Recorro, de imediato, à provocação de “Por que ler Murilo Rubião hoje?”, ao que considero ser a porta “messiânica”, como nos diz Walter Benjamin, a passagem que nos faz transitar entre mundos e tempos: só podemos ler Murilo hoje porque ele é a ruína moderna, uma vez que seus textos não cessam de se recompor.
Jacques Derrida defende a ideia, em seu Cartão postal, de que a escrita é, antes de mais nada, uma carta, ilegível, endereçada ao futuro. Pois bem, este chegou. Cem anos após seu nascimento, celebramos hoje uma vida de proposições, cruzamentos, interpelações, rotas de fuga, e, não menos, espelhos com os quais permanentemente nos assombram imagens em que vamos nos reconhecendo e nos refazendo.
A escrita de Murilo Rubião nos inquieta e nos apaixona. Funciona como esta nave interestelar, uma Voyager, lançada aos confins do universo, em que uma série de registros (visuais, verbais, auditivos) busca, incessantemente, uma vida que a leia. São sinais emitidos daqui, tentando provar que, em um ponto do universo, há vida. Quem eventualmente a encontrar terá que igualmente tentar “decifrar” a “origem” da sonda: desta feita, nunca dantes tantos signos foram tão prenhes de sentido. Por outro lado, quiçá mais importante do que revelar a origem, a nave-texto aponte a ideia de uma presença, completamente fantasmática, da questão da literatura. Este é o primeiro, e talvez grande, enigma de por que ler Murilo Rubião.
Daniel Link, precisamente em seu livro Como se lê e outras intervenções críticas, no ensaio Escada para o céu (Sobre ficção científica), lembra que este gênero “(…) é um relato do futuro posto no passado (à diferença da utopia, que fala do futuro mas no presente, e da futurologia ou do discurso profético, que põem o futuro no futuro).”
Ao traçar as diferenças entre os dois gêneros (a ficção científica e a fantástica), o escritor da não menos enigmática e monstruosa La chancha con cadenas comenta que ambos engendram a ideia da criação de “monstros”, sendo a relação do fantástico vinculado a um campo simbólico: a morte. Este, quiçá, seja um ponto em comum: ler Rubião hoje é encampar a discussão permanente de uma presença-ausência que ganha potência no universo do arquivo — quer dizer — “por vir” — se lemos aqui a referência Blanchotiana, por exemplo, quanto ao procedimento que engendra o mecanismo de leitura do texto — mecanismo que, segundo sabemos, Roland Barthes atribui um nascimento graças à clássica morte do autor. Esta história, voltando a Link, agora registrada na espectralidade de La Chancha, é indicada também para o papel da crítica, definida na apresentação do livro como “um sistema regional de lucha y el crítico como un estratega en el combate literário”. Pensando assim, o campo literário se configuraria como espaço de tensão: campo de batalha onde as peças estão em permanente (des)alinhamento. O operador dessa maquinaria seria o crítico, também coautor dos textos. Vejamos algumas outras peças.
A leitura é uma operação que, segundo Didi-Huberman, é anacrônica. E para Susan Buck-Morss, leva em consideração não o poder de origem definido como gênese material, no sentido cronológico pura e simplesmente. Antes, estaria igualmente para uma invenção. Somados os dois pontos de vistas, acrescidos da leitura benjaminiana da história, teríamos encenado o espaço virtual da leitura e seu semblante; da obra para o texto; do tempo recriado: ou seja, trata-se da própria ficção, aquilo que o próprio Rubião urdirá no belo enigma de Marina, a intangível, quando da materialização de um processo de escritura de um texto: processo este que, passado diante de nossos olhos, será, antes de tudo, o jogo encenado da morte: uma presença (da escritura) ausente e vice-versa. Ora, sabemos que este texto, o de Marina, é engendrado por contos que o precederam, Elvira e outros mistérios e Eunice e as flores amarelas, e todos nutridos da firme fonte machadiana. Murilo Rubião nos indica que a literatura é variação; corte; reinserção; invenção; modulação (a psicanálise falará de “flutuação”…). Exatamente esta incerteza cambiante foi um dos motivos que me levou a propor a leitura do acervo muriliano também como uma série de “tablaux”[1], especialmente o estudo sobre a pasta intitulada por Murilo como Anotações antigas para contos improváveis.
