Há muito que se dizer sobre o encontro do personagem filosófico com o personagem literário. Se um expressa a metáfora do conhecimento do homem sobre o próprio homem, o outro é a sua realização cotidiana, em torno dos dramas e vicissitudes da própria vida. Muitos são os casos em que o entrecruzamento de ambas as figuras tem sido fértil para sua mútua compreensão. É assim que chegamos ao romance do autor alemão Hermann Hesse, Narciso e Goldmund, publicado em 1930. Fruto do período pós-guerra, o romance se mantém na fileira das obras que resgataram a ficção psicanalítica como expressão de uma época. Seu simples e ao mesmo tempo intrincado roteiro traça o perfil de uma amizade entre o religioso racional (Narciso) e o artista aventureiro (Goldmund).
Os dois personagens são representações literárias de dois extremos filosóficos que se explicitam no cenário do conhecimento pós-nietzschiano: o enfraquecimento (ou perda) da crença na racionalidade como instrumento para alcançar a verdade (ela mesma uma ficção); e a tentativa de reafirmação desta verdade. O pensamento aterrorizante do niilismo, conforme tematizado por Nietzsche em muitas de suas obras, principalmente no último período de sua produção. Este pensamento abissal é a metáfora da condição daqueles que se entregam ao acaso da vida, à imanência, à máscara, à superficialidade… como expressão da descrença nos valores metafísicos. É este o debate vivenciado por Goldmund e Narciso, na sua luta (que no romance, muito sagazmente se expressa na forma de uma profunda amizade de opostos). O primeiro é o andarilho. O segundo, o sedentário. O primeiro a individualidade rebelde. O segundo a aceitação das convenções intelectuais, religiosas e sociais. E é justamente por meio deste paradoxo que Hesse expressa a sua busca por novos valores (dado o fato de que os antigos perderam sua validade — Hesse assume assim a crise niilista diagnosticada por Nietzsche), esforço este que pode ser reconhecido nos diálogos que permeiam toda a obra.
É no primeiro personagem, Goldmund, que vemos estampado, portanto, o sentido profundo da obra de Hesse. Goldmund é a expressão completa do andarilho nietzschiano que vaga pelos labirintos de suas próprias experiências. Não o viajante com uma meta. Mas o perdido, o inconformado, o que busca a liberdade plena. Sua característica primeira e sua motivação essencial é o apego à vida, que no seu caso, é reconhecida em sua força máxima, que implica também a aceitação da dor, do sofrimento, dos desejos, instintos, impulsos e da própria morte. É este sentimento de poder da vida que se expande e cresce que ele presencia, por exemplo, no nascimento de uma criança, filha de uma aldeã que conhecera durante suas perambulações. No rosto crispado da mulher, Goldmund identifica a expressão unívoca da dor e do prazer, compreendidos como partes de um mesmo todo — ambas filhas da vida. É justamente por este apego à vida que o então menino, órfão de mãe deixado no Convento pelo pai (figura do frio funcionário das convenções), sentindo-se de certa forma menor em inteligência frente a alguns colegas, mostra-se, desde o início, inquieto e insatisfeito. Rapidamente, entretanto, chama a atenção de todos pelo seu caráter radiante e belo. No jovem — e não menos radiante — professor de língua, Narciso, Goldmund reconhece logo o seu ímpar e o seu amigo. A profunda amizade dos personagens é, desde o primeiro instante, representação de uma luta de opostos entre duas criaturas fortes e entusiasmadas.
É esta amizade que desvela para Goldmund a sua própria essência de andarilho. É Narciso que o liberta da figura paterna. É ele também que — numa das cenas mais ricas e fortes da obra — faz descobrir o sentido da mãe do amigo, lembrança censurada pela moral paterna à qual ele sempre alimentara uma aversão. O choque chega a ser físico e o personagem, após um longo e profundo sono (representação da perda de racionalidade e aproximação mesmo com a loucura), parece explicitar o fato de que a razão é muro que ele precisa escalar para alcançar a liberdade verdadeira — a liberdade do andarilho. Ao perder o sentido da razão, ele atinge o seu ápice para a auto-superação.
