O escritor Graciliano Ramos foi preso na casa onde residia com a família em Maceió, na antiga rua da Caridade, mais tarde Conselheiro Almeida Guimarães, no dia 3 de março de 1936. Casa de frontaria baixa, com três janelas de madeira trançada em forma de gradis horizontais e verticais. Ali, ele havia escrito os derradeiros capítulos de Angústia.
Acusavam-no de “atividades extremistas” — expressão bastante vaga e injusta, sobretudo tratando-se de quem, como Graciliano, conspirava apenas contra os maus literatos, e costumava, quando muito, freqüentar um bar em Maceió. Ali, entre goles de café e cigarros, ouvia discussões literárias. Mas o que querem? Estava-se na ditadura de Vargas, os comunistas se tinham levantado contra o regime, num movimento que os militares, ainda hoje, chamam pitorescamente de “intentona”. E, pior ainda, estava-se na Província, em cidade ainda pequena, onde, no dizer do crítico Agrippino Grieco, qualquer rumor se transforma em pororoca. Intelectual na Província é um perigo público: tem idéias próprias e, pertencendo à falange dos francos, costuma expô-las.
Graciliano seguiu preso para o Rio de Janeiro, via Recife, no porão de um navio, e ficou encarcerado até 13 de janeiro de 1937, sem processo formal de culpa. Quase um ano de cadeia. Apesar de todos os vexames a que o expuseram, a partir da perda da liberdade, o escritor descreve esse período sob um prisma puramente artístico e documental. Não há, com efeito, em Memórias do cárcere, lugar para ressentimentos, azedumes, acusações panfletárias ou tentativas de proselitismo ideológico. O escritor porta-se com discrição e extrema dignidade. Quando completou 60 anos, no Rio, a 27 de outubro de 1949, recordou com alguma ironia e sarcasmo, em discurso lido por sua filha Clarita, em homenagem que intelectuais lhe prestavam:
“Embarquei em Maceió, sem pagar passagem, saltei no Recife, embarquei de novo e estive alguns dias mal acomodado, não porém em situação pior que a de numerosos viajantes, pois o navio era uma insignificância, muito sujo, e nos tinham reservado o porão. Aqui, num carro fechado, não pude admirar as ruas novas e os arranha-céus. Alojei-me num quarto molhado, transferi-me a outro, já ocupado por legiões de insetos domésticos, morei numa estalagem onde pijamas eram roupas de luxo, que se vestiam pelo avesso, porque muitos dos habitantes costumavam introduzir com habilidade as mãos nas algibeiras alheias e esvaziá-las (…) E aqui estou, depois de muitas quedas e de pequenos saltos, olhando as paredes do cemitério bem próximo.”
Sobre essa serenidade sarcástica de Graciliano em face dos vilipêndios sofridos, o escritor João Alves das Neves ponderou que as Memórias do cárcere exprimem “apenas o desejo de permanecer justo em um mundo onde tudo se fazia para liquidar a dignidade humana que o escritor e tantos de seus companheiros mantiveram nos momentos mais graves, quase de pânico, tão fiéis a si mesmo quanto aos ideários diversos que os animavam”.
Ainda assim, pergunta-se: Graciliano teria sido um escritor engajado?
A resposta é sim.
Mas convém refletir sobre a palavra engajamento. Entende-se por escritor engagé aquele que põe a sua arte a serviço de um credo político, de uma ideologia. Os que não o fazem são vítimas, então, de censura, perseguições, exílio. Assim aconteceu e tem acontecido em várias culturas. Na Rússia pré-revolucionária, que foi um caldeirão fervente de idéias, posicionamentos, cobranças e conflitos, o ficcionista Ivan Turgueniev jamais convenceu os radicais de que fazia em seus romances e novelas uma literatura social. Eles queriam a adesão completa, sob forma de propaganda direta, a um realismo dito “socialista”, e o escritor, que além do seu compromisso com a escrita artística, nascera em berço aristocrático, pagou caro a sua resistência aos extremismos. E, no entanto, o grande ensaísta marxista Isaiah Berlin disse, numa conferência em Oxford, que “seus romances” (referia-se a Turgueniev) “constituem o melhor relato do desenvolvimento social e político da pequena, porém, influente elite da juventude russa liberal e radical de sua época”. Certamente o autor de Pais e filhos não era um pregador, mas também não foi apenas o poeta elegíaco, o poeta do amor e da natureza, o lírico que muitos visualizavam. Berlin chega a afirmar que ele teria sido melhor profeta do que outros escritores rivais comprometidos com aquele realismo que faz da literatura arma de combate na luta das ideologias. Turgueniev empenhou-se a fundo em fazer análise social capaz de oferecer munição à causa revolucionária. No entanto, e ainda segundo Isaiah Berlin, “o uso consciente da arte para fins estranhos a si mesma, ideológicos, didáticos ou utilitários, especialmente como uma arma deliberada na guerra de classes, conforme queriam, os radicais dos anos 60, era-lhe detestável”.
