Seu livro de memórias dos meses em Auschwitz, É isto um homem?, foi o primeiro sobre um período considerado inenarrável. Foi escrito sob as lentes do cientista e a angústia do sobrevivente, em tom grave, jugular, mas com momentos de claridade. Dentre a farta literatura sobre o Holocausto que existe hoje, provavelmente só o Diário de Anne Frank foi mais lido. Primo Levi publicaria este livro em 1947 e muitos outros nas quatro décadas seguintes, mas o que poucos sabem é que sua primeira publicação veio antes: foi um poema em 1946, intitulado Buna Lager. A voz de Primo Levi poeta nascia de lugar diferente de sua prosa. Esta iria sempre refletir a objetividade e otimismo, ainda que hesitante, que escolheu, mas o desalento irrefreável refluiria em versos.
Publicou livros em quase todos os gêneros literários. Foi necessária uma equipe de quinze tradutores extraordinários para publicar sua obra completa em inglês. Seu estilo inclui várias marcas surpreendentes considerando a temática sombria: o humor sutil, a oralidade, a acuidade científica, o esforço contínuo para evitar julgamentos e deslizes autossacralizantes. Não escrevia sobre Primo Levi, escrevia sobre carrasco e vítima, sobreviventes e afogados, suas virtudes literárias inseparáveis das morais.
Primo Levi nasceu em 1919, ano de fundação da Liga das Nações — que deveria assegurar a paz, mas não houve paz. Enquanto judeus do leste europeu fugiam dos pogroms para qualquer porto que os aceitasse, os judeus italianos sentiam-se seguros, já que ali viviam desde antes do nascimento de Jesus. A família de Primo Levi não era exceção. Ele era sempre o menor, o mais jovem e o único judeu em sua classe, e por todos esses fatores sofria o que hoje chama-se de bullying; em seu diploma de doutorado em química, concluído com louvor, ao lado do nome constavam os dizeres “da raça judia” — mas nada disso era considerado uma ameaça.
Para ele, sua identidade judaica não passava de uma diferença mínima, como ter sardas, até que em 1943 a Itália rendeu-se à Alemanha. Foi nesse contexto que Primo Levi juntou-se à resistência e logo foi preso pela milícia fascista. Foi deportado para Auschwitz em 1944, assim como a maioria dos 50 mil judeus italianos. Ao descer do trem, na chegada, apenas 120 dos 650 prisioneiros passaram a selekcja (“seleção”, em polonês — o idioma reservado pelos alemães às obscenidades): os outros 530 foram direto para as câmaras de gás. Dos 120 “sortudos”, três estavam vivos em 1945. Só três. Levi dedicou o resto de sua vida para entender as mentes diabólicas que escreveram a equação do extermínio e para garantir que a lição não seria esquecida.
A vasta bagagem literária de Primo Levi seria insuficiente para navegar no domínio de Lúcifer. Assim como Dante, o personagem, dependeu da habilidade com as palavras do poeta Virgílio para guiá-lo no Inferno, Primo Levi logo percebeu a importância das palavras que precisaria para decifrar as regras em Auschwitz. Conhecia quatro palavras em alemão: comer, trabalhar, roubar, morrer. “Contratou” um prisioneiro mais experiente para orientá-lo em troca de comida. Rapidamente aprendeu que, lá, “amanhã de manhã” queria dizer “nunca”; um cacetete de borracha era chamado de “intérprete”; “proeminentes” era um eufemismo aterrador para aqueles que sobreviviam às custas de ardis e brutalidade; os desesperados, cuja postura encurvada, de joelhos, denunciava que nada lhes restava eram chamados de “muçulmanos”. Seu próprio nome desapareceu; agora era um häftling, prisioneiro, de nome 174517. Em sua prosa, todo esse aprendizado está detalhado de forma cristalina, o foco recai sobre os verbos. O efeito é de uma aparente racionalização, algum controle sobre o bestial. A turbulência interior contra a qual Levi guerreava não é revelada.
