Viver um tempo de exceção tem as suas mazelas. Talvez você se identifique… Pouco a pouco, a realidade vai se distorcendo, criando camadas cada vez mais espessas, como numa tela expressionista, quase irreconhecível, e eis que, de repente, um ponto qualquer da paisagem assume um tom mais forte, um relevo impactante, até que nos pegamos nauseados por essa visão, irremediavelmente hipnotizados, habitantes de uma espécie de zona de exceção.
No agora da vida contemporânea, em que tantas vezes sentimos o real mais fantástico que a ficção, adentramos nessa zona de exceção sem muito poder de escolha. Sabemos que a literatura fantástica transita por esse lugar de estranhamento, desestabilizando nossa noção de realidade. Mas não se engane: Exceções, do espanhol David Roas, não é povoado por vampiros em castelos mal-assombrados, monstros grotescos ou qualquer coisa sobrenatural que represente um escape desse mundo. Ao contrário. A obra de Roas é feita de gente comum, de carne e osso e desejos, e estamos num aeroporto, prestes a embarcar num avião com overbooking — como o sujeito que experimenta as delícias da primeira classe, em Das Kapital —, mas também podemos estar no enterro de um desconhecido do qual não podemos escapar, como em Trânsito, ou vivenciando a cumplicidade aparentemente inabalável de um jogo entre mãe e filho, do conto Jogos de bebê. É possível ainda testemunhar as angústias de um escritor atormentado por palavras que se intrometem em seu discurso, palavras autônomas que escrevem por ele (Palavras), ou quem sabe atravessar o umbral e revisitar Alice no País das maravilhas (E por fim despertar).
Nos sete contos dessa antologia, o elemento insólito está infiltrado e, correndo por baixo de tudo, espraia uma tensão que nos faz refletir sobre possíveis brechas em nosso cotidiano, zonas ocultas que em sã consciência evitamos e que revelam mais de nossa condição humana do que jamais admitiríamos.
No entanto, o excepcional nesses textos vai se tornando tão naturalizado — à moda kafkiana — que não sabemos por exemplo se continuaremos precisando da presença do defunto de Trânsito, do mesmo modo que o Pai de família, do escritor tcheco, se pergunta se Odradek — o estranho objeto hexagonal de características animadas — permanecerá “vivo” depois de sua morte. Afinal, mais importa saber como Gregor Sansa vai fazer para chegar ao trabalho do que como ele virou aquele inseto repugnante.
O fantástico nos contos de Roas ocorre assim: nessa distraída banalidade do passar do tempo, num dia como outro qualquer, “num meio-dia ensolarado”, como diria o grande Cortázar.
Como encarar tal distorção do que chamamos nossa “vida real”? Com humor, responde David Roas. O humor é a tônica de sua narrativa, a resposta debochado-melancólico-irônica desse escritor espanhol à afronta da realidade.
Assim é que num dos contos mais instigantes, um professor universitário em seu trajeto diário de trem para o trabalho fica absolutamente obcecado por uma misteriosa casa desterrada, cujas janelas e portas estão completamente vedadas por tapumes. “Uma casa cega”, diz o narrador.
A analogia com a Casa Usher é inevitável, o próprio narrador o afirma, de modo que não sabemos mais se ele está absorto na leitura do conto de Poe que levará aos alunos, ou se na observação da casa cega. Fronteiras são atravessadas sem que nos peçam licença: poltrona do trem, casa, trabalho, sonho… No trem, é tomado pela ansiedade, à espera do momento do trajeto em que finalmente passará diante da “casa cega”; em casa, estuda mapas e meios de se aproximar dela, sonha acordado com a casa, e só se sente vivo de fato diante dela.
Em Exceções, que dá nome à antologia, um fato inusitado na espartana vida de um homem “prático”, como apelida o narrador, para o trânsito de uma cidade espanhola e tem a cobertura da imprensa e da mídia, que indagam a existência de um truque.
Exceções é uma coletânea feita especialmente para o público brasileiro e extraída de dois grandes livros de Roas, Distorsiones (2010) e Horrores cotidianos (2007), originalmente publicados na Espanha.
Privilegiando cenários assimétricos, de absurdo e distorção, Exceções pretende quebrar nossa perplexidade por meio do riso. Nele, ouve-se o ressoar de uma gargalhada grotesca, porém profundamente humana. O que nos resta é vertigem e uma profunda fé na dúvida.