Riscos e solidões
Liberado do muro que o prendia, o andarilho de Hesse sai em busca de si mesmo. Seu lugar é o não-lugar, é o transitório, o inconstante, o ocasional. Sua caminhada é cheia de riscos e solidões, mas também de profundos encontros amorosos e de algumas amizades fortuitas. Sua condição é daquilo que fenece e morre, do passageiro sem história, da luta contra a idéia de progresso. E nisso ele é odiado pelo proprietário como seu antípoda: ele nada quer de seu, nada carrega, a nada se prende. Seu apego é ao presente apenas, e tudo — os relacionamentos, os desejos, as necessidades — é sempre momentâneo, fato que o leva a encontrar uma profunda alegria nos pequenos episódios da vida. O andarilho substitui o menino, mas sua atitude é ainda a da criança, que vive desprendida, que tem tudo por começo: a terceira das transformações humanas apresentadas por Nietzsche (Zaratustra, I Parte). Sobre o gelo das planícies e as intempéries mais terríveis da viagem sem rumo, vaga o andarilho como criança que se impressiona e se apaixona com a vida como uma grande novidade. E neste vaguear ininterrupto, alcança as experiências que o formam como homem e como metáfora.
Depois de longas viagens e arriscados episódios de vida e de morte, o andarilho se descobre um artista. Aparentemente ele refaz para si uma meta: a arte é a expressão da busca de uma segurança, de um rompimento com o transitório, como se a obra pudesse eternizar o tempo e devolver-lhe um sentido para a vida. É frente à imagem de uma santa que ele revive com intensidade a experiência do encontro da vida e da morte: descobre na expressão da imagem o êxtase sexual e a delícia espiritual. O encontro entre a carne e o espírito é revelado pela intensidade sexual. A sensualidade da imagem é a mesma concepção que está atrás da sensualidade do próprio andarilho: dor e prazer mesclados, expressão da possibilidade da vida e da intensidade da morte que envolvem o ato sexual. Na produção artística o andarilho experimenta a própria morte e é ela que o mobiliza para a produção: cada obra é uma forma de fuga da morte. No mínimo um paradoxo para aquele que expressava tanta força na aceitação da morte como parte da vida.
Na arte, entretanto — e talvez esta seja a solução do paradoxo —, o andarilho descobre que pode continuar andarilho. O aparente fascínio religioso é substituído pelo fascínio artístico. Vagando agora no terreno da própria arte, Goldmund, o andarilho da arte, sente-se alegre e entusiasmado. Mas ele não era um bom “trabalhador” e logo é repreendido pelo seu mestre (nova figura do sedentarismo, ao lado do seu pai e do próprio Narciso), até descobrir que ele mesmo não se define como um sedentário, mas como um caminheiro. É dentro do espaço da arte que Goldmund reencontra-se com sua mãe. Mas ela agora se transforma numa figura terrena e sensual, inspiração e musa de sua obra calcada na silhueta de Eva, a mulher bíblica da perdição e da sexualidade, da felicidade e da morte, do prazer e da condenação, da vida como pura imanência. Se o lado paterno era expressão da racionalidade, a arte é a expressão materna-feminina da vida, como união de dois pólos tradicionalmente opostos. É nítida a referência a Apolo e Dioniso, do Nietzsche d’O nascimento da tragédia. Na arte o andarilho sacrifica a sua liberdade a fim de ser finalmente livre para aceitar e reintegrar estes dois lados da existência. Goldmund, na sua única obra desta fase, perpetua o amigo Narciso na figura de um santo. Peregrinando pelo terreno artístico, ele faz da arte uma passagem e não uma meta. Mas não tarda para reconhecer que a arte seria uma nova prisão. “Essa estrada bonita e divertida pela qual caminhava, não era mais o que fora antes, um picadeiro, uma parada confortável; agora era apenas uma estrada, o caminho para a cidade”: a antes estrada das aventuras é agora o sinônimo de um mapa, de um percurso até uma meta. Imediatamente se desprende deste objetivo e volta para a vida e para a morte, para as dores e os prazeres, para o brotar e o murchar da vida ambulante. Quer viver e correr o mundo, ver as belezas e os horrores do universo. Nas peças escondidas de um riacho evoca as circunstâncias reluzentes e belas — justamente porque indecifráveis — que formam a vida: o que o encanta na arte não é o explícito, mas o oculto, que ele alcança tendo como instrumento a plena liberdade. Os braços da Mãe-Eva aparecem como objetivo de sua arte. Mas esta meta é justamente a ausência de meta.
A morte
Na nova etapa de suas andanças, surge a parte mais desesperadora, marcada pelo fenômeno horrendo da peste negra. Com ela volta o tema da morte, superado agora não mais pela tentativa de rompimento com o vir-a-ser da vida, mas pela aceitação mesmo do sentimento de provisoriedade típico do peregrino. Pelo sentimento de não-pertença, ele supera o medo da morte: quem não tem nada, não teme perder nada. Goldmund caminha em meio ao mundo moribundo, às faces ignominiosas da população e aos cadáveres insepultos sem nada temer, nem mesmo a contaminação da peste, nem mesmo a própria morte. A única morte que temera fora aquela da qual podia escapar, revela. Contra a morte da peste não haveria escapatória. Por isso não a temia, simplesmente porque não poderia lutar contra ela. A morte torna-se “mãe e amante” para ele. Reconhecida como parte da instabilidade e da transitoriedade da vida (“seu contato era um arrepio de amor”), ela lhe conduzia sempre mais à frente. Há, portanto, uma distinção entre o “ter-que-morrer” e o “querer-morrer”: o andarilho não quer morrer, mas sabe que terá de aceitar a sua finitude. Querer-morrer é iniciar o cortejo fúnebre ainda em vida.
