Talvez devêssemos iniciar a resenha de O sr. Pip, de Lloyd Jones, tentando responder à pergunta deixada em aberto no texto: Quem é você? — Como nos definimos nos extremos do mundo? — Quem chegamos a ser quando perdemos nossas memórias e mementos? É possível reiniciar nossas vidas e reconstruí-las a partir do trauma e da devastação?
Na ilha de Bougainville, as coisas tendem a se delinear de uma maneira diferente da que conhecemos. Neste cenário verídico, conturbado por acontecimentos presenciados por Lloyd Jones durante sua reportagem sobre o bloqueio imposto à ilha por Papua Nova-Guiné, descobrimos uma sociedade alheia às preocupações ocidentais. O fato de pertencer a um grupo de ilhas onde se desencadearam as batalhas mais sangrentas da Segunda Guerra Mundial, não aparenta ter deixado traumas nas pessoas, apenas velhas armas aproveitadas pelos rebeldes, no livro chamados de “rambos”. Talvez isso se explique pela impossibilidade de assimilação: os códigos são tão diferentes que não permitem interpenetração entre os distintos grupos culturais que ali convivem. Desde o início, com a história do primeiro branco que aparece na ilha, tentando entender-se com o avô da narradora, já vemos as falhas de compreensão. O branco quer nomes, identidades, origens e a possibilidade de obter coisas. O avô só lhe pode oferecer elementos naturais, e quase indistintos. E o seu sorriso.
O colonialismo, no entanto, não deixa de operar por causa dessa falha de comunicação. Pelo contrário, talvez se aproveite dessa incompreensão para estender suas garras. É isso que se pode depreender da história do filme sobre a visita do duque. Instada a fazer uma redação sobre o que tinha visto, a narradora confessa que não tinha idéia do que se tratasse o episódio: “Não entendi o sentido, então escrevi sobre o meu avô e a história que ele contou do homem branco que tinha encontrado como um peixe, jogado na praia de sua aldeia, que naquela época não tinha eletricidade, nem água corrente e não sabia a diferença entre vodca e rum”.
Visto através dos olhos de Matilda, uma jovem negra de 13 anos, o cotidiano se revela através de sua percepção cujas chaves vão sendo repartidas, pouco a pouco. Logo de início, ela avisa que sua geração tinha crescido acreditando que o branco era a cor de todas as coisas importantes, desde aspirina a fita de cabelo. Mas, é a visão de um branco fora dos padrões que funciona como elemento perturbador de um mundo onde “tudo era sempre igual”.
Quando Matilda começa a sua narrativa, ela parece ser a portadora do olhar de estranhamento. Os adultos, ao encontrarem com o bizarro do comportamento do “Outro”, têm dois caminhos: reverência — no que se refere às palavras de Deus apresentadas pelos missionários — ou repúdio: os olhos que se desviam e preferem olhar para uma colônia de formigas ao invés de prestar atenção num branco em uma missão bizarra.
Com a instauração do bloqueio comandado por Port Moresby, esse Outro, que eles preferem não ver, vai se tornar visível mais uma vez. Saindo de sua casa escondida pela vegetação, o Olho Arregalado (Popeye, no original) transforma-se, pouco a pouco, em sr. Watts, aquele que lhes apresenta o sr. Dickens. Em sua ignorância inicial, os moradores de Bougainville acham que esse sr. Dickens poderá lhes conseguir as “benesses” que os brancos haviam trazido para a ilha: combustível para os geradores, remédios para a malária, e cerveja. O que este homem branco vai lhes trazer, afinal, é um outro código cultural, um novo livro, concorrendo com a Bíblia (o bom livro), pelo qual devem se orientar em sua relação com os brancos.
Inúmeras leituras
A história passa a ter, então, inúmeras leituras. A primeira é, obviamente, a leitura de Grandes esperanças, considerado pela crítica moderna entre os mais importantes da extensa produção dickensiana. Falando de mudanças num mundo em mudanças, o livro vai sendo lido e interpretado pelos moradores da vila ora como um exemplo a ser seguido ora como uma ameaça. Pip, o órfão criado por Dickens, cede lugar ao Pip feito de areia e conchas do imaginário de Matilda, que se identifica com o personagem a ponto de dar mais valor às lições que este lhe traz do que aos ensinamentos difusos e pouco claros dos antepassados de sua família. Matilda deseja tornar-se outra, e aprende o custo que tem de pagar pela transformação:
À medida que progredíamos na leitura do livro, algo me aconteceu. […] Conhecia aquele garoto branco órfão e aquele lugar pequeno e frágil onde ele se enfiava entre sua horrível irmã e o adorável Joe Gargery porque o mesmo espaço passou a existir entre o sr. Watts e minha mãe. E eu sabia que ia ter que escolher entre os dois.
