Gramática sentimental

Antologia de poetas negras amplia a possibilidade de escuta para o contexto mais amplo da diáspora africana nas Américas
Ilustração: Tereza Yamashita
01/11/2024

Esta antologia de poetas negras dos Estados Unidos do século 20, organizada por Lubi Prates, cumpre diversas funções, se é que se pode falar de função em literatura. A primeira é oferecer uma caixa de ferramentas, uma gramática sentimental e de expressão em texto sobre a experiência de ser mulher negra na diáspora, seja na América do Norte, seja na América do Sul. Obviamente, nem tudo na vida da negra estadunidense corresponde à experiência da negra brasileira. Aliás, texto nenhum corresponde exatamente à experiência de quem quer se seja, nem mesmo da autora. Mas todo leitor já teve a experiência de encontrar em um texto uma formulação precisa, que organiza de súbito as próprias experiências, muitas vezes de coisas que não estão nem mesmo conscientes. O texto revela, ressalta, traz à tona ao mesmo tempo em que resolve, supera, liberta.

O que uma antologia assim produz é uma ponte de comunicação entre pessoas herdeiras de uma experiência traumática inenarrável — a escravidão —, e a possibilidade de compartilhamento de estratégias de sobrevivência e de cura. Ou seja, de narrar o inenarrável. A literatura é feita de palavras e a palavra tem o poder de organizar as experiências do passado, de iluminar a situação do presente e de abrir caminhos para o futuro. Estes três tempos são danificados pela experiência do trauma: o passado fica inacessível; o presente, obscuro; o futuro, bloqueado. Mas o que a experiência bloqueia, a palavra pode ajudar a liberar, sobretudo quando cultivada em conjunto, no seio da comunidade, na troca e na escuta. É o que os negros brasileiros vêm fazendo há séculos, na escuta reverente da ancestralidade, nas estratégias de camuflagem e expressão no momento apropriado, nas rodas e nas igrejas, na palavra em segredo e na intervenção pública, no humor mordaz e no elogio doce. A música, a religião e a literatura conhecem bem essas práticas, dentro das famílias, nos bairros, através do país, mas ao ler este livro, escutamos ecos disso tudo em outros timbres mais distantes. O que uma antologia assim propõe, afinal, é a possibilidade de ampliar esta escuta para o contexto mais amplo da diáspora africana nas Américas. O que a experiência do trauma separou, finalmente, a experiência da literatura pode ajudar a religar.

Genocídio e escravidão
Embora até muito recentemente as trocas entre as literaturas de Brasil e Estados Unidos tenham se dado quase em sentido de mão única (apesar da descoberta recente de Clarice Lispector e Machado de Assis!), há muito que une a experiência dos países continentais, fundados no genocídio indígena e na escravidão negra. E se cada país tem sua tradição de luta própria, houve intercâmbios diretos, como a experiência de Abdias do Nascimento nos Estados Unidos, mas houve também muitos intercâmbios imaginados. A força do mercado editorial americano — para não falar da indústria cultural como um todo — operou de tal maneira que os reflexos das lutas políticas e culturais travadas lá abriram também caminhos e ofereceram estratégias para as lutas daqui. A complexidade do mercado, a profissionalização dos autores, a auto-organização em coletivos de publicação, crítica e leitura, a dimensão política das lutas pelos direitos civis e os Panteras Negras, e a própria posição de subalterno — sim, ainda que no contexto da maior potência econômica e militar da história — permitiram um desabrochar, um experimentalismo e, sobretudo, um acúmulo na literatura negra estadunidense desproporcional em relação à brasileira, ainda que aqui os negros fossem maioria. E não porque os autores de lá fossem melhores, mas simplesmente pelas diferenças de condições materiais e de infraestrutura de publicação e circulação.

Apenas recentemente a literatura negra brasileira começa a se beneficiar de parte desta estrutura. O trabalho fundamental, contra-hegemônico e heroico, que iniciativas como, por exemplo, os Cadernos Negros tiveram nas últimas décadas, encontrou só agora um contexto favorável no mercado e na pauta política do dia, como mostram os diversos editoriais de “diversidade” que vão surgindo nas grandes editoras. Neste momento de bons ventos, recorrer à tradição estadunidense, que tem mais acúmulo, tratando de questões e vivências distintas, mas com um mesmo problema de origem — a escravidão e o racismo estrutural —, poderem oferecer toda uma ferramentaria, um repertório, um arsenal mesmo de técnicas, abreviando caminhos, evitando becos sem saída e sobretudo ampliando as possibilidades. A literatura negra brasileira chega a uma encruzilhada e lá pode se beneficiar dos conselhos da estadunidense, que já a vem frequentando há mais tempo.

