“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.” O verso de Fernando Pessoa poderia servir de epígrafe a Os desbravadores — uma história mundial da exploração da Terra, escrito pelo historiador britânico, descendente de espanhóis, Felipe Fernández-Armesto, livro que se propõe a estudar esses filhos da quimera, da ambição, da coragem, do auto-engano — e também da necessidade. Nele, os exploradores surgem envolvidos na emaranhada trama com que a geografia limita ou amplia a saga de nossa espécie. E, algo mais do que elogiável, baseando-se em indícios arqueológicos, suposições ou fatos, Fernández-Armesto jamais submete as respostas que encontra à esfarrapada camisa-de-força do reducionismo econômico.
Para leitores acostumados a pensar na conquista dos mares tomando como pontos de partida portugueses e espanhóis, ou para aqueles que se deliciam com narrativas sobre a exploração das fronteiras recônditas da Terra, e concentram seu interesse nos aventureiros modernos, a obra de Fernández-Armesto guarda inúmeras surpresas. Dentre elas, outro mérito da obra: incorporar à história universal, sempre tão centrada na história do ocidente — ou, para ser mais preciso, na história européia —, civilizações esquecidas pelos livros escolares. Também aqui, no entanto, o autor não faz concessões. Chineses, mongóis, lápitas, polinésios, maias, árabes, japoneses, thules, nórdicos, irlandeses e russos são incorporados à aventura da humanidade não para satisfazer à ideologia do multiculturalismo, mas apenas porque, realmente, foram protagonistas da exploração do planeta.
Sem dar espaço a endeusamentos, o ponderado historiador destaca a incrível capacidade de adaptação do homem, mas com uma ressalva: se “hoje consideramos que os pioneiros são revolucionários e inovadores, é provável que subestimemos a força do conservadorismo para induzir algumas comunidades a pôr-se em marcha”. Mantendo seu olhar atento ao pluralismo das experiências humanas — “o único grande valor comum a que não ousamos renunciar” —, Fernández-Armesto analisa desde as primeiras explorações, cujas rotas precisam ser inferidas a partir da “extensão do comércio” e da “disseminação da cultura”, até os dias atuais, quando a superfície do globo encontra-se mapeada.
Assim, viajando das culturas coletoras à globalização, o historiador revisita os primórdios da cartografia — diagramas cósmicos, mapas orais (decorados e repetidos de geração em geração, como nos ritos de iniciação dos lubas, no Congo) e marcadores de rotas dos povos ágrafos — até chegar às observações de Galileu sobre as luas de Júpiter (que se tornaram, “graças à regularidade de seus movimentos, uma referência confiável para medir a passagem do tempo”) e ao trabalho dos renomados cartógrafos Jean Picard, Jean-Dominique Cassini, Guillaume de L’Isle, Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville e Nicolas Sanson. Nenhuma invenção, nenhum avanço tecnológico passa despercebido. Mas Fernández-Armesto lhes concede seu verdadeiro lugar na aventura comandada, principalmente, pela intuição e pelo arrojo. Os navegantes polinésios, por exemplo, “literalmente achavam o caminho pelo tato — ‘pare de olhar para a vela e pilote pela sensação do vento no rosto’, era um tradicional conselho de navegadores, registrado ainda na década de 1970. Alguns marinheiros costumavam deitar-se no flutuador lateral para ‘sentir’ as vagas”.
Oriente e Ocidente
O autor dá vida aos mais inusitados viajantes: Zhang Qian, emissário chinês que partiu, no ano de 139 a.C., em direção à Báctria, um dos reinos da Ásia Central criados depois das conquistas de Alexandre, o Grande; Kan Ying, outro emissário da China, que visita Roma em 79 d.C.; Faxian, o explorador budista que partiu de Xian em 399 d.C. e, percorrendo a Rota da Seda, alcançou a Índia; e o almirante Zheng He, que, obedecendo ao imperador chinês Yongle, realizou, entre 1405 e 1433, sete grandes expedições através do oceano Índico.