Em relação a Turgueniev, o nosso Graciliano levou a vantagem de não haver no Brasil de 1930 e decênios seguintes um conflito permanente envolvendo numerosas facções. Não tivemos burgueses contra estudantes contra operários contra stakanovistas contra revolucionários terroristas contra direitistas contra ocidentalistas contra eslavófilos e tantas outras classes e facções que compunham a sociedade russa pré-revolucionária. O Brasil da ditadura Vargas era tão somente o país de direita ou esquerda, de comunistas ou integralistas, de espoliados ou espoliadores. Acresce que no Brasil da época em que Graciliano Ramos escreveu as suas obras-primas não tinha os escritores na conta de líderes únicos do povo, o que ocorria na Rússia, onde o grande Bielinsky chegou a investir contra Gogol, a quem acusou de servir “à causa do obscurantismo e da reação”. Logo Gogol, o autor de Almas mortas, o autor de O inspetor, o autor do conto O capote…
Sim, Graciliano foi, a seu modo, um escritor engajado. Primeiro, porque jamais ocultou a sua origem sertaneja, nem dela dourou, uma vez sequer, a pílula. Por temperamento, vocação e temática, foi um escritor nordestino daqueles que se preocupam, basicamente com a realidade à sua volta, e observam-na, e sofrem com ela, e sofrem em razão dela, e a levam para as suas páginas sem qualquer traço de literatura ornamental. Dessa realidade imediata, e tantas vezes brutal, como se vê em S. Bernardo, Infância e Vidas secas, o escritor esculpe a sua prosa. Quase nada inventa para acrescentar, ele se empenha apenas em recriações no interesse da composição literária. Filho de um agricultor e comerciante de pequenas posses, representante rural de uma classe média que tentava levantar a cabeça, Graciliano se alistou desde cedo nas fileiras dos que fazem da contemplação e reflexão a sua razão de ser, e eventualmente, em proveito da sua vocação para as letras, se transformam em homens de ação. O meio rude parece ditar um caráter inflexível, obstinado, que, no caso de Graciliano, centrou-se na dignidade e honestidade pessoal.
Segundo, porque seus primeiros livros surgiram no período de fermentação de dois movimentos revolucionários — a chamada Segunda República, que se estendeu da Revolução de Outubro de 1930 à Revolução Constitucionalista de julho de 1932. Uma literatura realista, calcada na ambiência e no sentimento público, teria fatalmente de refletir a inquietação reinante, pelo menos em segunda leitura. O romance de estréia, Caetés, é uma crônica de costumes ambientada em cidade do interior, e com uma linguagem irônica e sarcástica que faz lembrar Eça de Queiroz, mas, a partir de S. Bernardo, o romancista se encontra. Após a experiência como prefeito de Palmeira dos Índios, Graciliano vai exercer, a convite do Governador Álvaro Paes, o cargo de diretor da Imprensa Oficial do Estado, em Maceió. À noite, freqüenta com discrição o bar Ponto Central, também chamado Café do Cupertino, em frente ao antigo Relógio Oficial, na esquina da Rua do Comércio com a Senador Mendonça. O romancista Jorge Amado, que foi a Maceió conhecê-lo pessoalmente, em agosto de 1933, recordou-o dessa forma: “Chapéu de palheta, a bengala, o cigarro, face magra, sóbrio de gestos”. Sorvia café preto em xícara grande e fumava Selma com ponta de cortiça. Ouvia mais do que falava, o que não o impediria de ser reconhecido como líder do grupo. Moacir Medeiros de Sant’Ana, autor de Graciliano Ramos: vida e obra, Maceió, 1994, e que sucedeu a Graciliano na direção da Imprensa Oficial, lembra com acerto que o romance Angústia, de 1941, reflete esse momento. O personagem Luís da Silva refere-se algumas vezes às suas idas ao café, onde seus amigos, o tímido e esquivo Moisés e Pimentel, morriam de medo da polícia. Narrado na primeira pessoa, Angústia tem, como quase toda a prosa ficcional de Graciliano, algum teor autobiográfico. Escreve Luís da Silva, a propósito do café e dos seus fregueses literatos ou não:
A mesa a que sento fica ao pé da vitrine dos cigarros. É um lugar incômodo: as pessoas que entram e as que saem empurram-me as pernas. Contudo não poderia sentar-me dois passos adiante, porque às seis horas da tarde estão lá os desembargadores. É agradável observar aquela gente. Com uma despesa de dois tostões, passo ali uma hora, encolhido junto à porta, distraindo-me.