Se a vida é, em si mesma, o primeiro terreno para as excursões do andarilho e a arte, o segundo, poderíamos afirmar que o amor é o terceiro terreno onde Goldmund se arrisca, porque encontra na sensualidade e no exercício lascivo do prazer a fonte de uma expressão que inclui a vida e a morte. É esta a relação que o livro de Hesse parece anunciar como o eixo de sua narrativa: o rompimento do paradoxo da vida e da morte, num tempo como o dele, em que a vida havia se transformado num séqüito fúnebre. Na arte rompe-se o transitório representado pela morte para eternizar a imagem. No amor, rompe-se o sentido contingente da vida associando-a à idéia de finitude. Toda obra de arte assim como todo amor (e devemos incluir aqui a idéia de amizade) é o rompimento desta finitude. Mas quão desinteressante parece a vida do andarilho que nada constrói senão um “livro de imagens” interiores que mesclam estes dois sentimentos! Com suas aventuras, o andarilho se derrama na correnteza da vida e se deixa ora ferir pelas pedras, ora descansar numa poça aquecida pelo sol. Hoje a vida é um orgulho. Amanhã um apodrecimento. Para erguer qualquer “monumento” ele precisaria renunciar a esta situação interina. Goldmund quer negar a esterilidade dos muros e dos conceitos que dividem a vida em isso ou aquilo: “ou mulher ou homem, ou andarilho ou burguês, ou sensato ou sensível”.
É este o personagem que chega às margens da morte tendo perdido a fé na verdade absoluta ou qualquer crença do tipo religiosa, vivendo de forma explícita a crise de sentido da própria vida. Aí, no leito de morte, parece reafirmar seu interesse pela “vida insegura e passageira” em detrimento da busca da eternidade. É este interesse pela vida que lhe dá forças para fugir da morte. Mas no fim, é a amizade que o salva: o único porto seguro no meio da solidão. Uma amizade que, assim como o amor, não lhe oferecia óbices ou prisões, mas que, sendo experiência de opostos, lhe dava liberdade. O reencontro com o amigo é o momento de questionamento das verdades que afirmam a existência de um ser perfeito organizador do mundo. Depois de peregrinar pela terra, o andarilho tem uma experiência do vazio e do caos da existência. Como resultado das suas experimentações, ele se dá conta de que a negação da vida é a base da afirmação das realidades ultramundanas: a perfeição e a justiça são invenções que legitimam a frustração e o sofrimento do homem consigo mesmo, porque se descobre incapaz de alcançar essa perfeição. Nasce a moral da negação da vida, como resultado da fraqueza do homem, que se aloja no ascetismo, descobrindo-se como culpado e fraco. Nada mais contrário ao espírito livre do andarilho, aquele que se reconhece artista e não pensador. No diálogo final com seu antípoda, alcançam ambos os amigos a maturidade. Goldmund retorna para Narciso. Faz o caminho de volta não como um derrotado ou arrependido, mas como alguém que conquistou a si mesmo. Não há o que lamentar. A velhice é reconhecida no espelho com um sorriso. Chega-se ao fim da jornada não como quem alcança uma meta, mas como quem olha para trás e é capaz de sorrir ainda. A morte é tida como uma alegria: a felicidade plena não porque ela oferece uma redenção, mas porque ela é um passo mais do próprio viver. Uma reconquista do não-ser e da inocência, representadas pela imagem da mãe. Já com os sentidos desvanecidos pelo hálito da morte, o andarilho parece alcançar os braços da Mãe-Eva, que tanto lhe acompanhou: é a metáfora daquele que morrendo, se entrega à vida. A mãe havia sido tudo: os instintos, o lado sensual, a experiência artística e agora ela também é a morte. Essa imagem, entretanto, carregada em seu “mundo interior” durante tantas andanças, é a imagem mais perfeita imaginada pelo artista, mas que jamais será transformada em obra. A vida não cabe na obra. Ela (vida-mãe) mergulhará na experiência da finitude. É este o sentido da frase-verso que encerra o livro sendo ao mesmo tempo uma advertência e um lamento: “Sem mãe não se pode amar. Sem mãe não se pode morrer”. Mais uma vez o amor, a vida e a morte se misturam na linguagem artística do belo livro de Hermann Hesse.