Genial loucura

O filósofo Giorgio Agamben percorre parte da atribulada e fascinante vida de Hölderlin
Giorgio Agamben, autor de “A loucura de Hölderlin”
01/08/2023

“O único rival [de Goethe], no âmbito da poesia alemã, foi o inquieto e mais jovem contemporâneo, Hölderlin, cujos poemas característicos Goethe não chegou a conhecer.” Esse é um trecho de Gênio – Um mosaico de 100 mentes criativas exemplares, de Harold Bloom, na seção que trata especificamente de Goethe. Não obstante focado em exaltar o grande gênio alemão, esse trecho ilumina com maior intensidade e distinção preclara uma obscura figura (entenda-se: para o contexto brasileiro) cujas obra e vida acidentada são, de tal forma, expressivas, que merecem ser conhecidas: trata-se de Johann Christian Friedrich Hölderlin. Uma figura que — e o trecho parece bem assinalar — espera ser redescoberta, não apenas pelo atributo de rivalizar com Goethe, mas pela própria “vida habitante” que teve enquanto por esta terra caminhou, durante sete décadas de existência.

Não é bem esse período que o livro do filósofo Giorgio Agamben, A loucura de Hölderlin – Crônica de uma vida habitante, cobre. A citada obra foca-se no espaço de tempo entre 1806 e 1843, quase metade da vida do poeta, época na qual esteve supostamente louco. Diga-se “supostamente” porque essa é a principal tese de Agamben durante a crônica que se propõe tecer.

Loucura genial ou gênio louco?
Em 1806 a mãe de Hölderlin solicita ao consistório de Nürtingen auxílio financeiro para o filho (que já então manifesta os sintomas de uma alienação mental peculiar). De seu engenho já havia saído e sido publicadas obras que lhe garantiriam memória perene na mente dos homens, como Hipérion, mas também produtos controversos, como suas traduções de Sófocles, para muitos aliás indício inquestionável de sua insanidade. Em 11 de setembro a mãe do poeta determina sua internação compulsória na clínica do professor Autenrieth, em Tübingen, e seu transporte para lá não se dá de maneira pacífica, Hölderlin resistindo vivamente. Nesse ponto, é ilustrativo apontar uma marca de Agamben em sua crônica: especula o filósofo que tal resistência é antes o receio íntimo de alguém que teme ser preso, amigo que era de “subversivos políticos” como Sinclair, do que um surto de um louco furioso. Em síntese: Agamben, durante toda a obra, irá colocar sobre o signo da dúvida a loucura de Hölderlin, tida como certa pelos seus contemporâneos.

Permanece o poeta internado até 3 de maio de 1807 quando, dispensado da clínica, passa a viver com o marceneiro Ernst Zimmer, já com uma pensão de 150 florins concedida pelo Estado. Com Zimmer viverá até a morte deste, quando então a filha do anfitrião se ocupará da tarefa até a morte do poeta, em 1843. Esse longo período é o enfoque maior da crônica. O leitor acompanhará a vivência geralmente pacata que o adoentado poeta terá na cidade de Tübingen, numa mítica torre sobre o Neckar. Nessa propriedade vagará pelos vales em horários peculiares, gozará da natureza, presença sempre constante em seus versos que, aliás, continuará compondo, mas com um acento bem particular de composição. Também receberá visitas, e a impressão que estes visitantes registraram para a posteridade, em seus diários ou correspondências, torna-se um testemunho diversificado desse estranho estado mental.

É consenso entre aqueles que o visitam, como Waiblinger (que escreverá um ensaio biográfico do poeta) e Christoph Theodor Schwab, o estado deteriorado de sua sanidade mental.

A esse respeito, é expressivo o testemunho de Arnim (que do caso particular do poeta estabelece uma consideração geral sobre sua pátria):

Seria uma lista aterrorizante se se contassem todos os grandes espíritos alemães afundados na doença, no suicídio ou em ocupações odiosas! (…) Até esse homem maravilhoso [Hölderlin] teve que adoecer na pobreza até a loucura, vive, mas está perdido para nós, a quem sua dor, em tempos sombrios, abriu o coração e libertou o espírito das garras da necessidade.

Comovente é não apenas o relato acima, mas o engajamento de outros conterrâneos do poeta com sua situação, inclusive os que, como Gustav Schwab, buscam organizar novas edições de suas obras, revertendo os ganhos ao autor.