Mas caberia perguntar: se de fato um volume de poemas como esse oferece uma gramática emocional para mulheres negras. Se para as escritoras, ele é um repertório de técnicas, um ponto possível de comparação com diferentes em condições semelhantes. Se ele organiza um cânone de mulheres negras, além do cânone masculinista das academias. Então como ele opera para “os outros”, ou seja, para aqueles e aquelas que não são mulheres negras? A resposta está na ordem do dia: afinal, para quem é que, em um país como o Brasil, não interessaria ter um acesso em alto nível, como o possibilitado pela linguagem poética, à experiência, à fabulação, ao imaginário dessas mulheres? A tarefa mais importante atual não é compreender, escutar e ver os modos de vida e as demandas, inclusive estéticas, dessas mulheres? Uma antologia deste tipo, com as implicações que ela pode ter na nossa literatura, não seria finalmente o começo de um Brasil?

Múltiplos temas
Mas é preciso deixar nítido, retinto: seria uma redução enorme dizer que a temática do livro é uma temática negra ou de mulheres. Os poemas tratam dos temas inúmeros da vida humana — amor, medo, morte, metalinguagem — a partir de um ponto de vista que, embora seja da maioria demográfica no Brasil, ainda é de uma minoria literária. Não é um livro de poesia negra ou feminina, é um livro de poesia, escrito por mulheres negras. A diferença é gigantesca. Não se trata de uma redução, mas de uma ampliação de nosso repertório humano, como um todo, que pode finalmente acessar modos de estar no mundo que até pouco tempo estavam ainda escondidos, censurados, ignorados. Quando Nikki Giovanni escreve:

é ser um objeto sexual se você é linda
e sem amor
ou ter amor sem sexo se você é gorda
cai fora sua preta gorda seja uma mãe
avó coisa forte mas não mulher

O que eu, um crítico homem, de pele clara, tenho a dizer sobre versos assim? Talvez nada, mas isso seria simples demais. O que eu posso comunicar é que aprendo ao lê-los, que me alegro por saber que eles existem e que agora existem em português. Que aprendo a ser mais humano tendo acesso a outras vivências, sobre um estar no mundo que não me é acessível normalmente. Que há uma potência estética e política incalculável nisso, possibilitada por esse compromisso de confiança infinita através do tempo e do espaço, entre escritora e leitor, que é a literatura. Ou seja, que além de um privilégio, é um tipo de obrigação moral e política dedicar minha atenção a ela. Este é um dos pontos principais deste texto.

O outro é justamente a qualidade e a força de síntese gigantesca nestes poemas em que todo um catálogo de profissões e ambientes de trabalho, dentro ou fora de casa, ganha vida através da vida interior das poetas. Os temas são infinitos, como os da vida de qualquer pessoa (a descrição da mão peluda do amado, a exaustão do trabalho explorado, enterrar um feto, a imaginação histórica sobre a experiência da escravidão), mas uma certa recorrência vai dando um caráter também coletivo aos textos. Em certo sentido, a poesia é, e sempre foi, isso, uma sensibilidade específica expressa com tanta invenção e precisão literária que se torna apreensível, cognoscível, experienciável por outros. O caso aqui, que é o caso da experiência negra nas Américas, é finalmente ter as próprias experiências, individuais, coletivizadas por meio da escrita e da leitura em grande literatura.

Cuidado e violência
Se fosse preciso mapear dois temas principais, talvez eles fossem cuidado e violência. Estar colocada na posição de cuidar. Colocar-se na posição de cuidar. Ver a si mesma e os seus em permanente posição de necessidade de cuidado por uma violência anti-humana e permanente, às vezes camuflada, às vezes aberta. Um sublime terrível e muito próprio desta poesia, feito com uma convicção quase impossível. Como escrever poesia depois de Auschwitz, perguntou Adorno? Ora, como escrever um poema sobre mais um menino morto pela polícia? A poesia tem repertório, a poesia aguenta a bronca? Estas poetas, sim, e sua poesia, que é “diferente da retórica”, como afirma Audre Lorde.