Mesmo com o sr. Watts dando espaço aos ensinamentos tradicionais da região, o fosso vai-se ampliando entre esses dois defensores de livros únicos. E, com o término da história de Pip, os “dias perderam o sentido”. Mas as mudanças estão em movimento e, pela primeira vez, os grupos parecem prontos a se inter-relacionarem. As perguntas se sucedem: Daniel, um dos alunos, pergunta ao professor como é ser branco, e, em resposta, recebe a indagação: “Como é ser preto?” O surpreendente são as respostas corriqueiras (um se compara a um mamute, outro diz que é normal) que só vão se revelar em toda sua contundência com o acréscimo de outra pergunta: “Quem é você?” Somente quando é feita a pergunta precisa é que a resposta correta pode começar a se delinear. Enquanto se perguntava quem é Pip, quem é Dickens, quem é Watts, cada um se descobria dono de uma verdade diferente. Com a pergunta “quem é você?”, descobrimos que, para se conhecer, é preciso conhecer o outro, em todas as suas versões, e isso é o que o conhecimento do livro de Dickens revela às crianças e seus pais. Somente quando juntamos todos os dados é que a teia de aranha da trama começa a fazer sentido. Sob este ponto de vista, o desejo de Lloyd Jones é nos ensinar a respeitar as outras versões da história. Ensinar-nos a ler uma nova e inesperada cultura para, por nossa vez, podermos responder à pergunta fundamental: Quem somos?
O autor nos presenteia, então, com uma nova versão de Pip, desta vez o Pip/Watts, que se vai revelando e vai ensinando aos Rambos e aos habitantes do lugar sua falhada tentativa de integração. Seu amor e devoção à sua falecida esposa, Grace, levaram-no a um caminho equivocado, de fora-do-mundo. Só com a reinterpretação de suas grandes expectativas é que ele encontra seu lugar de protagonista na história, mas a História não vai permitir sua reintegração, nem seu resgate. O mundo do sr. Watts se acaba, num violento massacre. Tanto ele quanto sua oponente, Dolores, a mãe de Matilda, são eliminados pela força bruta e pelo descaso dos peles-vermelhas, os mais mesquinhos representantes da exploração colonial, pois só pretendem a posse e a exploração, sem intercâmbio cultural.
Profundamente traumatizada, Matilda consegue escapar por força do acaso. Resgatada por um navio, ela consegue chegar até seu pai, e levando as lições aprendidas com Watts e Pip, ela procura compreender melhor seu passado e reavaliar suas expectativas. Acompanhamos a narradora, tal como o leitor de Dickens acompanha Pip, em mais uma guinada da sorte. Matilda vai para Londres, à procura de Pip, assim como já tinha ido, em Nova Zelândia, à procura do sr. Watts. As novidades que ela descobre ferem-na como a descoberta de que a versão lida pelo sr. Watts na ilha não correspondia ao texto de Dickens. Mais uma vez ela se sente desanimar, chega a cair em depressão, até compreender sua lição, e ser capaz de procurar o caminho de retorno.
O problema do livro é, exatamente, seu didatismo com relação às lições que o colonialismo pode nos dar. Ao sair de seu lugar de homem de meia-idade, e branco, e colocar-se no texto como uma criança negra que se torna mulher, tendo como exemplo um modelo anacrônico de um órfão branco da Inglaterra vitoriana, Lloyd Jones demonstra sua tentativa de apagar a má consciência da sociedade colonizadora, oferecendo-a como modelo possível de resgate para os males que ela mesma criou. É uma tentativa honesta e agradável, e caminhamos pelas diversas leituras com prazer. O problema é que, ao chegarmos ao final do livro, o papel de parede poderá estar em chamas, (“o leitor mergulhado num livro só erguerá os olhos quando o papel de parede estiver em chamas”) e, encantados pela solução proposta, poderemos não ter a capacidade de debelar o incêndio que devora nossa sociedade de diferenças negadas.