Grotescamente afetado

“A inevitável história de Letícia Diniz”, de Marcelo Pedreira, é um romance repleto de lugares-comuns, chavões e deslizes na construção
Marcelo Pedreira, autor de “A inevitável história de Letícia Diniz”
01/08/2007

Não é de hoje que o grotesco tem aparecido no âmbito da cultura. Outros autores, alguns mais famosos, outros nem tanto, já fizeram uso desse elemento para dar a tônica dominante de um romance ou, num aspecto mais amplo, de uma obra de arte. No livro Memórias do cárcere, por exemplo, Graciliano Ramos consegue dar a determinadas cenas esse efeito. Jamais sem sentido; sempre com um propósito pré-definido. Com efeito, até autores como Muniz Sodré, atual diretor da Biblioteca Nacional, já se debruçaram sobre o tema do grotesco, analisando os meios e os fins de determinados programas de TV (Comunicação do grotesco). Nota-se, portanto, que o tema não é de menor importância. Justamente por isso, é interessante observar como a sua adequação pode soar despropositada na literatura brasileira contemporânea. Um exemplo disso é o romance de estréia de Marcelo Pedreira — A inevitável história de Letícia Diniz. De temática arrojada, posto que se trata da saga de um travesti, a obra faz uso desmedido do grotesco. E o que deveria ser mero adorno torna-se, como numa cirurgia plástica malfeita, substância.

Marcelo Pedreira, no início do romance, tece uma apresentação curiosa. Dá a entender que o autor será narrador e, de quebra, protagonista. Nesse sentido, por algumas páginas, o leitor desavisado pode inferir que, sim, o livro é fruto de uma experiência real. Essa má compreensão da natureza da história é bastante útil ao autor, uma vez que, com isso, ele ganha tempo e pode criar uma narrativa repleta de lugares-comuns, chavões e deslizes na construção do romance. Lê-se, a princípio, um livro de pequenas memórias e que tem base também no diário de um travesti, Letícia Diniz, que logo aos doze anos, quando ainda era um garoto, é sodomizado pelo pai com uma escova de cabelo, além de levar uma surra após ter sido flagrado se vestindo de mulher. A cena não tem outros desdobramentos além de um diálogo fraco, cujo equivalente mais próximo é o baixo cinema nacional produzido à época da pornochanchada. Se o leitor duvida, que leia o trecho a seguir:

Toma, veado! É disso que você gosta?! É?! Então, pára de chorar e dá um sorriso, filho-da-puta! Diz que quer mais! Diz que tá gostando! Enquanto você não disser que tá gostando eu não paro, tá me ouvindo?! Diz que quer mais! Diz que tá gostando de tomar nesse cu de veado. (Mais detalhes sórdidos no trecho em destaque)

Como se não bastassem os diálogos proto-realistas, que existem aos montes no livro, o autor investe, também, em descrições que primam pela sordidez, mas que carecem de riqueza literária — algo, aliás, que passa longe de todo o livro. Quem já leu um pouco de Nelson Rodrigues (e não precisa ser uma de suas magistrais peças, pode ser um romance como O casamento) sabe que é preciso um pouco mais do que objetos e coisas para que se possa tecer uma cena. Um dramaturgo como Pedreira deveria saber disso. Não é o que se lê no livro. Ao contrário, sobra um cenário malfeito, como se este tivesse sido fabricado por um material de segunda, quando, em vez disso, o autor poderia ter trazido um ambiente bem elaborado, pleno não só nas imagens, mas nos símbolos, algo que ultrapassaria a mera identidade visual. Paralelo a isso, identifica-se um uso indiscriminado de chavões e frases-feitas, como se isso representasse a chamada “sabedoria popular”. Nada mais enganoso. Como se lê a seguir, a psicologia oriunda das massas está mais para programa vespertino de TV: “(…) Coloca de uma vez por todas nessa tua cabecinha de vento: travesti tem que ser dez vezes mais forte, dez vezes mais forte que o mais forte dos mortais. Tristeza é luxo que só os bem nascidos podem desfrutar”. Com sentenças desse gênero, não fica difícil explicar por que o livro não é um romance.

