Grande arte claustrofóbica

Lançado quando Dostoiévski tinha apenas 26 anos, “A senhoria” já apresenta o pleno domínio narrativo do autor russo
Fiódor Dostoiévsk, autor de “A senhoria”
01/11/2006

Há um prazer um tanto curioso em ler obras de início de carreira de grandes gênios, aquelas problemáticas, ainda cheias de defeitos do estreante. É evidente que alguns autores, como Elias Canetti (Auto-de-fé), Gustave Flaubert (A educação sentimental), Thomas Mann (Os Buddenbrooks) e Ernesto Sabato (O túnel) começaram suas carreiras com obras-primas. Mas é apenas uma minoria que consegue tal façanha. Por isso a curiosidade em tatear os volumes iniciais de Machado de Assis ou Henry James: imperfeitos, rascunhados, mas com a semente dos realizadores do futuro.

Fiódor Dostoiévski foi desses autores que não estrearam com pleno domínio de seu poderio narrativo. Algo que fica bem claro na leitura de A senhoria, novela lançada recentemente pela Editora 34 na coleção Leste, cujas traduções são feitas diretamente do russo. A senhoria é um livro errático. Ali, porém, podem-se antever elementos que consagrariam um dos mais influentes escritores de todos os tempos. Foi lançado em 1847, logo após Gente pobre e O duplo, quando Dostoiévski tinha apenas 26 anos.

Chama a atenção o tomo pequeno, pouco mais de cem páginas. Apesar dos clássicos minúsculos Memórias do subsolo, Um jogador e O eterno marido, costumamos lembrar do autor russo pelos maiúsculos Crime e castigo, O idiota, Os demônios e Os irmãos Karamazov, calhamaços escritos em um fantástico furor criativo de 15 anos, poucas vezes visto antes e depois dele.

Dostoiévski abre a novela nos apresentando Vassíli Ordínov, um personagem principal que de cara parece surpreendentemente frouxo. A descrição psicológica de Ordínov indica um conjunto óbvio: um rapaz órfão, solitário, “asselvajado”, “que na infância tinha fama de esquisito e era diferente de seus companheiros”. A solidão o transformou num ser introspectivo, excêntrico para as outras pessoas, que nunca amara qualquer pessoa e nunca fora amado. Seu único gosto era a ciência.

Até o texto dostoievskiano soa estranho neste começo. Adjetivado, pomposo, com aparentes pretensões estilísticas. Mais francês do que russo. Diferente daquela prosa a que costumamos relacionar o russo, insana, derramada, tão guiada pela emoção que muitos chegam a cometer o disparate de afirmar que ele escrevia mal.

O motivo central de A senhoria é a mudança de Ordínov, obrigado a abandonar seu quarto quando sua antiga senhoria muda-se de São Petersburgo. Depois de caminhar pelas ruas da cidade, entra em uma igreja e vê um velho acompanhado de uma jovem moça. Segue-os e acaba se tornando inquilino no pequeno apartamento do casal. Logo o estudante se apaixona pela moça, Katierina, atenciosa e gentil, e se interessa pelo misterioso silêncio do velho, Múrin, que mal abre a boca nas primeiras oitenta páginas, dedicando boa parte do tempo às orações. Apura com um amigo policial e o porteiro tártaro o passado de Múrin: é um ex-comerciante cuja fábrica foi destruída em um incêndio, supostamente enlouqueceu e agora trabalha como bruxo, lendo a sorte das pessoas.

Estado febril
A novela começa a melhorar quando Dostoiévski passa a ser Dostoiévski. Possuído pelo amor por sua nova senhoria, Ordínov entra, logo em sua primeira noite na nova moradia, em um estado febril que se prolonga por dois dias. Acorda amparado por Katierina, e seu amor só faz aumentar. Relembra, então, o sonho que o perseguiu febre afora: imagens meigas de infância, de sua mãe ninando e embalando-o no berço, até surgir um vulto, um velho malvado que o persegue por um bosque e passa a dominar todas as suas atividades. O tempo passa no sonho, ele cresce e o senhor obscuro não o abandona. Imagens de jardins, cidades destruídas e mortos levantando de tumbas irrompem, tornam-se difusos, abstratos, até serem reduzidos a pó. Ordínov acorda. O velho do sonho, naturalmente, é Múrin.