Quando Amina Baraka diz em Legado escravo:

Alguns mascaram a dor do navio escravagista
Com o lamento de um violão, o toque de uma gaita
envolveram a aflição em música de algodão
levaram seus sonhos em sacos do Norte

É quase como se estivéssemos lendo também um tipo de samba. Para escrever um poema sobre a escravidão é preciso coragem infinita e uma leveza que parece quase pouco apropriada para a gravidade da situação. Essa tristeza alegre do samba é algo que a sensibilidade artística negra sempre trabalhou, produzindo resultados de uma força ética e estética inimagináveis para quem nunca precisou imaginar seus antepassados escravizados. Esta poesia não apenas elabora o trauma coletivo através da linguagem, mas o transforma esteticamente em obra de arte: ou seja, permite que este objeto linguístico dê testemunho da história, reorganize a sensibilidade sobre estes fatos históricos, de forma que em seus exemplos mais bem-sucedidos, a história da escravidão se transforma em uma história da dignidade e da resiliência dos povos negros nas Américas. É um esforço sobre-humano, coletivo e constante que se espalha e alimenta diasporicamente através do longo litoral dos continentes e através dos rios de seus interiores, em forma de canções, conselhos e antologias como essas.

É impressionante como as tradições, as imagens, ressoam na produção daqui. Às vezes parecemos encontrar uma perspectiva sobre as coisas como a de Conceição Evaristo, às vezes de Cidinha da Silva. Será efeito da tradução? Ou estarão ressoando mesmo tambores mais longínquos? Quando se lê um poema sobre os desabrigados pelo furacão Katrina, eles não ressoam na pele, na memória dos desmoronamentos rotineiros do mês de janeiro e das pessoas que estão acostumadas a ver no jornal, “acostumados ou não com enchentes, fome, medo”? Em todo caso, o livro, sem dúvida, se beneficia também da tradução de poetas negras brasileiras. Na sensibilidade do próprio ofício, a tradução se equilibra entre a fidelidade ao original e a adaptação à linguagem e à experiência específica brasileira. Traduzir é também atualizar, se apropriar para as próprias necessidades, em parceria com o original.

Vale ainda dizer que a edição é bonita, elegantemente ilustrada e informativa. A decisão feliz de oferecer uma pequena biografia de cada uma das poetas ressalta uma das funções da antologia: estabelecer laços entre as vidas das mulheres, leitoras e escritoras, daqui e de lá. É um livro para deleite estético, mas no sentido mais amplo possível: a estética como processo de formação de modos de sentir, vivenciar e organizar a vida. Lubi Prates chama a antologia de “livro de formação de muitas mulheres negras”.

POEMAS

Uma mulher fala
Audre Lorde

Enluarada e tocada pelo sol
minha magia não é escrita
mas o vai e vem do mar
desenha minha silhueta.
Não busco favor
intocado por sangue
implacável feito maldição de amor
perene feito meus erros
ou meu orgulho
eu não misturo
amor com pena
nem ódio com desdém
e se for me conhecer
procure nas carnes de Urano
onde rebentam revoltos oceanos.

Não me atenho
ao meu nascer nem minhas deusas
pois sou eterna e quase gente grande
e ainda no vestígio
de minhas irmãs
bruxas de Daomé
me guardam em suas vestes torcidas
como nossa mãe guardava
o pranto.

Já sou mulher
há muito tempo
cuidado com esse sorriso
feitiço perigoso com magia antiga
e a verde fúria do meio-dia
com tantos mais futuros
prometidos
sou mulher
e não sou branca.

ouçam, crianças
Lucille Clifton

ouçam, crianças
guardem isso onde
vocês possam guardar
para sempre
guardem isso de todas as maneiras

nós nunca odiamos preto

ouçam
nós estivemos envergonhados
desesperançosos cansados com raiva
mas sempre
de todas as maneiras
nós nos amamos

nós sempre nos amamos
crianças, de todas as maneiras

passem isso adiante.

Você lembrará seus nomes
Org.: Lubi Prates
Bazar do Tempo
264 págs.
Lubi Prates
Nasceu em São Paulo (SP), em 1986. É poeta, editora e tradutora. Publicou Coração na boca (2012), Triz (2016), Um corpo negro (2018) e Até aqui (2021). Sua obra já foi publicada na Alemanha, na Argentina, na Colômbia, nos Estados Unidos, na França, entre outros países.
Tomaz Amorim Izabel

Nasceu em Poá (SP). Graduou-se na Unicamp e fez o doutorado em Teoria Literária na USP. É autor do livro de poesia Plástico pluma (Urutau).

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