Não poderiam ser mais diferentes — como pessoas e como artistas.
Amigos a partir de 1960 (quando George foi presidente do júri do Festival de Cannes que premiou La Dolce Vita), mantiveram assídua correspondência durante vinte anos, de 1969 a 1989 — apesar dos raros encontros pessoais. Nessas duas décadas (uma, de grande agitação cultural e, a outra, também “perdida” na Europa), estiveram duas ou três vezes juntos, menos por culpa de Fellini do que do escritor belga — que não gostava de se afastar da refinada Lausanne.
Federico era 17 anos mais novo do que Simenon — e era um italiano expansivo que amava a província com a paixão barroca dos sentimentais latinos. George, por outro lado, era um minimalista com obscuras paixões inconfessadas e certa sofisticação do belgas francófonos, invectivando (com Baudelaire) a monotonia dos seus compatriotas.
George Simenon escrevia as cartas educadamente à mão — numa letra quase indecifrável, de tão miúda. O cineasta italiano respondia pontualmente à máquina, provinciano envergonhado de ter a letra feia e só saber fazer, “com o lápis e a caneta”, apenas “esses pequenos desenhos pornográficos que você admira sem razão”. Estava fazendo seu tipo, claro (Federico esteve sempre representando Fellini — como se fosse uma audição doméstica para algum palco da Rimini que nunca abandonou, espiritualmente).
De qualquer modo, havia — além da admiração mútua — alguma coisa necessariamente em comum entre correspondentes tão assíduos e que se tratavam, carinhosamente, por carissimo Simenon e mon cher Fellini: ambos tinham grande capacidade de trabalho (talvez como uma forma de combater a tendência para a depressão) e o dois comungavam no ódio pelo mundo contemporâneo em contraposição aos universos idealizados das suas infâncias. E também apreciavam as mulheres desta época mais franca e permissiva (como exceção da perda de qualidade de tudo etc). Nas primeiras cartas, Simenon não hesita em oferecer sábios conselhos de mais velho ao “querido, gigantesco amigo Fellini”. Nas últimas, é o cineasta quem tenta animar o escritor deprimido com a arte incapaz de melhorar o mundo etc.
Mas o melhor é ir diretamente a alguns trechos das cartas de ambos, cheias de sabor nestes tempos de e-mails inodoros:
“Chinciano, agosto de 1976
Meu queridíssimo Simenon:
Quero lhe contar mais uma coisa que demonstra bem o quanto vem sendo enriquecedor o contato com a sua imaginação e sua criatividade. Um pequeno sonho que tive há dois anos antes de começar o Casanova. Atravessava uma época negra. Inércia, desânimo, marasmo, ódio contra o filme… Me sentia prisioneiro, condenado a fazer uma película profundamente alheia ao meu temperamento, à minha imaginação, sobre um personagem que não me pertencia, não me era simpático… Então, uma noite eu sonhei que estou sendo despertado pelo matraquear enervante de uma máquina de escrever. Percebo que estive dormindo num enorme jardim úmido de orvalho, com grandes plantas carregadas de folhas de um verde intenso. Ao fundo, vejo uma construção em forma de torre. É dali que parece estar vindo o ruído antipático da máquina. Mas, à medida que me aproximo, não se ouve som nenhum. Distingo uma janela na ‘torre’ e me aproximo para dar uma espiada, erguendo-me na ponta dos pés. Lá dentro vislumbro uma espécie de monge, fazendo algo que não posso ver porque ele está sentado de costas para a janela circular. Aos seus pés, no chão, uma dezena de meninos e meninas riem, brincam com os cordões do seu hábito, tocam nas suas sandálias. Quando o ‘monge’ se volta, vejo que é você, com uma pequena barba branca — uma barba postiça, de disfarce. Assombrado, talvez mesmo decepcionado, nesse momento eu ouço uma vozinha que me diz: ‘É falsa’. Claro que é falsa, eu conheço barbas falsas… e vejo que você está até mais jovem, muito mais jovem do que da última vez que o vi. ‘E o que ele faz?’ – pergunto. E a vozinha me responde: ‘Pinta a sua novela. Está vendo? Já pintou mais da metade dela. É uma novela magnífica sobre Netuno (…)”
E a carta prossegue com uma incrível “decifração” do próprio sonho, que leva Fellini a perceber — segundo ele — que todo o seu lamentável estado de ânimo se devia, possivelmente, ao fato de ter completado 55 anos, estar rodando um filme em inglês (assim como Simenon, no sonho, tem que “pintar” as suas novelas e não está nem um pouco incomodado com isso etc) e que o personagem de Casanova na verdade habitava dentro dele, Fellini, do mesmo modo como Netuno habita, profundamente, no fundo dos oceanos. Bem, é o que Federico alegremente deduz, escrevendo para o falso “monge” (é sabido que Simenon contabilizava “10.000 mulheres” possuídas por ele, desde os 13 anos — segundo informa no “Diário” que se dedicou a escrever quando, no fim da década de 70, se dizia já sem interesse para continuar criando personagens de ficção. Talvez ele próprio fosse um personagem ainda mais incrível)…
A resposta à carta de Fellini não demora a vir de Lausanne — datada de 18 de agosto de 1976, pois Simenon é um metódico que, na sua letrinha regular, anota dia, mês e ano, sempre (ao contrário do cineasta de Amarcord, que não é preciso nas datas).
Meu querido Fellini:
Senti uma grande emoção ao receber a sua carta. Por um momento, pareceu-me ouvi-lo aqui na Suíça — e compreendi bem todas as suas reações e fuga. Tudo que escreveu me comove profundamente, pois de algum modo você também me esclarece sobre uma parte de mim mesmo (apesar dos meus setenta e três anos, ainda me considero e me sinto como um fedelho). Você é, provavelmente, no mundo, a pessoa com que sinto ter mais afinidades no terreno da criação. Tentei dizer isso num prefácio, mas não sei se o consegui. Mas gostaria que você soubesse o quanto me sinto próximo de você, não só como artista — se posso empregar essa palavra que não me agrada — mas como homem e como criador… O sonho que você conta se assemelha a alguns dos meus — mas me inquieta um pouco haver desempenhado esse estranho papel, nele, e dessa maneira, ter participado, minimamente que seja, no seu novo alento para a criação do difícil Casanova. (continua na próxima edição de Rascunho)