Exilado da realidade, retraído e deprimido, esse personagem Luís da Silva considerava-se “um níquel social”. Graciliano julgava-se um “revolucionário chinfrim”, porque não pertencia a nenhuma célula de agitação revolucionária, nada fizera de grave e, a depender de pessoa como ele, “não teria havido uma só revolução no mundo”. Condenava, é claro, o capitalismo, pregando-lhe alfinetes, “únicas armas disponíveis”, aplaudia as pichações esquerdistas nos muros e achincalhava os integralistas. Estes eram os seus pecados, mas a justiça, como sempre precária, no seu entender, acabaria descobrindo na sua obra e nos seus atos algum motivo de condenação. Foi o que ocorreu.
A literatura já foi comparada a “um jardim fictício habitado por sapos de verdade”. A frase é de Marianne Moore. Se o escritor ouve o coaxar dos sapos, ou seja, se tem os olhos e ouvidos abertos, se escreve apenas sobre o que vê, conhece e sente, se está disposto a dar um testemunho apaixonado porém honesto de sua época e de sua geração, será sempre um escritor engajado. O engagement faz parte de um ofício exercido com critério e honestidade. Não se trata de arte pela arte, nem de arte pela propaganda — senão de arte pela vida analisada e interpretada sob um primado puramente artístico.
Nesse particular, Angústia, com toda a sua prosa encantatória, é um libelo dos mais fortes. Sem qualquer filiação ao dito realismo socialista, Mestre Graça faz quase um romance proletário. O elenco de figurantes pertence à classe média baixa — ou a grupos sociais ainda mais carentes. Um passado amargo condiciona o tempo presente do personagem-narrador Luís da Silva, que se debate em vão, atado às engrenagens de uma sociedade então pré-capitalista. Se vivesse hoje, sessenta anos depois, certamente sua situação seria a mesma, ou talvez pior. De lá para cá, alguns indicadores sociais melhoraram, mas outros vícios, como corrupção, banditismo e falência dos costumes familiares, agravaram-se. A classe média que Angústia descreve, varrida de incertezas, insegura quanto ao dia de amanhã e sobrevivendo a custa de renúncias, estaria proletarizada.
Modesto funcionário público, esse Luís da Silva tem um destino trágico, não somente por suas origens, mas também porque há em seu redor, manietando-o, uma rede de circunstâncias restritivas: as condições de vida no País. Em plena ditadura, com os frutos da renda e do bem-estar concentrados na maioria privilegiada, toca aos despossuídos como Luís da Silva o sonho da revolução popular. Um sonho bem vigiado pela polícia. Luís quer participar dele. Quer contribuir para uma luta travada nas sombras em prol de uma ordem social igualitária. Ao mesmo tempo, tem de sobreviver: há o aluguel, os preços dos gêneros alimentícios e dos remédios estão escorchantes, tal como hoje, e, fustigado pelo impulso de ascensão social, se submete. O intelectual Luís da Silva, um revoltado, elogia o governo que o escraviza. Em Vidas secas, o vaqueiro Fabiano, depois de tomar facão no lombo por ordem de um soldado amarelo, encontra-se com este na caatinga e, de facão em riste, recua e deixa-o passar, porque “Governo é governo”.
Fabiano é um bruto com raros lampejos de consciência, por isso sofre menos. Mas Luís da Silva tem a consciência aguda de sua situação. Nele, a tragédia imposta pelo passado familiar sertanejo e pelas circunstâncias adversas na cidade, vem a ser reforçada pela tragicidade que se conglomerou na sua formação. Sua visão de mundo é trágica e seus pensamentos e ações, ainda que contidos pelo meio acanhado e opressivo, dirigem-se para a tragicidade.
Essa tragicidade nos faz pensar no romance naturalista e em Thomas Hardy, que em certa medida o praticou, fazendo remontar os condicionamentos do meio social ao “President of the Immortals”, citado por Ésquilo. Quer dizer, as personagens seriam trágicas não apenas por herança, mas igualmente por uma necessidade inconsciente, intensa, de buscar a tragicidade como forma de explicação, ou de justificação, ou de sentido para o mundo. Ora, essa diferença, esse segundo plano eleva a arte literária acima de quaisquer tentativas de um realismo dirigido.