A partir daí, A senhoria é dominada pelo clima de delírio, de pesadelo expressionista, e os três personagens principais transitam livremente entre os estados de consciência e sonho — “nesse ponto”, observa o crítico e tradutor Paulo Bezerra na orelha da edição, “Dostoiévski antecipa Kafka”. E o Fiódor dos pesadelos de Ordínov é aquele que conhecemos das obras-primas:

Aterrorizado, tentava se insurgir contra esse fatalismo funesto que o oprimia, mas no momento cruciante e mais desesperador da luta uma força desconhecida tornava a golpeá-lo, e ele percebia, sentia claramente que estava de novo perdendo a memória, que de novo uma escuridão impenetrável e insondável se abria diante dele, e ele se lançava a ela com um uivo de angústia e desespero (…) Estava sempre tentando agarrar avidamente uma sombra com as mãos, muitas vezes tinha a impressão de ouvir um rumo de passos leves, próximos, pegados à sua cama, e o sussurro, doce como uma música, das palavras ternas e amáveis de alguém.

O próximo a delirar é Múrin, epilético como Dostoiévski, e depois Katierina. Descobrimos o passado dela e as origens de sua relação com o velho bruxo, que a tomou para si de sua família morta e a mantém com ameaças religiosas. O tour de force do livro é o café da manhã regado a vinho dividido entre os três companheiros de quarto. Ali, eles se amam, se odeiam, berram, choram, gargalham, discursam, devaneiam, tremem, soluçam — é a grande arte claustrofóbica de Dostoiévski, o romancista dos diálogos insanos e dos anti-heróis sem qualquer pudor de paquerar o ridículo.

Múrin, que finalmente começa a falar, após dezenas de páginas apenas assombrando Ordínov e o leitor com sua presença macabra, torna-se, mais do que a amada Katierina, o norte espiritual do estudante. As páginas finais da novela, agora já com Ordínov longe do casal de senhorios, são dedicadas às transformações intelectuais provocadas pelo bruxo no jovem. Se antes a “atividade prática, cotidiana” de Ordínov era a ciência, o seu “capital”, “uma arma apontada para si mesmo”, aquilo que “intoxicava a sua paz noturna, subtraía-lhe o alimento sadio” e lhe imprimia o sentido do mundo através da lógica racional, agora essa paixão sofreu abalos sérios.

Ora, A senhoria foi escrito na metade do século 19, em pleno fulgor cientificista, quando se acreditava que a ciência responderia aos anseios dos que não se satisfaziam com os limites da fé. Como Ordínov, Dostoiévski sofreu um cisma espiritual que nunca cicatrizou — e como esperar outra coisa de um homem que viu o pai ser morto e que mais tarde esteve no pelotão de fuzilamento para ser salvo no último segundo? O russo nunca se livrou dos tormentos provocados pela divisão entre o racionalismo e a religião. E se foi o precursor do existencialismo, foi também profundamente cristão, capaz de redimir Raskolnikov (junto com o “homem do subsolo”, o futuro de Ordínov) de seu crime hediondo.

Por isso, o autor nunca trata com jocosidade ou ironia o misticismo e o excesso de fé de Múrin: ele respeitava os temores que vieram a acometê-lo, como acometeram Ordínov (o que talvez explique o velho do sonho do estudante ser o bruxo). É como se Dostoiévski pudesse dizer que “Ordínov fui eu” e “Múrin serei eu”, embora ele sempre tenha sido um pouco dos dois.

A senhoria
Fiódor Dostoiévski
Trad.: Fátima Bianchi
Editora 34
142 págs.
Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski
Nasceu em Moscou, em 30 de outubro de 1821, num hospital para indigentes onde seu pai trabalhava como médico. Em 1837, sua mãe morre de tuberculose. Dois anos depois, seu pai é assassinado pelos servos de sua pequena propriedade rural. Em 1846, Dostoiévski publica seu primeiro romance, Gente pobre, recebido com entusiasmo pela crítica. É autor de clássicos da literatura universal como Crime e castigo e Os irmãos Karamázov. Reconhecido como um dos maiores autores russos de todos os tempos, o escritor morre em 28 de janeiro de 1881, deixando vários projetos inconclusos.
Jonas Lopes
Rascunho