George & Federico (final)

A partir de 1973 (quando completou setenta anos), George Simenon tornou-se obsessivo com o assunto do envelhecimento: fazia as contas da idade de todo mundo e se queixava da sua, entre jocosa e deprimidamente
George Simenon, escritor belga de língua francesa.
01/01/2001

A partir de 1973 (quando completou setenta anos), George Simenon tornou-se obsessivo com o assunto do envelhecimento: fazia as contas da idade de todo mundo e se queixava da sua, entre jocosa e deprimidamente. O assunto se reflete em muitas das cartas a Fellini (dezessete  anos mais moço), como nesta, de 9 de novembro de 1976:

“Querido Fellini, irmão: 

Provavelmente eu deveria escrever “meu filho”, dada a nossa diferença de idade. Mas, como sei que compreende, emprego a palavra “irmão” em outro sentido. Há somente dois homens a quem dou esse nome, e o outro é, pelo contrário, mais velho do que eu. Refiro-me a Jean Renoir, que conheci antes de 1930, quando ambos lutávamos pelo que então se chamava de cinema de vanguarda — uma luta que, em várias ocasiões, imaginei que fosse nos levar à chefatura…

Se me permito traçar essa linha paralela entre vocês dois é, em primeiro lugar, porque, por mais distantes que nos encontremos geograficamente, jamais tive a impressão de que a nossa amizade pudesse sofrer alguma diminuição com isso — do mesmo modo como ocorre com Renoir, que vive há muitos anos na Califórnia. Mas, entre nós dois, julgo que existe um vínculo de natureza ainda mais especial, uma vez que perseguimos o mesmo objetivo (embora sob formas artísticas diferentes): dar um conhecimento mais íntimo do coração humano, e por esse meio, essa forma anti-intelectual que podemos chamar de nossa.

Creio já lhe haver dito que, como eu,  você é um instintivo — e como instintivo é que alcança valores universais….”

A carta do criador de Maigret — que acerta em considerar Fellini “um instintivo” — segue elogiando o processo de “observação involuntária” do cineasta, e pretendendo que esse também fosse o “método” de Jean Renoir (o que já não parece tão acertado), para então descrever a si próprio como “uma espécie de esponja que absorve a vida sem o saber”, no mesmo saco de gatos dos “instintivos” inconscientes do “trabalho de alquimista” que se opera dentro dos Picassos etc, “devolvendo aquela vida transformada”. “Mas, você é o maior de nós três” — declara Simenon, massageando o ego do italiano. A carta, aliás, parece que foi escrita também para isso (Fellini andava deprimido, mais uma vez): “Eu o admiro desde seus primeiros filmes — garante o autor do ótimoBairro Negro” (o melhor Simenon, na minha opinião) — e o que aumentou essa admiração foi ver como você foi se desfazendo de todas as amarras, regras e tabus. No mundo do cinema atual, Fellini é único, e, no fundo da sua alma, você sabe disso”.

A citação de Renoir é um tanto misteriosa, pois a leitura dos diários e da biografia de Simenon não revela indícios de uma amizade tão estreita, pelo menos, entre o escritor e o cineasta de La Règle de jeu, o que faz parecer que George improvisa sobre o tema ou, ambiguamente, talvez até pretendesse, com isso, “cutucar” um pouco o amigo, nos seus brios cinematográficos (com um jab indireto no âmago ciumento das depressões de um cineasta?). Difícil saber.

Nem sempre as respostas de Fellini eram imediatas e, muitas vezes, os assuntos ecoavam em cartas posteriores. Mas são quase constantes as reclamações sobre um desencontro íntimo — o que é curioso — com os temas da maioria dos seus filmes pós-70 (como já vimos, em carta transcrita na edição anterior, sobre o Casanova). E se faz quase audível aquela vozinha de vovó Donalda, que não combinava com a personalidade poderosa de Federico,  aludindo a intenções bem diversas daquelas que foram “adivinhadas”, pela crítica, nas suas obras de “intuitivo” (sem nada de Picasso, digo eu; o Picasso do cinema é Antonioni, sem dúvida):

Meu querido Simenon: 

E eu?, que tenho feito eu, durante todo este tempo em que não lhe escrevi? Fiz um filme curto, intitulado Prova d’orchestra (Ensaio de Orquestra), e nele eu quis passar a atmosfera, falar da confusão, dos intentos, dos esforços de um grupo de músicos para alcançar reproduzir esse momento de harmonia prodigiosa que é a expressão musical. Junto aos músicos, há um diretor de orquestra, é claro, o qual compreende, na difícil dialética da relação com a orquestra, que o objetivo comum (executar as peças musicais) vai aos poucos ficando em segundo plano…

A carta prossegue com a vívida descrição do ambiente de filmagem do média-metragem, um interregno — apenas — na obra do autor de Cabíria que, no entanto, permanecia na sua  angústia com relação ao longa-metragem (“Cidade das Mulheres”) interrompido desde o Natal do ano anterior:

Que filme estranho! Ou melhor, como é estranho o que me ocorre com relação a esse filme! É a primeira vez em que me sinto tão inerte, tão vazio, como alguém totalmente estranho ao projeto que deve terminar. Por sua vez, o filme também parece indiferente a meu respeito — indiferente e inacessível, cerrado na sua natureza opaca e compacta. Nos desprezamos mutuamente. Evitamos nos encontrar…

Bem, não quero aborrecê-lo com as minhas jeremiadas de costume.

Eu e Giulietta estamos pensando em passar o Natal na casa dos Keel, em Zurich. Aproveitando a ocasião, caso concorde, iremos ver vocês e estaremos algum tempo na sua companhia..

O encontro não aconteceu (parece), mas os dois amigos irão se ver em Veneza, por ocasião de uma homenagem a Fellini — quando Simenon é solicitado (também pelo Lincoln Center, de Nova York) a dar seu depoimento sobre o cineasta que ele considera como “o protótipo do criador”: Nunca imitou ninguém, nunca seguiu nenhuma moda. Nunca adaptou a obra de nenhum novelista, poeta ou roteirista famoso. Ninguém seguiu menos os conselhos interesseiros dos produtores e não há cineasta que tenha levado tão pouco em conta os gostos volúveis do público.

Isso foi escrito em 1985, e será nesse tom que a correspondência se aproximará do fim (em 1989), invertendo-se a polaridade: os protestos de admiração são fervorosos, da parte do escritor, assim como se iniciara a correspondência com Fellini confessando a sua admiração devota etc. O cineasta responde com lapsos de tempo cada vez maiores, de 1986 até o final de década, enxertando uns elogios a “L’homme qui regardait passer les trains” — uma das obras mais estimadas do escritor belga — que Federico (estranhamente) confessa que “ainda não conhecia”. Pareceu-me um belo livro… Bravo, grande Simenon, nunca deixarás de me surpreender!

A última surpresa a vir de Lausanne seria, infelizmente, a notícia da morte de George, no dia 4 de setembro de 1989, aos 86 anos.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho