Garimpo tardio

Tempo de espalhar pedras, de Estevão Azevedo, retoma a tradição do romance rural brasileiro
Estevão Azevedo, autor de “Tempo de espalhar pedras”
26/08/2015

Muitas vezes, achamos que o universo da cultura encontra-se apenas nos grandes centros, e teimamos em afirmar que num lugarejo não existe vida cultural, expressão que ouso definir aqui do ponto de vista acadêmico. Muitos autores, no entanto, construíram suas histórias a partir de um microcosmo social rudimentar, local extremo em pobreza e pleno de conflitos, suas obras acabaram tornando-se fonte de estudos para toda a literatura. Um deles foi Graciliano Ramos; outro, Guimarães Rosa. Não hierarquizo supremacias. Na literatura norte-americana, temos Willian Faulkner, um dos grandes. Através da acurada observação, unida à sensibilidade, estes autores construíram universos em que latejam a problematização humana. Se há livros que são resultantes de tais mundos, todo lugar é fonte de cultura, e isso acontece também, embora em proporções menores, com o romance de Estevão Azevedo.

Tempo de espalhar pedras é uma narrativa que retoma a tradição do romance rural brasileiro. Ambientado num garimpo, à margem de um vilarejo decadente, tendo como pano de fundo a autoridade do coronel Aureliano, a história desenvolve-se sem referências de tempo nem de comunicação explícita com qualquer outro local fora dali.

Talvez seja difícil em nossa literatura perseguir a trilha deste tipo de romance, pois tivemos autores que se tornaram clássicos ao abordar não apenas os problemas de relação de poder entranhados neste tipo de sociedade patriarcal, como também as mazelas do campo e as relações amorosas, como a presente no livro entre Rodrigo e Ximena.

Além dos já citados, trilharam também este caminho Manuel de Oliveira Paiva, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego, entre outros. Tais autores, cada um a seu modo, desenvolveram importantes marcos na literatura brasileira e pareciam ter fechado a via das narrativas rurais ou regionalistas.

Caso queiramos comprovar as afirmações acima, basta consultarmos os bancos de teses das faculdades de letras das principais universidades federais. Em quase todas, este gênero de romance já foi esmiuçado e virado ao avesso. Apesar de a crítica acadêmica não apreciar a leitura livre e descomprometida, ela, a crítica, ainda é necessária. O mesmo poder-se-ia dizer sobre o ato de escrever romances seguindo a tradição regionalista. O que transparece é que todos os autores já esgotaram o assunto. Mas a observação pode-se revelar falsa. E o romance de Estevão Azevedo endossa a tese. De onde menos se espera, surge a pedra tão sonhada. Apesar de habitarmos um mundo em que predomina o gosto pelas narrativas urbanas, em que o editor torce o nariz quando alguém lhe apresenta um manuscrito “convencional”, em que não há cidades “inteligentes” nem personagens que não se metamorfoseiam, a narrativa de Azevedo, ainda que sob o espectro de um Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa, vem demonstrar grande vitalidade. E surpreende que se trate de um escritor relativamente jovem, que consegue lidar com as complexidades das relações humanas e de poder num microcosmo rural.

Precisão
A narrativa é desenvolvida em trinta e quatro capítulos, que abordam os mais variados assuntos. Além da tirania do coronel, dono das propriedades locais e até mesmo de todo o garimpo, há histórias secundárias, que demonstram a riqueza de sonhos e de evasão de homens e mulheres condenados à violência. A pulsão sexual, incluindo a das mulheres, também é abordada, o que se sobrepõe até mesmo à questão das relações familiares. Como alguém poderia amar e desejar o algoz de seu pai? O autor desenvolve com precisão este viés da natureza humana.