Há, por outro lado, postura desabonadora de ilustres contemporâneos, como Goethe, que ignora plenamente os destinos do desventurado rival, em meio a um contexto de ascensão vertiginosa ao estrelato literário (e a obra presente alterna os rumos de ambas as vidas, tornando clara a relação proporcionalmente inversa entre eles); também Schiller, outrora benfeitor de Hölderlin, num episódio relativamente famoso, com o ilustre autor de Fausto se esbalda em jocosidade e hilaridade observando as soluções controversas na tradução de Sófocles, tido por muitos, já se disse aqui, como os primeiros sinais da insanidade de Hölderlin.

E assim, relativamente esquecido, mas em serenidade, o poeta encerrará sua vida, às margens do Necker, em Tünbigen, compondo de ocasião versos que refletem seu estado interior, menos no conteúdo do que na forma.

E aqui chegamos à “vida habitante”, expressão usada no último poema escrito em sua vida, e que tanto intriga Agamben. O livro não apenas tece uma crônica da vida do poeta, mas a precede com um “limiar” e prólogo, onde reflete sobre as diferenças de gênero entre crônica/relato histórico e sobre a natureza da tragédia e comédia enquanto gêneros, e como tais se relacionam com a existência de Hölderlin; também o filósofo conclui a obra com um epílogo em que trata da expressão supracitada, e como através dela defende a ideia de que o poeta buscou deliberadamente um outro nível de existência, nível este que o faz parecer aos outros um lunático, mas é, em última instância, uma legítima “vida poética”. Nas palavras do autor:

A vida de Hölderlin constitui, nesse sentido, um paradigma em confronto com o qual as oposições categóricas que definem nossa cultura desfazem-se: ativo/passivo, cômico/trágico, público/privado, razão/loucura, potência/ato, sensato/insensato, unido/separado.

Daí também que, nos versos de ocasião antes mencionados, o leitor lerá sentenças muito profundas e verdadeiras, mas isoladas num conjunto sem coesão, quase como uma sequência paratática de versos coerentes, mas que não se articulam entre si fundamentando um raciocínio estruturado que tem seu início e fim. Segundo Agamben, tudo isso é o ipso facto de uma busca consciente do poeta, e cuja obtenção desvanece as fronteiras entre sucesso e fracasso:

A lição de Hölderlin é que, qualquer que seja o escopo pelo qual fomos criados, não fomos criados para o sucesso, que a sorte que nos foi destinada é fracassar (…) no entanto, justamente esse fracasso (…) é o melhor que podemos fazer, assim com a aparente derrota de Hölderlin destitui integralmente o sucesso da vida de Goethe, tira-lhe toda legitimidade.

Eis a síntese da tese do filósofo, que merece ser mais aprofundado do que o foi aqui. Com ela o leitor pode concordar ou não, mas por certo a forma com que é exposta é não menos que intrigante.

A loucura é tema já antigo, tratado e vivido no mundo intelectual da filosofia e arte. Tema per si fascinante, quando atinge mentes elevadas do ponto de vista reflexivo torna-se ainda mais instigante, e certamente o caso de Hölderlin não é exceção. Seria a “loucura” deste poeta um grau mais elevado de consciência, ou pelo menos uma postura filosoficamente (ou mesmo moralmente) mais sadia frente aos homens e sua realidade insana, como muitos veem na postura quixotesca em Cervantes? Ou, sendo a loucura uma espécie de ideia fixa recorrente e absurda, quando acomete uma mente brilhante, vivente na poesia e obcecada pela Grécia e sua cultura, apenas reveste de sensatez o que é tão somente desequilíbrio mental?

Eis a encruzilhada intelectual com que o leitor irá se deparar se aceitar o desafio de, mais que ler esta obra de Giorgio Agamben, observar atentamente a vida e ideias do poeta e filósofo Johann Christian Friedrich Hölderlin. Há muito de universal nas dores e insanidades de um homem.

A loucura de Hölderlin – Crônica de uma vida habitante 1806-1843
Giorgio Agamben
Trad.: Wander Melo Miranda
Âyiné
248 págs.
Giorgio Agamben
Nasceu em Roma (Itália), em 1942. Filósofo que trata de questões atinentes à política e estética, é autor de, entre outros, A igreja e o reino e Quando a casa queima. Suas preocupações giram em torno de temas como o estado de exceção e homo sacer.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

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