Geografia do degredo humano e social

Resenha do livro "Coreografia dos danados", de Whisner Fraga
Whisner Fraga, autor de “Coreografia dos danados”
01/01/2003

Coreografia dos danados, do jovem escritor mineiro Whisner Fraga, chama a atenção, em meio ao balcão de mesmices estilísticas e outros contorcionismos ficcionais muito em voga na atual safra literária. Para um estreante, não é pouca coisa, levando-se em conta que no atual panorama da nossa produção literária há muita obviedade e pseudo-experimentalismo a chamar a atenção mais pelo jogo de palavras e pelas excentricidades narrativas do que pela densidade e ousadia na linguagem.

Os personagens de Coreografia dos danados situam-se no patamar da solidão e da angústia, quase no limiar da loucura. São criaturas estioladas, vivendo o apogeu de vidas desiludidas, dilaceradas por amores impossíveis, fracassados em seus projetos pessoais, aturdidos por dores e dilemas quase sempre insolúveis. O insondável da alma humana encontra ressonância nessas histórias de re(l)ações mal resolvidas, de gente que convive com a aspereza, o perigo, as lutas intermináveis pela sobrevivência e vêem sempre um sentido provisório nas coisas.

Vila pureza, por exemplo, um dos contos marcantes do livro, fala-nos de uma prostituta em seu permanente embate com um destino involuntário, cuja única certeza é um desfecho de vertigem, proscrição e a inviabilidade de um caminho feliz. Whisner Fraga captou da realidade sua banda mais depressiva: o underground humano, a psicologia dos vencidos, como o universo de sombras e lutos de um Augusto dos Anjos. São seres convulsionados em suas labirínticas prisões psicológicas, em permanente desassossego, em direção a um beco sem saída.

O que sobressai nesses contos é que há algo de permanente desassossego nos personagens, sempre divididos, perdidos e sem perspectiva. As histórias, de per si, constituem uma unidade temática, em que o degredo social e humano conformam todas as narrativas. São projeções de mundo caviloso, que não encontra, na visão do autor, atalho para a felicidade ou a esperança. Há em toda sua narrativa um vertiginoso processo de articulação com a memória afetiva, que caracteriza o destino de cada personagem, determinando o menor ou maior grau de tolerância ao desconcerto da realidade, tão cruel quanto instigante.

A radicalidade temática encontra em Coreografia dos danados o seu ápice. Não como modismo de um autor que queira penetrar o ensimesmado círculo da mídia e da fácil absorção literária por um viés de choque ou de incômodo que suas histórias possam provocar. Mas principalmente como atitude estética, deliberadamente inconformado com o destino da humanidade, o que nos leva a transpor a mera condição de leitores, para nos concentrarmos na profundidade de uma reflexão sobre a aspereza e a solidão do quotidiano, sob um novo prisma, com interessante construção formal, algo diverso do que temos lido atualmente (num universo de produções nanicas e anêmicas), que em algumas obras mais chamam a atenção pelo exibicionismo palavroso do que pela responsabilidade em elaborar uma narrativa com padrão estético e interesse de renovação estilística.

Ao mesmo tempo em que Whisner fala de acontecimentos simples e corriqueiros, mas profundamente humanos, pois carregados de verdade, crueza e, de sua (implícita, mas paradoxal) poesia, o autor ultrapassa o plano narrativo convencional com seus recursos formais bastante ousados, apontando para soluções ao longo do texto que dão especial destaque ao ambiente narrativo e emprestam um original suporte plástico, uma dicção autêntica. As histórias confluem para morbidez das relações desfeitas, o desconforto que emerge do inconsciente, lá onde habitam amores inconclusos, a infância espezinhada e sempre atual convergindo nos recalques do dia-a-dia, os tumores da alma, a impossibilidade dos encontros eternos, a transitoriedade das coisas, a conspiração progressiva da melancolia contra a paz de espírito e da morte contra a vida. Seus personagens encontram-se, irremediavelmente, de uma forma ou de outra, danados em seus mundos.

Com isso, a metaforização do recalque individual está presente nesses contos, como interdito de uma civilização apequenada pelos infernos pessoais, tiranizada pela perda de identidade individual e coletiva, o que exige de cada um, personagens ou leitores, uma hercúlea capacidade para transpor o hiato entre a civilização e a barbárie. Se a natureza se nutre do real, como nos disse Cyro dos Anjos, Whisner Fraga soube contemporizá-las nesses contos-radiografia da existência — tão danada — que não poderia merecer melhor coreografia que representasse à saciedade todos os seus planos e segredos.

Coreografia dos danados
Whisner Fraga
Edições Galo Branco
140 págs.
Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

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