Modernidade
Por um lado, o título deste ensaio me remete, igualmente, a duas linhas teóricas: de um lado, o desconstrucionismo derridiano, com a linha instaurada/instauradora do “mal de arquivo”. Por outro, e nem sempre tão contrário, o processo de se refazer, da reescritura (de si, igualmente), que um caminho freudiano poderia nos indicar, como, por exemplo, o belo ensaio: Recordar, repetir, eleborar. Reunidos neste feixe, princípio elementar e primordial de toda antologia, os dois procedimentos de leitura nos encaminham para a questão que, crucial, pauta todo nosso debate aqui: afinal, que modernidade é a de Murilo Rubião?
Primeiramente, há que se lembrar, na vida do iniciante escritor da hoje Carmo de Minas, o impasse em que se encontrava: existe a questão paterna, que, como sabemos, representava um modelo de literatura que não acenava para o jovem escritor. Então, o primeiro grande desafio: como enfrentar o pai? Como inventar uma saída que não fosse desonrosa e, antes de mais nada, instigante, nova, afinal, moderna e, para aquele momento, modernista? A propósito, a correspondência com Mário de Andrade deixa claro este momento tenso e apaixonante. Como relembra o recente trabalho defendido por Cleber Cabral de Araújo, afixado em um dos pontos de sua tese, ele acrescenta exatamente uma das cartas “ausentes”, a saber, uma resposta de Murilo a Mário que não se encontra na pequena, e importante, edição[2] de Mário e o pirotécnico aprendiz. A missiva é de 2 de março de 1944, datilografada, e com acréscimos que demonstram que o contista mineiro fez rascunho, revisou e ficou, possivelmente, com uma cópia. Nesta, Murilo deflagra o momento angustiante de tatear um caminho novo.
Portanto, poderíamos inferir, neste momento de busca, que a literatura, para Murilo, se constitui enquanto “espera”. Escrever, reescrever, reelaborar… E nisso o arquivo é pródigo em atestar todo um universo que inspirava — e segue inspirando — a invenção de novas histórias e reescrita de tantas outras. Dessa forma, não seria impossível pleitear sua literatura como um espécie de work in progress.
Ler o presente desta forma nos possibilita pensar igualmente uma teoria em que a “espera” e o “distanciamento” (freudiano, brechtiniano) se fazem presentes, como a que assistimos em O Brasil não é longe daqui – O narrador, a viagem, em que a crítica Flora Sussekind evoca uma “demora”, um “retard”, como lembra Raul Antelo. A literatura muriliana ainda não chegou, apontando-nos o aparente paradoxo em que se encontra: vasto material & a impossibilidade de dar conta de seus senderos; escrita materializada & um evanescimento que retoma as categorias da modernidade como “fantasmática” e “fantasmal”. Ainda assim, os textos murilianos nascem (e são quase forjados, uma vez que são fundamente marcados por agon, o radical grego que indica a tensão, a luta) do impasse de um modernismo em franca cristalização, no entanto, ainda explorando os veios dos caminhos das pedras preciosas ainda não de todo encontradas. Para a crítica Flora Sussekind, é certa “sensação de não estar de todo” na sua composição. Necessidade que funciona como uma espécie de indicador prévio de deslocamento, distância, desenraizamento, marcas registradas da escrita de ficção brasileira. Destaquemos, pois, estes três elementos: “deslocamento”, “distância” e “desenraizamento”. Para o primeiro, Murilo estaria sintonizando-se com as forças emergentes das vanguardas europeias e latino-americanas: e aqui recordo o princípio borgeano da “atribuição errônea”, com o que se traduziriam os outros dois elementos. Em relação à “distância”, interligamo-la à própria força do “estranhamento”, esta, sim, outra força motriz das histórias de Murilo. Um “estranhamento” — “familiar”, uma “familiaridade” —estranha…, como nos lembra o “unheimlich” freudiano. Já o terceiro elemento, a do “desenraizamento”, podemos lê-lo à luz do trabalho da própria Susan Buck-Morss[3], em que defende a ideia de uma origem como invenção, criação, o que não estaria longe dos preceitos benjaminianos, como vimos. Afinal, também para Flora, há que se inventar um passado, e um presente, para a literatura.
