No mundo de rótulos e fórmulas comerciais em que vivemos, os escritores costumam ser aprisionados em imagens rígidas, verdadeiras couraças, que se tornam clichês vulgares e impedem a leitura independente de suas obras. Kafka, o escritor do absurdo; Clarice, a escritora do Eu; Pessoa, o poeta das máscaras — eis algumas das armaduras com que, com a ilusão de que nos aproximamos, na verdade nos afastamos dos escritores e nos protegemos do impacto que a literatura é capaz de gerar.
Daí ser prudente voltar-se para as chamadas “obras menores”, livros marginais, desprezados porque destoam da grande obra, e que em geral são reduzidos a exercícios circunstanciais, ou rascunhos; mas que, na verdade, guardam a alma de um escritor. É o caso de Noite, pequena e impecável novela que Erico Verissimo escreveu em 1952 e publicou em 1954.
Verissimo escreveu Noite, narrativa breve de apenas 134 páginas, no intervalo entre o segundo e o terceiro volumes de sua obra maior, e mais consagrada, a trilogia O tempo e o vento. Escreveu-a, talvez, como um desafogo pessoal, um exercício de ser o contrário do que os outros diziam que ele era, e que provavelmente ele mesmo julgava que era.
Na medida em que experimenta tudo aquilo que descarta em seu grande livro em processo, Veríssimo usa Noite, quem sabe, como um exercício de “des-ser”. Nela, ele experimenta tudo aquilo que não é e, também, o que parece não desejar ser. Se O tempo e o vento tem como grande personagem a história, Noite se caracteriza pela imprecisão, e mesmo pelo desdém pelos fatos reais. Se sua trilogia apresenta personagens densos e emblemáticos como o capitão Rodrigo e Ana Terra, Noite nos oferece seres fluidos, que mais se aproximam da fantasia arbitrária e da alegoria, do que de homens de carne e osso.
Se a ação de O tempo e o vento se desenrola no terreno firme da história e faz do tempo sua matéria, Noite — pequena narrativa que, como já anuncia o título, transcorre em uma única noite — concentra o tempo, dele fazendo uma espécie de ralo metafísico que, como um buraco negro, traga qualquer tentativa de ato conseqüente que se esboce à sua volta. A ação, em vez de avançar sobre a grande colcha de eventos reais, se move em círculos e perfura o real, apontando para seu miolo. Desprovidos de projetos, ou de intenções, os personagens da novela se deixam arrastar pelos acontecimentos e pelos impulsos.
Na verdade, o talho profundo que Noite abre na complexa obra de Erico Verissimo não deveria surpreender. Verissimo foi o escritor “psicológico” que escreveu livros sensíveis como Clarissa e Música ao longe. Foi o autor de “romances internacionais”, que predominam na fase final de sua obra, como Incidente em Antares. Foi, como todos sabem, o autor de grandes épicos, com destaque para o monumental O tempo e o vento, romance monumento, com suas mil páginas que atravessam duzentos anos de história.
Noite é um livro tão dissonante e embaraçoso que, na maior parte das vezes, é simplesmente “esquecido” — como se sua lembrança trouxesse problemas insolúveis, ou provocasse perguntas inconvenientes. Ocorre que, dentre todos os livros de Erico, ele é aquele que rompe, com mais vigor, a argamassa de clichês que petrifica sua figura literária. Novela desarmônica, que repuxa a máscara do escritor de “romances históricos” (quando seus grandes personagens épicos são produtos, unicamente, de sua imaginação); do escritor “regionalista” (quando ele ultrapassa as circunstâncias locais e, nos últimos romances, salta para o mundo); e a pior e mais redutora delas, o clichê do “escritor gaúcho” — quando a geografia nada tem a dizer a respeito da literatura.
A leitura de Noite ilumina a imagem de Erico Verissimo com cores e perspectivas inesperadas. Até porque, quanto mais o tempo passa, mais o livro se torna atual. A novela relata a história de um homem sem nome, tratado apenas como O Desconhecido, ou, às vezes, como o “homem de gris”. Em uma noite de verão, ele se vê perdido nas ruas. Perdeu a memória, não reconhece as pessoas que encontra, não sabe quem é, nem para onde vai. É nesse estado de sonambulismo que o personagem de Erico Verissimo atravessa a noite, com a candura de um embriagado.
