As personagens destas histórias, como sugere o título, são cadáveres. Não podem mais abrir a boca e delatar seus algozes. Mas um dia puderam e não fizeram. Por culpa, medo ou vergonha, não fizeram e viraram vítimas. Não tiveram sequer a coragem silenciosa das libélulas fêmeas, que despencam do céu e ficam inertes no chão, fingindo-se de mortas como tática para se defenderem dos machos copuladores. E muito menos conseguiram fazer como muitas espécies que matam depois da cópula — as mulheres não costumam fazer do ódio uma energia de guerra contra quem as maltrata. Usam o ódio para descascar mandioca, por exemplo.
O Brasil exibe um dos piores índices de feminicídio do mundo. Toda mulher, perto ou longe de nosso pequeno mundo doméstico, tem uma história de violência para contar, nas mais diversas nuances e classes sociais. O ponto de união entre os relatos continua sendo praticamente o mesmo: as mulheres não conseguem enxergar, em muitos casos, a tragédia iminente e permanecem na vulnerabilidade.
Por isso, livros como este de Patrícia Melo, Mulheres empilhadas, precisam ser divulgados e espalhados país afora como uma espécie de manual de salvamento urgente. Tem-se a impressão de que tudo já foi dito e que todas já sabem do mal a que estão expostas. Não sabem. A realidade é ainda pior, e toda a informação deve ser anexada aos arquivos da defesa pessoal a fim de que, ao menor sinal de ameaça, as mulheres saibam como se proteger.
Histórias sobrepostas
Mistura de romance e relatos realíssimos, o pano de fundo do livro é uma tribo indígena no Acre onde as mulheres lutam contra homens opressores e tentam criar uma espécie de sociedade de vingança, elaborando as possíveis formas de exterminar os agressores podres. São várias histórias sobrepostas. Entre elas, a da personagem principal, uma jovem advogada paulista que viaja até lá para acompanhar o julgamento de uma série de assassinatos de mulheres da floresta.
Logo se descobre que a advogada foge de uma relação abusiva — um tapa na cara foi o mais evidente sinal. E não só. Como efeito dominó, que ela busca destruir, sua história é antiga, pois a mãe foi assassinada pelo pai. A sequência da descrição da morte só aparece perto do final, e é um dos pontos fortes deste romance fundamental, que reúne um coro de vozes femininas e um desprezível ruído de vozes masculinas.
“Sapo-cururu, na beira do rio…”, cantava. “Dá para carregar dois quilos de laranja dentro dessa sua papada mole”, dizia. Quando notou que não conseguia mais irritá-la, atacou-a mortalmente com uma faca de cozinha. Noutro caso, o namorado teve o cuidado de advertir: “Vou enfiar uma bala na sua boceta”. E cumpriu a promessa. “Luzineide, carniça da sua espécie”, costumava dizer outro assassino, “eu encontro aos montes em lixeira de açougue.”
Estupro moral
Como atestam os relatos, a violência começa na palavra — puta, vaca, cadela, piranha —, o estupro moral. Só que as mulheres não entendem o xingamento como violência ou não querem enxergá-lo como tal. E seguem com seus relacionamentos abusivos até o desfecho fatal.
“— A coisa não acaba nunca. É como enxugar o chão com a torneira aberta. Sai uma mulher miserável, entra outra. Meu trabalho é basicamente lidar com uma fila interminável de mulheres ferradas — disse. No intervalo dos julgamentos, elas vêm falar comigo. Estão cheias de culpa. Muitas ainda amam os homens que denunciaram. Querem retirar a denúncia, querem acabar com o processo, mas a lei não permite”, diz o texto na fala de uma das advogadas encarregadas do julgamento no Acre.
Essa foi a conclusão a que cheguei na minha segunda semana no tribunal: nós, mulheres, morremos como moscas. Vocês, homens, tomam porre e nos matam. Querem foder e nos matam. Estão furiosos e nos matam. Querem diversão e nos matam. Descobrem nossos amantes e nos matam. São humilhados e nos matam. Voltam do trabalho cansados e nos matam. E, no tribunal, todos dizem que a culpa é nossa. Nós, mulheres, sabemos provocar. Sabemos infernizar. (…) Deveríamos, dadas as estatísticas do quanto morremos, matar muito mais. Mas, por algum problema talvez glandular, talvez estrutural, talvez ético, talvez físico, preferimos não matar.
A narrativa central da ficção é intercalada pelos gritos da floresta, as receitas das guerreiras para exterminar os homens, e ainda os casos reais das mulheres mortas pelos seus ex-amores de toda a espécie. Mas o que é real e o que é ficção? Custa-se a acreditar que fatos como os narrados pela advogada ao testemunhar, ainda criança, o pai lavando o chão de sangue onde havia matado sua mãe, sejam reais. Custa-se a acreditar. Talvez seja esta a senha: a dificuldade de se acreditar que a maldade pode estar mais perto do que se imagina e que aquele homem a princípio afável e romântico pode ser uma besta.
Livro. Romance. Manual de salvamento urgente.