A poesia o acompanhou mesmo nos piores momentos. Ele conta que ao lembrar os versos do Canto 26 do Inferno de Dante (“Considere a semente que lhe fez nascer:/ você não foi feito para viver como os brutos,/ mas para seguir a virtude e o conhecimento”), decidiu que, para não viver como os brutos, iria registrar em palavras tudo que observava. Assim, em versos, brotaram em 1946 as palavras de Buna Lager.
Dimensão visceral
Só agora, após uma espera de mais de 70 anos, os leitores brasileiros têm acesso aos poemas de Primo Levi em edição primorosa. Mil sóis, 60 poemas escolhidos e traduzidos por Maurício Santana Dias, ilumina com novos tons a dimensão mais visceral e menos conhecida de sua obra. Novos tons porque, diferentemente da prosa cerebral, circunspecta, espirituosa, na poesia está o insondável. O dromedário, de 24 de novembro de 1986, portanto poucos meses antes de sua morte, escancara: “Meu reino é a desolação;/ Não conhece limites”. No poema A geleira, datado de março de 1946, já se sentia a impotência esmagadora: “À noite esparso estride e ruge,/ É porque em seu leito de pedra,/ Entorpecido sonhador gigante,/ Luta para revolver-se e não pode”. Levi dizia que os poemas brotam inesperadamente, onde menos se espera. Mesmo infrequente e sem planejamento, a poesia foi fundamental em sua obra. Veio antes da prosa cronologicamente e também espacialmente, isto é, usou poemas como epígrafe em muitos dos seus livros.
É na pele de seus versos que residem a melancolia e dor. Por baixo do otimismo e busca pela luz presentes nos romances e livros de testemunho, pensamentos sombrios habitam e escapam na poesia, representados por insetos, fantasmas acusadores, e sucessivos retornos ao lugar de horror. Na prosa sabe-se o que ele passou, mas na poesia ele indica que sabe o que ainda irá passar. Em uma de suas raras metáforas botânicas, o poema Agave encerra no ciclo de vida da planta um grito de morte. O agave é uma planta nativa de regiões quentes e áridas, de folhas carnudas, suculentas, beiradas de grossos espinhos. Parecem perenes porque crescem lentamente e duram muitos anos, mas de fato florescem uma vez e morrem. É a perfeita metáfora para um menino franzino, “sem cores alegres”, que esperou muitos anos até ser visto. Outra possível leitura é a de um povo que fala apenas “a língua de planta, em desuso, exótica porque vem de longe”.
Em 1984, seus poemas receberam a edição e premiação que merecia, com a publicação de Ad ora incerta. O tema da Shoah reaparece desde o título, extraído de A balada do velho marinheiro, de Samuel Taylor Coleridge, no qual a Morte e a Vida-em-Morte jogam dados em um barco para determinar o destino dos marinheiros. Vida-em-Morte fica com o velho marinheiro, Morte com os outros. A proximidade entre a vida e a morte do eu lírico não poderia ser mais próximo à experiência de Primo Levi. Elie Wiesel (1928-2016), Prêmio Nobel, autor de livros sobre o Holocausto, disse que Primo Levi morreu em Auschwitz 40 anos depois.
O poema Eram cem é dominado por uma imagem ao mesmo tempo concreta e etérea, onde 100 homens em armas estão perfilados, imóveis desde a aurora. Remete às torturantes contagens diárias de prisioneiros no frio, na chuva, na neve, onde o mais mínimo sinal de fraqueza era execução imediata. Mas os 100 homens são fantasmas, estão além da execução: “… suas pálpebras não tremiam./ […] Mas quando no céu floriu a primeira estrela,/ Todos juntos deram um passo à frente./ ‘Para trás, fora daqui, fantasmas imundos:/ Retornem à sua velha noite’”.
Pegadas litúrgicas
Ainda que Primo Levi não se considerasse um homem religioso, deixava visíveis as pegadas litúrgicas de seu conhecimento de judaísmo entrelaçadas à sua familiaridade com a ciência. O título impactante escolhido por Santana Dias, Mil sóis, surpreendente face à temática sombria, é uma imagem presente em No princípio (precisamente as primeiras duas palavras de Gênesis), datado de 13 de agosto de 1970: “Daquele único espasmo tudo veio:/ […] Milhares e milhares de sóis, e esta/ Mão que escreve”. Gênesis pela ótica do Big Bang.