O Desconhecido carrega em seus bolsos objetos que não lhe pertencem, ou que ele julga não pertencer. Leva uma carteira cheia de dinheiro. A quem pertence, ele a teria roubado? No pulso esquerdo, traz um relógio de ouro. Assusta-se, mais ainda, quando encontra em um dos bolsos um lenço manchado de sangue. O que aquele sangue significa? Teria ele cometido alguma violência, algum crime? A notícia de um sujeito que foi assaltado, que teve a carteira e o relógio roubados e que levou uma violenta pancada na cabeça, leva o pobre homem a se projetar no papel de criminoso. Há também o rumor de uma mulher achada morta em seu leito, o corpo destroçado a facadas. Desconfia-se do marido, que desapareceu. Será ele o marido?
Noite relata, passo a passo, a ronda do Desconhecido através de um mundo crepuscular e em estilhaços. Conforme se move, é bombardeado por informações que já não sabe para que servem, pois já não pode dizer o que é verdadeiro e o que é falso. O “homem de gris”, na verdade, se parece muito com o homem de hoje, também ele com o espírito em fragmentos, asfixiado por um bombardeio de informações que não se completam e não se esclarecem (basta recordar a zoeira infernal produzida hoje pelas CPIs), torturado por desconfianças e por suspeitas, ameaçado por perigos que é incapaz de definir.
O Desconhecido — assim como o homem que vive no mundo superveloz e superinformado de hoje — se move em uma bruma. Seu mundo perdeu a consistência, o sentido e a coerência. Toda ação é inútil. Na noite, ele encontra dois companheiros. Um anão (chamado O Corcunda), um marginal repulsivo que, apesar disso, é quem se oferece para escoltá-lo. E O Mestre, na verdade um ator fracassado, um grande falsificador, espécie de um mundo em que a sabedoria, o equilíbrio e a serenidade foram substituídos pelo cinismo, pela malandragem e pela dupla face. Mundo não mais da identidade, mas da não-identidade. Mundo de idéias fanáticas e duras, de pregadores, de detratores e de invasores, em que viver se torna muito difícil.
Esses personagens o conduzem a universos sinistros e limítrofes. Vão a um velório (a morte), ao submundo noturno (a decadência), a um prostíbulo (o corpo reduzido à função de objeto), a uma banal quermesse em um parque de diversões (lugar do jogo, do duplo, das máscaras, do falso). Encontram duas mulheres, O Passarinho e A Ruiva, sempre assim, seres reduzidos a rótulos, a clichês, a disfarces. Vivem, sem ter a certeza de viver.
É verdade: o próprio Erico Verissimo parece não suportar a visão tenebrosa e radical que nos oferece em seu livro. Com o avançar das páginas, ele passa a se empenhar em salvar seu Desconhecido (e provavelmente se salvar), substituindo a ação bruta por ingênuas páginas “explicativas”. Aos poucos, Veríssimo recheia sua narrativa de recordações de infância, sonhos, lembranças remotas, especulações psicológicas. Sem forças para prosseguir no mundo infernal que criou, ele se apega, exausto, às soluções de manual. Como se não aceitasse abandonar seu leitor, ele tenta nos oferecer as chaves do caminho. E, aqui, o livro perde sua força.
Mas nem esse desfecho reticente, essa “solução” que apenas mostra que o próprio Verissimo não pôde suportar a novela que escreveu, nem isso tira a grandeza de Noite. Hoje, meio século depois de sua publicação, o pequeno livro se torna mais atual e mais radical que nunca. Sua leitura revela o caráter futurista e até premonitório da literatura de Erico Verissimo. Uma literatura que habitualmente se associa ao passado e à memória, mas que, em Noite, aponta, com firmeza, para a frente e para o futuro.
Agora que tal futuro chegou, Noite nos obriga a redesenhar o retrato oficial de Verissimo, um autor de muitas faces e de muitas potências, um grande escritor que não merece ser reduzido à miséria das classificações. E que deixou um livro, um pequeno livro, uma jóia que, lido hoje, sem preconceitos ou prejulgamentos, nos obriga a pensar na longa face obscura, no grande segredo que preside a criação literária.
Nas livrarias
Desde 2002, a Companhia das Letras vem publicando a obra completa de Erico Verissimo. Abaixo, os títulos já publicados pela editora.
Ana Terra
O arquipélago — Volume 1
O arquipélago — Volume 2
O arquipélago — Volume 3
As aventuras do avião vermelho
Caminhos cruzados
Um certo capitão Rodrigo
Clarissa
O continente — Volume 1
O continente — Volume 2
Do diário de Sílvia
Incidente em Antares
Música ao longe
Olhai os lírios do campo
Outra vez os três porquinhos
O retrato — Volume 1
O retrato — Volume 2
Rosa Maria no castelo encantado
Os três porquinhos pobres
O urso com música na barriga
A vida do elefante Basílio