Guardatório de destroços

Contos do novo livro de Marco Severo mostram que no amor não existe luta breve
Marco Severo, autor de “Se eu te amasse, estas são as coisas que eu te diria”
27/02/2020

“No amor não existe luta breve.” É uma frase pinçada do primeiro conto desta interessante coletânea que, se tem o dissabor de ser um tanto irregular, por outro lado traz a surpresa de revelar, para quem ainda não conhece, um autor que tem tudo para, em pouco tempo, tornar-se um dos grandes da literatura brasileira contemporânea. A ideia contida na frase-citação acima atravessa todos os contos que travam a luta contra as ausências, os abandonos, as frustrações e as esperas quase sempre negadas, que estão imersas nos vários tipos de amor descritos na obra. O sentimento de derrota é uma espécie de veneno, que igualmente perpassa as páginas. Portanto, cuidado ao folheá-las.

O melhor dos textos, que merece várias releituras até pela composição da forma, muito bem estruturada, é Chegada ao local dos destroços, que fala sobre uma mãe dos cartões postais, que se fez presente de modo torpe e perverso, ao adiar sua volta mentirosa para a casa, nos cartões que escreve à filha, que espera, espera, espera.

“De que maneiras se pode medir uma perda.” Não é uma indagação no meio do texto, mas uma afirmativa, porque não tem ponto de interrogação — não há resposta. Simplesmente não se pode medir uma ausência com o que se tem disponível: palavras, números, horas? Não se mede. Assim como não se mede o amor, não se mede igualmente a dor causada por uma mãe que não se deixou sumir completamente, o que seria mais humano, mas, por outro lado, deixou-se entrever pelos cartões cheios de promessas que deixava pelo caminho, como os pedacinhos de pão (migalhas) na história de João e Maria. O que se encontra depois de catar estes restos é o nada, porque a filha nunca consegue ver a mãe de novo. Segue um trecho:

É a partir desse conhecimento que eu me deparo, finalmente, com o que restou. Como se depois de uma incansável busca eu encontrasse o que sobrou de um naufrágio, dos escombros de um prédio que desabou, ou daquele avião caído na mata. O choque da descoberta e a incompreensão da real proporção daquilo com que me deparo sempre maior do que eu. Nunca teremos respostas suficientes. Eu nunca saberei de fato quem é a mulher por dentro da minha mãe, como sei que nunca dormirei completamente em paz por causa disso.

Ausências
Espera, saudade, perda. São os ímãs que ligam as histórias, cujos personagens sobrevivem ao tempo e à morte. Alguns já estão mortos. Outros parecem mortos. Outros estão prestes a morrer ou simplesmente irão desaparecer sem deixar vestígios. Quem fica vai amargar a solidão para contar o que sobrou de si, como em Nunca longe demais de ti, em que um senhor, todos os fins de tarde, retirava a cadeira de balanço da sala de estar e a arrastava até o corredor, onde, posicionado de frente para a entrada da casa, esperava que seu grande amor retornasse. As imagens são fortes, mas simples, cotidianas. Este conto, por exemplo, só pelo primeiro parágrafo, já valeria toda uma filmagem.

Outro belo conto é Dia de jogo é todo dia, sobre o menino que se tornou “o homem da casa” ao decidir vender bombons e cigarros em um estádio de futebol. A crueldade com que ele é defrontado, e que o derrota e ao mesmo tempo que o fortalece, cresce ao longo do texto e revela um pedaço do mundo oco e hostil para onde alguns são aspirados à força:

Foi com o coração carregado que ele colocou a tábua pendurada ao pescoço diante de si e se dirigiu ao estádio. Já entrou com o jogo começando e os torcedores impacientes. Para seu azar, ficou concentrado do lado da torcida cujo time estava perdendo, então não apenas vendeu pouco, mas foi vítima da fúria de quem, não tendo onde aliviar suas dores, as impõem aos outros. E foi aí que Aparecido surgiu no caminho de um desses infelizes.

As ausências familiares estão por toda a parte, como no filho internado que depois de um longo tempo retorna. Com que sentimento vestir a alma no momento desta chegada é algo que a mãe não sabe escolher, moída que está. Entre eles, ergue-se o silêncio e não há palavra no mundo capaz de atravessar este muro: “Era preciso respeitar esse silêncio. Por quais dores seu filho teria passado todo aquele tempo em que não se viram? Ela jamais saberia. De repente se deu conta de que também desconhecia as dores que ele atravessara enquanto viviam juntos, enquanto ele crescia, e essas permaneceriam tão insondáveis quanto as mais recentes. Havia alguma coisa semelhante ao desespero querendo se formar dentro dela. Não poderia se deixar levar”.

A ciência do conto é realmente uma forma cheia de particularidades. Não se trata de um fragmento de romance ou pedaço de narrativa, mas um mundo inteiro, redondo ou pontiagudo, raso ou infinito, mas que se dobra inteiro diante de si mesmo. Saber criar estes mundos independentes é para quem estuda e se debruça de fato sobre o que produz e não se contenta com pouco. Por isso Marco Severo vai ao longe.

Se eu te amasse, estas são as coisas que eu te diria
Marco Severo
Moinhos
129 págs.
Marco Severo
É formado pela Universidade do Ceará (Letras/Inglês) e é muito atuante na crítica e na produção literária contemporânea. Professor e orientador de alunos de Escrita Criativa, publicou Os escritores que eu matei (2015), Todo naufrágio é também um lugar de chegada (2016) e Cada forma de ausência é o retrato de uma solidão (2017).
Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

Rascunho