Referências ao Novo Testamento também estão presentes nessa coletânea. Anunciação, de 22 de junho de 1979, traz um anjo em forma de ave de “aparência selvagem”, “Um anjo, mas não aquele de vossas pinturas,/ Descido noutros tempos a prometer outro Senhor”. Assim como o Arcanjo Gabriel, que traz à Virgem Maria a notícia que ela será mãe de Jesus Cristo, essa ave escura traz uma notícia, porém terrível, sobre o monstro que está por nascer, que “pregará a abominação, será acreditado por todos […]/ morrerá insaciado de chacinas, deixando sementes de ódio”.
Em Mil sóis, o corvo como profeta da desgraça surge várias vezes, mas, assim como no poema de Edgar Allan Poe, anuncia a morte sem transcendência, a morte que é o fim. Em O canto do corvo (II), a morte é o silêncio: “Vou persegui-lo até os confins do mundo,/ […] Até que você mesmo se acabe/ Não com um baque, mas com um silêncio”. Além do corvo há elefante, aranha, rato, caracol, mosca, dromedário e outros animais no bestiário do poeta italiano. Seja pela ironia, seja pelo desespero, são todos muito humanos — “a presença inextirpável do animal em todo humano”, como salienta Maurício Santana Dias. Paradoxalmente, sublinham a luta da identidade humana contra a patologia da destruição.
Nestes poemas, a morte está sempre muito perto da vida, volume muito perto do silêncio, noite no meio da luz, como nos campos de concentração. O trabalho como químico que Levi foi obrigado a exercer em Auschwitz e, com isso, involuntariamente contribuir ao nazismo, teve o lado positivo: forçado a ficar dentro do barracão de trabalho, foi protegido das piores lâminas do inverno. Mesmo assim, contraiu escarlatina e quase não sobreviveu. Mais uma vez a proximidade da morte salvou sua vida: foi transferido para a enfermaria e portanto “abandonado no campo” na hora das infames “marchas da morte”, quando o exército alemão forçou os prisioneiros a caminharem mais de 500 quilômetros para longe do alcance dos Aliados, na tentativa de apagar evidências dos crimes de guerra. Poucos dias depois que partiram, o campo foi liberado.
Para sobreviver, Levi valeu-se de algo muito maior do que a sorte. Segundo ele mesmo, foi a vontade de dar testemunho, de transmitir com precisão escrupulosa a experiência a um mundo que com certeza não acreditaria. Muitos prisioneiros relataram um mesmo pesadelo recorrente durante e após o período no campo, no qual já aliviados, em suas casas, ao descrever o que passaram veem que suas famílias simplesmente não podem crer nem querem escutar. Lamentavelmente, o pesadelo realizou-se e continua a realizar-se, mas o esforço de Primo Levi para contar o alimentou, clareou seu olhar e purificou sua linguagem.
Em Mil sóis, a natureza não é amiga, é insondável. A água, a chuva e a neve aparecem associados à dor física, à impotência mediante forças gigantescas. Um elefante é reduzido a ossos “neste lugar cheio de neve”. No paraíso, uma árvore precisa lutar para dar flores e frutos “mesmo quando a neve pesa em seus ramos”. E em O degelo, “Estamos cansados de inverno. O travo/ Do gelo deixou suas marcas/ Na carne, na mente, em lama e lenho./ Que venha o degelo e dissolva a memória/ Da neve do ano passado”.
Aí está a busca pela claridade dos mil sóis à qual se refere Santana Dias, um esforço teimoso em viver a despeito de um universo de morte. “Somos invencíveis porque vencidos./ Invulneráveis porque já extintos.” Era um homem em conflito consigo mesmo: entre a química e a escrita, a identidade judaica e a italiana, o homem público e o privado, a cicatriz e o ácido da ferida. Só um homem dotado de memória fotográfica e autodisciplina sobre-humana poderia escrever sobre Auschwitz sem a luxúria da vingança, como é sua prosa. O preço foi pago na dor da sua poesia, que é onde falava consigo mesmo em voz alta. Às vezes, é só isso que resta para sabermos se ainda estamos vivos.