E se não é um romance, o que é, então? Uma boa hipótese é um roteiro. Se for isso, seria um roteiro nada original. A saga do travesti pobre e sonhador que atravessa o país em busca de um sonho é uma versão malfeita de uma mistura entre Uma linda mulher (protagonizada pela atriz norte-americana Julia Roberts) com as tintas coloridas de Candido Portinari no quadro Os retirantes. Como toda tentativa, não seria nada demais se os originais não tivessem sido produzidos e recebidos com o respectivo êxito — no caso do filme, uma consulta rápida diz até que foi indicado para o Oscar… No caso do livro de Marcelo Pedreira, no entanto, alguém deveria ter sugerido como pré-indicação para uma obra desse tipo as vistas ao filme de Pedro Almodóvar, hoje disponível em qualquer locadora mais ou menos bem fornida. O filme? A má-educação. Com isso, de tabela, o autor não só poderia resolver a questão existencial do travesti (a partir da referência do filme), como também os aspectos narrativos que estão mal-costurados ao longo da obra. Alguns personagens, por exemplo, simplesmente desaparecem como purpurina ao longo da história. Desse modo, para além da falta de coerência estilística, as personagens do livro aparecem e desaparecem e dão a impressão que, afinal, não são importantes, sendo, portanto, questionável a simples menção a elas.

Arquétipos
A propósito do que foi escrito nas últimas linhas do parágrafo anterior, alguém dirá, não sem alguma razão, que a personagem central é Letícia Diniz, que, de acordo com uma das frases de Matheus (o, vá lá, coadjuvante da história), desfila pelo Rio de Janeiro. Justamente por isso, no entanto, é que a construção da personagem deveria ter sido elaborada de maneira mais sustentável, para usar um jargão do momento. O que se lê, em vez disso, é uma figura cheia de arquétipos emprestados de várias personagens, mas que, sem o devido tecido, fica absolutamente frágil, a ponto de se desfalecer ao longo dos 34 capítulos do livro. É assim: acaba-se de ler a história e, no segundo seguinte, o que fica são as frases sem efeito, soltas como se fossem papel picado no Carnaval. Frases como esta: “Um agudo senso de realidade é algo que dez entre dez travestis consolidam muito cedo na vida”. Para não dizer que nessas frases não há um alento, cumpre dizer que, quando os chavões aparecem, é um dos poucos momentos em que a narrativa não utiliza uma linguagem chula como muleta. Novamente, uma bela estratégia do autor, já que os leitores desavisados prestam atenção nisso, em vez de acompanhar a narrativa em si.

Certamente, não se pretende afirmar que os problemas de A inevitável história de Letícia Diniz são essas muletas. Nada disso. O problema central é que nem mesmo essas muletas conseguem fazer com que o livro fique em pé. Pior do que isso. Servem como mais um elemento que derruba a narrativa. Longe de ser, portanto, a história de personagens inesquecíveis, o que se lê é uma narrativa tão óbvia quanto patética. Uma tentativa de romance que não possui os elementos adequados para pertencer ao gênero da literatura. E a confissão para isso está na orelha do livro: “Para fazer A inevitável história de Letícia Diniz, o autor fez dezenas de entrevistas com várias travestis nos bairros da Lapa e Copacabana, no Rio”. Para escrever um romance, é preciso bem mais do que entrevistar personagens reais para dar o tom de realismo. E nesse caso, a propósito, o uso indevido do grotesco tão somente acentua as debilidades do livro. Como gênero literário, é um livro a ser encarado apenas como um romance grotescamente afetado.

A inevitável história de Letícia Diniz
Marcelo Pedreira
Nova Fronteira
252 págs.
Marcelo Pedreira
Formado pela Oficina de Formação Teatral da Casa de Artes de Laranjeiras e com cursos de dramaturgia e direção em Los Angeles. Em outubro de 2003, integrou a delegação brasileira da Mostra Brasil-Europa de Dramaturgia Contemporânea, que reuniu dramaturgos espanhóis, franceses, italianos, gregos e portugueses, além de diretores de instituições teatrais européias. Como resultado direto deste encontro, seu texto teatral, Dilúvio em tempos de seca, foi traduzido para o francês. A peça estreou em setembro de 2004 no Teatro Dulcina, com direção de Aderbal Freire-Filho e um elenco integrado por Wagner Moura e Giulia Gam. A peça, assim como A inevitável história de Letícia Diniz, será adaptada para o cinema.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho