No ensaio intitulado Modern novels [Romances modernos], publicado a 10 de abril de 1919 no suplemento literário do Times de Londres, Virginia Woolf acusa escritores ingleses conhecidos em seu tempo, como Herbert G. Wells, Arnold Bennet e John Galsworthy, de serem “materialistas”, isto é, apegados às aparências dos seus personagens, à linearidade de enredos construídos sobre os princípios da causalidade e às convenções literárias do romance realista. A estes praticantes de uma literatura tributária da tradição do século 19 ela opõe o então jovem James Joyce, a quem vê como o autêntico escritor “espiritual”: aquele que, ao contrário de seus predecessores e contemporâneos, descarta “as convenções normalmente respeitadas pelos romancistas”.
Joyce era, para ela, um escritor interessado “em revelar os lampejos daquela mais íntima das chamas”, alguém preocupado em seguir os caminhos bizarros da consciência, a eles entregando-se completamente, sem temer perder-se em detalhes. O que Joyce fez correspondia, para Virginia, à verdadeira missão do escritor moderno, algo que o próprio Joyce descreveu, no final de Retrato do artista quando jovem, com as seguintes palavras: “Parto, pela milionésima vez, em busca da realidade da experiência, para forjar, na bigorna de minha alma, a consciência ainda não criada da minha raça”.
Os novos rumos de uma literatura experimental e ousada como a praticada por Joyce, que tinha em vista novos horizontes estéticos, foram seguidos, igualmente, por grandes expoentes das vanguardas literárias de outros países europeus das primeiras décadas do século 20. Os modernismos do alemão Alfred Döblin, com seu Berlin Alexanderplatz; do polonês Bruno Schulz, com Lojas de canela e O sanatório sob o signo da clepsidra; do romeno Max Blecher, com Encontros na irrealidade imediata; de Hermann Broch, com A morte de Virgílio, para não falar de Elias Canetti, com Auto-de-fé; de Marcel Proust, com Em busca do tempo perdido; de Franz Kafka, com O processo e A metamorfose e de outros, visavam uma transformação e uma renovação na cultura literária. Com eles o romance livrou-se do peso da tradição realista, e do comprometimento com causas e deveres, para alcançar um estatuto autônomo, independente. Estes e outros autores do início do século 20 empreenderam uma luta pessoal contra as convenções literárias e se empenharam em alcançar, cada qual à sua maneira, linguagens e uma estruturas próprias, concedendo à subjetividade e a seus movimentos uma nova e absoluta liberdade: aquela do ímpeto poético que, liberto dos grilhões da utilidade, segue seu curso espontaneamente.
No período posterior à Segunda Guerra Mundial houve um arrefecimento dessa vanguarda, cujo auge se encontra nas décadas de 1920 e 1930 e cujos protagonistas se tornaram ícones de um modernismo abandonado. No Leste da Europa, que passou a ser dominado por regimes que gravitavam em torno do stalinismo, cultura e literatura se tornaram assuntos de Estado, submetidos a agendas ideológicas. Autores que fugiam dos padrões do romance realista frequentemente eram impedidos de publicar pela censura. No Ocidente, os ditames do mercado também fizeram com que muitos autores afinados com a vanguarda do período entre-guerras perdessem a atenção do público. Outra vez conservadorismo esquálido dos romances que se deixam reduzir a paráfrases, que tanto revoltava Virginia Woolf em 1919, voltou ao centro das atenções, lugar onde, de certa forma, permanece até hoje.
Claro que há exceções notáveis nesta retomada conservadora que começa em meados do século passado, como, por exemplo, duas escritoras da Europa centro-oriental — a austríaca Elfriede Jelinek e a romena (de língua alemã) Herta Müller —, ambas agraciadas com o Nobel de Literatura, respectivamente em 2004 e 2009. O protesto e a revolta, típicos das vanguardas literárias do entre-guerras, reaparece, sob nova chave, em suas obras, que retomam a expansão dos limites da linguagem e vislumbram novos aspectos da “realidade” — ou novas realidades.