Outro ponto que Estevão tenta e persegue com precisão é de natureza linguística: tanto sintática quanto vocabular. Vejamos a primeira frase do livro: “Pedra, palavras de pedra”. Uma frase nominal, bastante curta, que sinaliza a direção que o autor seguirá durante boa parte do romance. Trata-se de um livro em que a linguagem possui grande importância, que arrasta atrás de si a construção não só do ambiente, como também do caráter dos personagens. “E agora era como se lhe arranhassem os ouvidos cada vez que imaginava a fala do marido.” Pode-se observar que a palavra pesa, arranha e machuca cada um dos personagens. A matéria mais essencial da criação literária, a palavra, não se situa apenas no nível de registro das situações, na verdade ela arrasta atrás de si toda a sua carga significante.

O que se pode fazer de reparo ao romance é certo tom apocalíptico dado aos destinos de alguns personagens e à própria vila. Muitos autores caem nesta tentação, é como se desejassem a grandiosidade antecipada de sua obra.

Desde o início, acompanhamos um garimpo que já não proporciona riquezas. Os homens e a própria cidade estão mergulhados numa decadência cada vez maior. Os relacionamentos humanos, ao mesmo tempo, decompõem-se, tendo o desespero, a violência cada vez mais intensa e mesmo a loucura como contrapontos, arrastando grande parte da vila. Bezerra é um personagem sabedor de um local onde ainda pode descobrir pedras que valem alguma coisa. Como o garimpo pertence ao coronel Aureliano, deve agir com o máximo cuidado; em consequência, precisa comercializar seus diamantes com contrabandistas que chegam clandestinos à vila. Mas os exageros que comete, tanto em relação à bebida como ao revelar sua descoberta a um amigo, acabam arruinando-o. No final, não sabemos o destino de tal parte do garimpo, permanecendo como um local mágico, desconhecido de todos, que se perde entre a pobreza dos homens. O beato Silvério é outro exemplo. Como se trata de um fanático, que vive o tempo todo rezando, seu destino lembra alguns personagens do conto Sorôco, sua mãe e sua filha, de Guimarães Rosa.

Apesar da influência e da filiação a autores que se tornaram clássicos em nossa literatura, o livro navega bem dentro deste rumo e vence argumentos apressados de que muitos deles, sobretudo Guimarães Rosa, não deixariam linhagens a seguir. É possível a descendência, desde que os filhos não sejam tão obedientes e procurem transgressões em outros possíveis sítios. Onde os há? Sempre os haverá. Caso não seja sim, estará finada esta arte que tantos de nós apreciamos.

Bom lastro deixado pelo romance de Estevão Azevedo é o papel da mulher dentro da cultura patriarcal. Ximena, filha de Gomes, é uma jovem ousada no contexto apresentado pelo livro. Suas atitudes, embora flertem com um naturalismo tardio, apresentam o corpo como protagonista não apenas do prazer, mas como divisor de águas entre o poder patriarcal e a liberdade, poder este não apenas ligado ao próprio pai, mas também ao mandante local. O desafio de Ximena é a não aceitação da ideologia, mesmo que não tenha consciência disso.

Tempo de espalhar pedras mostra-se um livro desafiador no atual cenário em que muitos autores procuram histórias surpreendentes e artificiosas, esquecendo que a cultura não possui endereço certo apenas na metrópole. Azevedo consegue tirar de um veio já explorado e considerado por muitos incapaz de novas jazidas (como o próprio garimpo presente no livro) uma boa história.

Tempo de espalhar pedras

Estevão Azevedo
Cosac Naify
284 págs.
Estevão Azevedo
Nasceu em Natal (RN) e vive em São Paulo (SP). Formado em jornalismo e letras, é editor e escritor. Publicou seus primeiros livros, O terceiro dia (2004) e O som do nada acontecendo (2005), ambos de contos, pelo coletivo Edições K, que reuniu autores de diversas cidades do país. Seu primeiro romance, Nuca o nome do menino (Terceiro Nome, 2008), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009. Tem contos publicados em revistas e na antologia de escritores brasileiros Popcorn unterm Zuckerhut — Junge brasilianische Literatur, lançada em 2013 na Alemanha.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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