Se pensarmos “por que ler Murilo hoje”, diria igualmente que sua literatura/vida é o que Alain Badiou definiu como “acontecimento”. Esta necessidade de uma “imposição de uma configuração artística” assusta Murilo, ao mesmo tempo em que o lança a um processo sem volta. Sua literatura já está acontecendo… De outra forma, Murilo acaba por prefigurar o que Michel Foucault e outros críticos, como Giorgio Agamben, abordarão sobre o “dispositivo”. Explorados os elementos “oikonômicos” e sua relação com a política, o crítico italiano não poupará argumento para rebater a tese de que a comunidade que vem é coisa do futuro. Os mecanismos de ligação, a saber, os processos de subjetivação, são mascarados por um controle que cria a ilusão dele mesmo, com o aparato moderno. Daí, o escritor toca numa questão, creio eu, crucial, para pensar o contemporâneo: o conceito de “amigo”, com o que também entrevemos, na figura de Murilo, o homem atravessado por interesses, por desejos, por prestatividade; um Murilo, como afirma a professora Eneida Maria de Souza, que se vê no cruzamento de janelas indiscretas[4]. Agamben dirá que “O amigo não é um outro eu, mas uma alteridade imanente na ‘mesmidade’, um tornar-se outro do mesmo. No ponto em que eu percebo minha existência como doce, a minha sensação é atravessada por um com-sentir que a desloca e deporta para o amigo, para o outro mesmo. A amizade é essa des-subjetivação no coração mesmo da sensação mais íntima de si”. Rearmando os dados, pensemos que Murilo e sua obra, seu arquivo, funcionam como esta “alteridade imanente”, onde toda uma geração se viu, se lançou, se atravessou, para encontrar um semblante moderno.
Armadilha
Nesse processo maquínico, no lance de armar e desarmar uma literatura, da qual Mallarmé foi mestre, a armadilha de ler Murilo Rubião hoje é tratar sua literatura como cristalização. Para tentar fugir dela, arma-se uma relação, em que figura a “intimidade”, seja nos contos, ainda com a grande estratégia do absurdo encarado com naturalidade, seja no vasto material de iconografia, de manuscritos, de datiloscritos, bilhetes, folhas tão heterogêneas quanto primordiais na construção do mosaico arquivístico.
A escrita de Murilo Rubião nos inquieta e nos apaixona. Funciona como esta nave interestelar, uma Voyager, lançada aos confins do universo, em que uma série de registros (visuais, verbais, auditivos) busca, incessantemente, uma vida que a leia.
Se tomarmos este campo da amizade, da intimidade, como espaço de uma descontinuidade tensionada, pensemos o caso da epistolografia e sua relação com o presente. A ideia de intimidade aponta também para o que poderíamos chamar de uma política cultural. Esta, fruto de cruzamentos de diversas fontes e encontros, é um pilar no modernismo brasileiro, se pensarmos que só a correspondência trocada entre os escritores novos e os considerados “mestres” ou “clássicos” serve como farol para entrarmos em túneis tão variados. Estamos nos anos 1960. De Roma, escreve a Murilo um amigo seu, Antônio Barbero Braga Pinheiro, lotado no escritório do Brasil na capital italiana. O relato do amigo mostra os bastidores das intrigas inter-palacianas… intrigas que parecem esbarrar no pobre presente… como metáfora quase perfeita.
Escreve Antônio, em uma carta de 12 de janeiro de 1961:
Meu caro Murilo, a realidade é triste: O Escritório de Roma não é mais nada. Em 6 mêses êste moço asilhou[?] o que havia de melhor aqui.. É uma morte lenta…”/ (…) “Embora não demonstre sou um homem só e procuro, no trabalho, preencher e superar esta lacuna do meu íntimo. Parte de mim, da minha juventude, do meu trabalho, da minha capacidade está aqui neste Escritório. (…)/ Murilo, não cante carta e escreva-me, sempre que houver tempo disponível, pois carta é uma notícia e notícia é sempre uma presença.”/Com um grande abraço, seu amigo certo,/Antônio.[5]
Pouco tempo antes, o próprio Antônio havia confidenciado a Murilo uma série de questões problemáticas, reveladoras da situação pós-eleição (governamental) no Brasil e o consequente quadro em Roma. Como se sabe, Murilo havia recém passado na Espanha como adido cultural brasileiro. A data é de 21 de abril de 1960. O amigo confessa:
Você já foi meu chefe e sabe que sou desprovido de qualquer vaidade, mas que sou muito cioso do meu valor e capacidade funcional. Já me sinto muito velho para ser desmoralizado. Você conhece muito bem a situação do Escritório de Roma e de certos elementos contratados que aqui circulam. Pois bem, tais elementos resolveram tirar a mascara e colocar as garras de fora, tentando um ato de desmoralização e amotinamento no Escritório, ao pensarem que com a perda de meu título de Chefe Substituto, consequentemente, havia perdido, também, a autoridade. Enganaram-se e muito!!
