Miles Roby é um cara normal. Quer dizer, quase. Na verdade, Miles Roby é um vacilão. Perdeu a mulher dele por não ter prestado atenção nela durante os 20 anos de seu casamento. Não tem a confiança da filha, ainda que ela lhe adore, pois se afastou dela há muito tempo. Não tem coragem de seguir os seus sonhos, nem mesmo os desejos menores, pois encara a vida de maneira covarde. Não consegue nem mesmo pedir à dona do restaurante onde trabalha como gerente uma licença para vender bebidas (estamos nos Estados Unidos). Em outros termos, Miles Roby é um grandessíssimo bunda-mole.
No entanto, poucas vezes conseguimos nos identificar tanto com Miles Roby como nesse grande livro, Empire Falls, do escritor americano Richard Russo, prêmio Pulitzer de ficção de 2002. Esse é o primeiro livro do escritor lançado no Brasil, e conta a história da pequena cidade norte-americana de Empire Falls (Quedas d’água de Empire, não há nada político no livro) que, após o fechamento das três principais fábricas ali instaladas alguns anos antes, está em processo de franca decadência.
Miles é um cara comum que leva uma vida comum, quer dizer, em termos, com as dúvidas comuns a qualquer ser humano. Ele tem medo dos “não” que pode levar, e também tem medo de dizer não. Tem medo de contrariar as pessoas, inculcada que está em sua formação a presença da mãe católica, que sempre lhe ensinou que é necessário esquecer a própria dor para assumir a dor dos outros. E cada passo seu, em vez de guiado por vontade própria, parece já escrito em algum outro lugar.
Os personagens de Empire Falls são muito bons. Miles Roby é o gerente do Empire Grill, praticamente o único restaurante da cidade nos tempos atuais. Miles está nos últimos dias de seu processo de divórcio de Janine, com quem teve uma filha, Tick. Janine está para se casar com Walt Comeau, dono da academia ginástica local, e aparentemente o único empresário de sucesso da cidade. O pai de Miles, Max Roby, é um desclassificado social, uma pessoa que não se enquadra em nenhum esquema de relacionamento convencional. A mãe de Miles, Grace, faleceu há 20 anos, mas ainda é a presença mais forte na vida dele. David, seu irmão, tem um braço inutilizado por causa de um acidente rodoviário, que, no entanto, o salvou do alcoolismo. No Empire Grill, trabalha também Charlene Gardiner, antiga paixão de Miles. Todos eles são “supervisionados” por Francine Whiting, dona de mais da metade da cidade e viúva de C. B. Whiting, último varão da família proprietária das três fábricas — uma tecelagem, uma fábrica de camisas e uma serraria — que eram o centro da economia da cidade, antes de sua venda e posterior fechamento. Sim, são muitos personagens, e ainda há outros importantes para a trama. Afinal, um épico que se preze tem muitos personagens, diversas tramas paralelas, e Empire Falls é um épico.
A trama é envolvente. Russo, com muita habilidade, parte de um breve histórico da vida da família Whiting em Empire Falls e do balcão do Empire Grill para contar a semana de Miles. Sim, porque a maior parte da ação do livro, pelo menos até a sua metade, fala dos acontecimentos daquela semana, e da sensação de Miles de que ele está em um túnel, em velocidade crescente, e uma luz vem em sua direção. Se é um trem no sentido contrário ou o fim do túnel, ele ainda não sabe. Russo vai então mostrando as ligações com os personagens em um ir e vir temporal equilibrado, sem chances para que o leitor se sinta desorientado em sua caminhada.
E o livro é muito bem escrito. Não há cenas em excesso, não há longas descrições. Quando Russo se atém a detalhes, é porque eles são imprescindíveis para a trama. Para saber porque C.B. Whiting quis explodir o grande rochedo Robideaux Blight para acelerar o fluxo do rio Knox, que passa ao lado de Empire Falls, temos que conhecer a topografia do local onde está a sua mansão. E entenderemos, de maneira irônica, e apenas no fim do livro, que C.B. conseguiu quebrar a maldição dos homens da família Whiting sem saber.
As descrições também ajudam a compor na mente do leitor o cenário de cidade quase fantasma. É praticamente palpável a desolação e o abandono a que a cidade está entregue. Casas fechadas, semi-ruínas, à venda, com poucas perspectivas de que encontrem um comprador. A avenida central abandonada, ainda ecoando o bulício do passado. A silhueta das fábricas contra o horizonte, lembrança de tempos mais felizes na cidade, agora um monumento à decadência. Não há como não visualizar a cidade, adestrados que estamos com as imagens do cinema americano.
Russo também domina como poucos o ritmo do livro. Pode-se quase sentir que ele vai preparando o terreno, convidando o leitor para tomar conhecimento do solo onde está pisando, pois logo em seguida ele irá pisar fundo e acelerar de maneira contundente. E não há como não se deixar prender no vórtice por ele criado. Parece ser um livro grande, com certeza muito maior que a maioria dos que estão aí no mercado, em tempos de “fast reading books” (tendência editorial já em andamento nos mercados de língua inglesa, onde escritores produzem livros para serem lidos em no máximo duas horas, tempo de um filme longa-metragem. O irônico da coisa é que já há casos de livros que são lidos em uma hora e quinze, mas geram longas-metragens de duas horas e meia), mas o leitor não perceberá isso. Na hora em que perceber, irá devorar o livro com uma voracidade que havia muito não lhe acometia. Porque o livro é bom (perdão pelo tom apaixonado, mas fazia tempo que eu não lia um bom romance como esse Empire Falls).
E, claro, vai simpatizar com Miles, vai ficar puto da cara da maneira como o autor trata as personagens principais, em especial Tick, vai ficar mordido de raiva em ver a bunda-molice de Miles, mas ao mesmo tempo vai vibrar quando ele consegue superá-la, e, decididamente, não vai ter pena alguma de Francine Whiting. Russo não dá a personagem alguma superpoderes, intuições sobrenaturais ou coisa que o valha. Esse é um romance realista, ainda bem. As personagens de Empire Falls são sim carne e osso, como nós. E por isso há empatia com os personagens. Bom, pelo menos com os bons personagens, aos maus-caracteres reservamos apenas nosso desprezo.
Enfim, Empire Falls é um livraço. Não se assuste com o tamanho, não o despreze por ser escrito por um norte-americano, não o esnobe porque o livro ganhou o Pulitzer. Russo prova com essa obra que não há fronteiras para a tragicomédia humana, pois no fundo os desejos são iguais: amor, reconhecimento, carinho, conforto material e espiritual e diversão. O resto é confete.