Segundo Fernández-Armesto, os chineses não só podem ter “dobrado o cabo da Boa Esperança, de leste para oeste, durante a Idade Média” — pois “um mapa chinês do século XIII mostra a África de maneira bastante próxima da realidade” e “um cartógrafo veneziano de meados do século XV relatou ter visto um junco chinês ou, talvez, javanês, na costa sudoeste da África” —, como também influenciaram, “graças ao desenvolvimento das rotas que cruzavam a Eurásia”, a sensibilidade européia:
É difícil imaginar a grande descoberta da beleza do mundo natural que ocorreu […] no Ocidente — e que associamos principalmente a são Francisco de Assis — sem a fertilização cruzada com a civilização chinesa, que já tinha uma notável tradição de apreço pela paisagem.
Na verdade, essas influências são mais amplas — e a conclusão do autor é de que, sob “determinado ponto de vista, os ocidentais são o resíduo da história da Eurásia, e a projeção onde vivemos é o sumidouro para onde essa história escoou”. Ou seja, “a propagação da agricultura e da mineração, a chegada das línguas indo-européias, as colonizações de fenícios, judeus e gregos, o advento do cristianismo, as migrações de germânicos, eslavos e dos povos da estepe, a aquisição do conhecimento, o gosto, a tecnologia e a ciência da Ásia: tudo isso representou influências exercidas do Oriente sobre o Ocidente”.
Em busca da verdade
Se Fernández-Armesto relembra, por exemplo, os Irmãos Vivaldi, de Gênova, “que se anteciparam em quase dois séculos ao projeto de Colombo e cujas informações se perderam quase que na totalidade”, também redimensiona outros personagens, nossos velhos conhecidos. Dom Henrique, o Navegador, ganha a figura de “um arrivista — um príncipe real não primogênito com ambições acima de sua condição. […] Membro de uma dinastia de modestos recursos e recém-chegada ao poder — detinha a coroa portuguesa desde 1385, somente —, ansiava pelo tipo de riqueza que o controle sobre o comércio do ouro prometia. Para compensar a ausência de uma ‘antiga fortuna’, que Aristóteles definia como indicador da verdadeira nobreza, Henrique impregnou-se dos valores aristocráticos dominantes em sua época — o ‘código’ cavalheiresco”. A corroborar essa descrição, lembremos de Charles Ralph Boxer, que, em seu clássico O império marítimo português, já qualificava dom Henrique de “monopolista e açambarcador”.
Quanto a Hernán Cortés, apenas para citar mais um exemplo, Fernández-Armesto considera-o “superestimado como conquistador”. Contrariando as versões que se popularizaram entre nós graças ao panfleto As veias abertas da América Latina, os astecas na verdade foram derrubados por “uma coligação de povos indígenas […], o mais feroz bolsão de resistência […] entre o México e a costa”.
É pena que o mundo seja vasto demais para permitir ao historiador uma visão pormenorizada do bandeirismo. Ele cita, claro, esses corajosos aventureiros, detendo-se em Raposo Tavares, que, no ano de 1650, chegou até a “vertente oriental dos Andes, e a seguir desceu pelo rio Amazonas”. Mas um estudo detalhado de Fernández-Armesto certamente despojaria os bandeirantes da aura, apenas parcialmente verdadeira, de criminosos, assassinos e escravizadores, versão divulgada por parcela dos estudiosos brasileiros há décadas, num verdadeiro processo de achincalhação desses paulistas que, sofrendo de “paixão ambulatória” — segundo o feliz comentário de Charles Ralph Boxer —, em nada se assemelhavam às outras populações do Brasil litorâneo, as quais, “durante mais de um século, fizeram poucos esforços, relativamente débeis e esporádicos, para a profunda penetração nas terras do interior”. (As citações de Boxer estão em A idade de ouro do Brasil; obra, aliás, que oferece amplo panorama do bandeirismo e da personalidade dos paulistas no capítulo O ouro das Minas Gerais).
Coragem intelectual
Voltando à conquista do Atlântico, se é possível sintetizar as causas da vitória ibérica sobre os mares, devemos seguir Fernández-Armesto em duas brilhantes conclusões.
