existir socialmente e sempre em rebanho, ele precisa do acordo de paz com ao menos parte da sociedade. Ele precisa que a máxima bellum omnium contra omnes pare de vigorar no seu pequeno mundo”.
Sem ser convidado, o atendente puxou uma cadeira e sentou ao nosso lado. Como se fosse o dono do estabelecimento, estalou os dedos e pediu a outro atendente que trouxesse mais café e pão de queijo. O rapaz era genial e genioso, passava da sossegada argumentação à furiosa vociferação sem o menor aviso. Voltamos ao tema inicial: alta literatura, só quem a lê é de fato leitor? Sim. Quanto a isso todos estavam de acordo. Afinal não era possível fechar os olhos para todas as hierarquias em pleno funcionamento na sociedade contemporânea. Conversamos durante poucos minutos sobre a possibilidade de, por meio da razão e do bom senso, partirmos para o desmanche de todas as hierarquias. Acabamos no beco sem saída das utopias. Não. Impossível. O fenômeno da subordinação é algo tão nosso, tão humano, que será impossível acabar com ele sem acabar com toda a espécie. Um de nós, não me lembro quem, lembrou os demais sobre o perigo de se analisar esquemas estáticos, congelados no tempo e no espaço. A noção de alta e baixa cultura não é algo petrificado. Ela diz respeito a fenômenos vivos, em movimento, ora em expansão ora em contração. O modo como os folhetins baratos influenciaram os grandes romances, o jeito como as histórias em quadrinhos invadiram as artes plásticas, a maneira como o jazz e outros ritmos populares dialogaram com a música erudita, e vice-versa, todas essas misturas dizem muito sobre a dinâmica em espiral das hierarquias. Porém nada disso põe em crise a própria noção de hierarquia, que continua firme e forte no seu altar.
Somos movidos pela vontade, pelo desejo, pelo querer, razão pela qual jamais encontramos a paz e o sossego. Nossas decisões são guiadas mais pelo instinto de sobrevivência e pela fome de satisfação do que por interesses nobres e edificantes. O instinto de sobrevivência e a fome de satisfação nos levam à agressão e à subjugação do mais fraco. Depois que o primeiro hominídeo desceu das árvores, o intelecto tornou-se o mais poderoso instrumento a serviço do instinto de sobrevivência. Uma vez que a luta pela sobrevivência ocorre dentro de cada espécie, os homens precisam reunir-se em grupos para tentar impôr a sua vontade. Que determinado grupo escravise os demais, isso é inevitável e, ao que tudo indica, irrefreável. Por isso não importam o sistema econômico, se socialista ou capitalista, ou o sistema político, se monarquista ou presidencialista, ou o partido que estiver no poder, se de esquerda ou direita: a busca pela satisfação imediata, a tendência à agressão e o instinto de dominação submeterão todos os grupos dominantes aos seus desígnios e todos os grupos dominados aos desígnios dos dominantes.
Convidei os meus amigos a participarem comigo da mesa-redonda. No embate com o público e os demais convidados do evento, estar confortavelmente acomodado no ombro de gigantes, como certa vez disse Isaac Newton, não seria nada mau. Todos toparam. Ao nosso lado, na saída do quartel-general, o atendente não parava de falar: “Já que é impossível desmontar as hierarquias, o que todas as sociedades deveriam ambicionar é a formação de elites realmente inteligentes e competentes”. Também o convidei a participar da mesa-redonda. Mas o sujeito não parava mesmo de falar: “Elites realmente inteligentes e competentes… Por Zeus, que bobagem eu acabo de dizer! Que é que motiva a classe dominante? Que é que sempre motivou a classe dominante em todas as épocas e lugares?! O aparelho reprodutor, o estômago e os intestinos, é claro. Na arte e na política a mudança do gosto geral tem muito mais importância do que a mudança dos conceitos estéticos e políticos. Os conceitos, com as provas, as refutações e todo o baile de máscaras intelectual que as acompanha, são apenas sintomas da mudança do gosto, e não, certamente que não, aquilo por que são geralmente considerados: as causas dessa mudança de gosto. Como é que se modifica o gosto geral? Isso acontece quando as pessoas poderosas e influentes pronunciam o seu hoc est ridiculum, hoc est absurdum (isto é ridículo, isto é absurdo), ou seja, o veredicto dos seus gostos e desgostos, e os impõe com tirania. As pessoas poderosas e influentes submetem, assim, as pessoas dos escalões inferiores a certas obrigações que, pouco a pouco, se tornam também habituais para o grande público e finalmente para toda a sociedade. O fato de essas pessoas poderosas e influentes sentirem e gostarem de modo diferente dos outros se deve, é claro, às particularidades do seu metabolismo. A maneira como se alimentam e acasalam é que determina o seu senso estético e político. O excesso ou a falta de sais minerais no sangue ou no cérebro, em resumo, na sua constituição física, é que deflagram as guerras e as revoluções. O que diferencia a classe dominante das demais é que aquela tem a coragem de ouvir as exigências dos seus intestinos, mesmo nos seus tons mais sutis. Aliás, os seus juízos estéticos e morais fazem parte dos tons sutis do seu organismo”. Antes da nossa despedida, alguém ainda comentou: “Lembrem-se de Plauto: homo homini lupus”. “Que injustiça com o pobre lobo”, eu retruquei. O atendente logo emendou: “Predador por predador, o homem é o homem do lobo, do homem, do leão, do tigre, da baleia, do elefante…”
P.S.: No texto foram citados ou resumidos trechos das seguintes obras, nessa ordem: O mundo como vontade e representação (Schopenhauer, 1819), Da origem das espécies através da seleção natural (Darwin, 1859), A ideologia alemã (Marx e Engel, 1845, só publicada em 1932), O mal-estar na civilização (Freud, 1930), Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral (Nietzsche, 1873) e A gaia ciência (idem, 1882).