É a esta mesma linhagem que pertence, também, o romeno Mircea Cartarescu. Depois de uma notável carreira como poeta, Cartarescu estreou na ficção romanesca com um romance publicado em versão censurada na Romênia, em 1989, sob o título Visul [Sonho] e, em 1993, em versão completa, com o título atual, Nostalgia. Este livro chega ao leitor brasileiro vinte e cinco anos depois de sua publicação, e depois de ter proporcionado a seu autor os mais importantes prêmios literários da Europa (só em anos recentes, Cartarescu recebeu o Prêmio Estatal Austríaco, o Prêmio Thomas Mann e o Prêmio Formentor de las Letras).
Para além da “realidade”
Nostalgia é dividido em cinco segmentos, interligados apenas pelo estilo exuberante de sua escrita neobarroca e pelo grande lirismo de sua evocação de um universo que transcende os discursos compartilhados para percorrer mundos inteiros que estão ocultos por trás das cascas das coisas, por trás das aparências das pessoas, por trás da consciência quotidiana comum. Introspectiva, onírica, nostálgica, a prosa de Cartarescu recupera a dimensão mítica da consciência, por meio da qual o banal e o desimportante se transfiguram e passam a revelar o que se encontra em sua essência, alcançam o magma incandescente de onde brotam a vida tanto quanto a escrita poética. Pois a poética é, na verdade, demiúrgica, é a construção de mundos próprios, tarefa a que Cartarescu se dedica de maneira exemplar. O retorno a uma consciência infantil, ainda não adestrada, ainda livre dos grilhões da razão e da causalidade, é o procedimento por ele escolhido para alcançar o propósito de percorrer um território insólito, no qual outros entendimentos da vida, e outras realidades, normalmente ignoradas, surgem por meio de uma escrita fulgurante, apaixonada, opulenta e maravilhosa como uma epifania.
É um livro que se pode ler e reler como quem visita e volta a visitar um lugar inesquecível, uma paisagem de beleza estonteante. São galáxias inteiras que se abrem a partir de uma porta de madeira, de uma caixa de lápis, de uma máscara. Mundos particulares desconhecidos se revelam por meio de palavras que parecem, para usar a metáfora concebida por Bruno Schulz em seu conhecido ensaio A mitificação da realidade, retornar à origem de tudo, à medula da escrita poética, para recuperarem a irradiação e o poder que lhes foi roubado pelo uso quotidiano.
Cartarescu propõe ao leitor um reencantamento do mundo, um passeio por âmbitos que estão acima e além da “realidade” consensual, uma jornada mágica, ao longo da qual assistimos à transfiguração do mundo. Cenas quotidianas de Bucareste, como um cachorro que é atropelado por um automóvel; como um adolescente que busca, em meio à cidade amarelada e incandescente do verão balcânico, os discos de música pop norte-americana que a ditadura de Nicolae Ceaucescu busca manter longe de seus cidadãos; como um grupo de crianças que se reúnem diante da entrada de um entre as centenas de blocos residenciais anônimos que ocupam os subúrbios canhestros, adquirem, aqui, aquelas dimensões do maravilhoso capazes de provocar a mais infantil das emoções: o espanto absoluto.
Pois ao espanto absoluto diante da “realidade”, característico da infância, corresponde o espanto do adulto diante do sonho, da loucura — ou de uma literatura como a de Cartarescu, que reinventa a vida, que se entrega a um jogo infinito de transformações e metamorfoses e que segue um curso inteiramente próprio, como o de um rio caudaloso. No sonho e na loucura encontram-se os guias para qualquer artista que deseje se livrar do caos que o cerca, encontrar a própria voz, criar o próprio mundo — que bem pode ser um mundo maravilhoso, formidável e intrigante como este contido nas páginas de Nostalgia.
Se todos os rios levam ao mar, o que importa é, afinal, o território que se percorre até esta chegada. A geografia constelada pela narrativa de Nostalgia deixa no leitor marcas definitivas, como uma grande viagem pela terra incógnita do infinitamente estrangeiro.
O romance vem em impecável tradução direta do romeno, assinada por Fernando Klabin, que foi também o responsável pela notável tradução de Encontros na irrealidade imediata, do romeno Max Blecher. Aqui, o difícil e paradoxal dever da invisibilidade, que recai sobre os bons tradutores, é cumprido à risca, de maneira que impedir o leitor de perceber que está, na verdade, lendo uma tradução. Não pode haver mérito maior para um tradutor.