O compromisso maior de Graciliano Ramos, o seu engajamento como escritor, está, portanto, na recriação da realidade que ele vê, conhece e sente, mediante uma argamassa do psicologismo e do documentário social naturalista, que vem a ser, depois dele, a pedra de toque do chamado “romance nordestino”. S. Bernardo, publicado em 1936, nos parece o grande exemplo de romance psicossocial. Nele, aliás, Graciliano formula a cartilha de um modernismo que não veio de São Paulo, da Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos, porque é produto da meditação solitária de um autodidata no sertão de Alagoas, mais exatamente em Palmeira dos Índios.
Disposto a escrever a sua tragédia pessoal, Paulo Honório, rude e ganancioso proprietário rural, convoca os amigos letrados, o padre, o advogado, o jornalista, etc., distribui as tarefas e espanta-se com os resultados. O capítulo que lhe davam a ler não estava escrito “em língua de gente”. Sintaxe antiga, gramática pernóstica que imitava os desgastados padrões da língua portuguesa. Ironicamente, com o pouco que sabia, com total honestidade de recursos de expressão, será Paulo Honório o autor único do seu romance. Alguns críticos julgaram tal proeza um artifício do romancista, quando, no nosso juízo, Graciliano Ramos deitava ali um manifesto de modernidade literária. Sem sair de Palmeira dos Índios, onde tinha casa comercial herdada do pai Sebastião Ramos, o escritor encomendava livros que lhe chegavam em lombo de burro, lia os clássicos portugueses, franceses e russos, admirava Aluízio Azevedo e se deleitava com “a linguagem sarcástica de Eça de Queiroz”.
Os 19 primeiros capítulos de S. Bernardo foram escritos na sacristia da igreja-matriz de Nossa Senhora do Amparo, em 1932. Foi para Graciliano uma época de privação financeira, em que ele, tendo se demitido da Imprensa Oficial, em Maceió, buscou refúgio, sozinho, em Palmeira. Dali escreveu à sua mulher Heloísa, em 1 de novembro de 1932:
“O S. Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está sendo traduzido para brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros de gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem. Além do que eu conhecia, andei a procurar muitas locuções que vou passando para o papel. O velho Sebastião, Otávio, Chico e Jose Leite me servem de dicionários. O resultado é que a coisa tem períodos absolutamente incompreensíveis para a gente letrada do asfalto e dos cafés. Sendo publicado, servirá muito para a formação, ou, antes, para a fixação, da língua nacional.”
Paulo Honório não deixa de ser um alter ego de Graciliano. Na prepotência da personagem entram também traços do velho Sebastião — e, provavelmente, daquele misterioso Paulo Honório dono de um sítio em Buíque, Pernambuco, mencionado em Infância. A gênese exata do romance está para ser completada, mas tudo sugere que, nele, o sentimento de tragicidade contribuiu para um exagero intencional que encontramos também nas páginas de Infância. E que o levou a definir Vidas secas como “história mesquinha — um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos”. O crítico pernambucano Olívio Montenegro admirou-se de não encontrar em Graciliano aquela vaidade, aquela empáfia, aquele exibicionismo que se costuma detectar facilmente no homem de letras. Ele parecia imune ao que Montenegro chamou de “pudor da exibição”. Era bem mais culto do que dava a entender a sua simplicidade quase franciscana. E gostava de crianças, gostava de rosas, ensinava francês à noite, em Palmeira, e tinha seus momentos de ternura.
Em janeiro de 1933, Graciliano seria nomeado diretor da Instrução Pública de Alagoas, seguindo-se o episódio da prisão que o levou, com a família, para o Rio de Janeiro. A convite de Luís Carlos Prestes, o romancista entra para os quadros do Partido Comunista do Brasil, que havia saído da clandestinidade em maio de 1945, e onde já mourejavam alguns escritores da linha de realismo socialista, como Dalcídio Jurandir, Floriano Gonçalves e Alina Paim. Foi então que a cobrança dos críticos ideológicos tentou enquadrá-lo, inutilmente, apesar do respeito que lhe deviam. A todas as insinuações e censuras ele resistiu: Memórias do cárcere, publicado sete meses após o seu falecimento, traz a integridade de caráter do seu autor — a rigidez de princípios, o desassombro que o levava, já doente e deprimido, conforme recordou Ledo Ivo, a “manifestar o seu desapreço pelo chamado realismo socialista que viceja na era de Stálin. Estampilha-o de ‘uma peste’”. Sua condenação a essa forma de engajamento do escritor se faz mais explícita no livro Viagem, de 1954, sobre sua visita à Tchecoslováquia e URSS. Paralelamente ao antigo leitor que, sonhadoramente, procurava personagens de Dostoievski nas ruas recamadas de gelo, caminhava o crítico com cócegas na língua.
Em suma, este foi o realismo lustral de Graciliano Ramos, o seu engajamento em favor do berço sertanejo, da condição social do seu país e, acima de tudo, da criatura humana.