Ele considera “tentador […] atribuir a penetração do Atlântico, com todas as suas conseqüências, a algo de especial na cultura da região onde ela teve início”. Contudo, sua avaliação é de que “a maioria dos aspectos culturais comumente alegados em nada ajuda, porque não eram exclusivos da costa ocidental da Europa, por serem falsos ou porque não estavam presentes no momento certo”. Investigando todos os ângulos da questão, o historiador consegue, no entanto, discernir um elemento cultural particular e, se não exclusivo do mundo ibérico, extremamente difundido na região: a literatura de cavalaria. Na opinião de Fernández-Armesto, aqueles exploradores estavam “impregnados da idealização da aventura” e “muitos abraçavam ou procuravam personificar o eminente éthos aristocrático da época — o ‘código’ da cavalaria. Os navios eram seus corcéis, e eles singravam as ondas como ginetes”. Só uma “estratégia psicológica de escapismo” poderia “enobrecer atividades que em outras partes do mundo representavam um ônus para a carreira ou um obstáculo para a mobilidade social”. Foi essa “atmosfera romântica” que, segundo o dizer irônico de Fernandez-Armesto, fez o sonho e a ambição triunfarem “em meio aos ratos e às agruras da vida a bordo”.
A segunda conclusão do historiador é também um emblema de sua coragem intelectual. Em uma historiografia dominada por concepções que obedecem cegamente ao materialismo histórico, Fernandez-Armesto recupera a importância das características geográficas: “Durante toda a era da vela — vale dizer, ao longo de quase toda a história — a geografia teve um poder absoluto para limitar o que o homem podia fazer no mar. Em comparação com a geografia, pouco significavam a cultura, as idéias, o talento ou o carisma individual, as forças econômicas e todos os demais motores da história”. E fornece ao leitor uma explicação tão clara quanto elucidativa sobre o comportamento dos ventos que favoreceram os navegantes de Portugal e Espanha, explicando o predomínio dos alísios, “uma configuração regular em que os ventos dominantes sopram na mesma direção, qualquer que seja a estação”. De maneira incessante, “partindo mais ou menos do noroeste da África, os alísios atravessam o oceano, descrevendo uma curva que passa poucos graus acima da linha do equador e prossegue em direção às terras em torno do caribe. Graças aos alísios do nordeste, as comunidades marítimas em torno das desembocaduras do Tejo e do Guadalquivir tinham acesso privilegiado a grande parte do resto do mundo. […] No hemisfério sul, repete-se mais ou menos a mesma configuração, com ventos que sopram do sul da África para o Brasil”.
A Terra inteira
O destemor e a ambição encontraram, assim, dois apoios fundamentais: o sonho alimentado pela literatura e a benevolência dos ventos. Essas condições favoráveis, entretanto, não se repetiram a todos os aventureiros. A história da exploração da Terra é um somatório de erros, desastres, tragédias. Os desbravadores que ousaram enfrentar climas inóspitos e relevos traiçoeiros também são protagonistas da obra de Fernandez-Armesto. Alessandro Malaspina e seu infortúnio, John Cook, Richard Burton, David Livingstone, Henry Morton Stanley, Bering e suas terríveis viagens transiberianas, Ernest-Marc-Louis de Gonzague, Robert Peary, Roald Amundsen, Robert Scott e Ernest Shackleton — todos comprovaram na própria carne os versos de Fernando Pessoa: “Os deuses vendem quando dão./ Compra-se a glória com desgraça”. Eles se reúnem nessa “marcha da insensatez, na qual quase todo passo adiante representou o resultado fracassado de um salto que pretendia ir bem mais longe”. Graças a eles — e a tantos outros, que jamais emergirão do anonimato — podemos ler o poema de Fernando Pessoa1 não como um vaticínio, mas como o relato de um prodígio que se concretizou:
Deus quis que a terra fosse toda uma,
[…]
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até o fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Sim, foram “excêntricos, visionários, românticos arrivistas, marginais, fugitivos da limitação e da rotina, com uma visão de mundo suficientemente distorcida a ponto de serem capazes de reinventar a realidade”. Contudo, graças a tais homens, Felipe Fernández-Armesto elaborou não apenas um volume de histórias — que lemos na tranqüilidade e na proteção de nossos lares, talvez invejando a ousadia e o vigor desses heróis —, mas pôde resumir a grandiosa epopéia cujos resultados seguem produzindo frutos — e da qual temos obrigação de nos orgulhar.