O relato continua: “Meu caro Murilo, isto aqui virou ‘Torre de Babel’. Ninguém mais se entende. A maledicência e a intriga são senhoras, absolutas, da situação e já não se sabe mais em quem acreditar. O desrespeito é de tal ordem ordem [sic] que o Escritório tomou ares de ‘bar’ (…)”. E segue, contando outra situação-bomba, com um dos funcionários do Ministério do Trabalho quando Murilo esteve por lá. Trata-se de uma longuíssima carta, de umas sete páginas, datilografada! Encerra-a, lamoriosamente: “Apavoro-me vendo o barco afundar-se lentamente nesse mar de luxúria, imundície e vergonha, e eu tendo de cruzar os braços sem [rasura] forças para salvá-lo”.
Atualidade
No extenso relato, o que nos choca é a atualidade do relato. As “coincidências” entre um esquema de funcionamento das relações públicas e privadas no/e do Brasil são aterrorizantes, se pensarmos que entre a década de 1960 até agora lá se vai mais de meio século… Este trabalho de arqueologia revela nossas fraturas expostas. Essa relação de vida íntima, pública e a produção literária parecem conter, na leitura da trama, um componente inusitado: o dado histórico, portanto, lido posteriormente, revela que seus sentidos armam-se de distintas formas. O parentesco com os dias atuais é tão assustador e “fantástico” quanto os próprios contos murilianos. Para Agamben, se lermos a história da modernidade como história cindida, como vimos em Homo Sacer, e a relação de pertencimento excludente, encontraremos neste arquivo indícios desse movimento.
Nada nos surpreenderia encontrar, diante do tempo, do tempo do Ex-mágico, uma literatura que procede de maneira semelhante: parece querer enfrentar os dois: a “eficácia” da lei é posta em xeque, tanto quanto por “força de lei” todos os comportamentos subjugados e denunciados na literatura de Murilo. O que parece ser a exceção, ou seja, os milhares de documentos em seu arquivo que ficaram no “submundo” (e aqui valeria uma leitura atenta da série de textos que Murilo ensaia, por exemplo, sobre o “esgoto”… e a vida que tenta nascer dali, presente em seus inéditos manuscritos), escondidos da luz das publicações oficiais, encontram no impasse gerado pela doação deliberada a uma instituição que os conserve, guarde, estude… (os arcontes derridianos, por excelência), uma saída para o que não “deveria” ter vindo à tona. Afinal, o que há neste arquivo, nesta literatura, que tanto nos atrai? Como operar a máquina de (des)montar? Se a questão, passada a discussão primeira da pós-modernidade, que pleiteava, como em Frederic Jameson, um conceito de “renarrativização dos fragmentos”, onde o desafio das peças do jogo estaria em como colar os cacos pós-explosão do sentido do texto único, o câmbio da problemática da leitura não residiria mais em o que ler, mas em “como se ler” o material disponível. Portanto, o que ganha dimensão é o procedimento. O século 21 nos exige, mais do que o campo cheio (o sentido pleno), o esvaziamento deste. E este método de leitura, se assim podemos chamá-lo, leva em conta o que também Murilo nos legou: seus textos nos deram não só um futuro, mas vários horizontes. Na máquina de leitura, erotizada como queria Barthes, nave intergalática que emite e recebe sinais, portanto, na flutuação plena de sentidos, a literatura muriliana não é apenas uma denotação, mas uma “detonação”, como afirmará, no limiar das conexões, Gregory Ulmer[6] em sua “Post(e)-pedagogy”. Este o grande legado de Murilo: fazer sonhar, inventar, um mundo que ainda não chegou.
NOTA:
Texto apresentado em uma das comemorações dos 100 anos do escritor, em Belo Horizonte, 2016. Nesta versão, há pequenas alterações da versão original.
[1] In Arquivo – máquina de (des)montar. Ensaio apresentado como finalização do Pós-Doutorado desenvolvido no Pós-lit da UFMG. 2012-2013.
[2] A edição de Mário e o pirotécnico aprendiz – Cartas de Mário de Andrade e Murilo Rubião traz a carta de Mário a Murilo, datada de SP, 27 de dezembro de 1943, pulando para a carta do mesmo Mário de 5 de abril de 1944. A edição é organizada por Marcos Antonio de Moraes. BH : UFMG; SP : IEB-USP; SP : Giordano, 1995, pp.55-71,
[3] BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar – Walter Benjamin e o projeto das Passagens. Trad. de Ana Luiza de Andrade. Belo Horizonte : UFMG; Chapecó : Universitária Argos, 2002.
[4] SOUZA, Eneida Maria de. Janelas Indiscretas – Ensaios de crítica biográfica. BH : UFMG, 2011.
[5] Carta no Arquivo dos Escritores Mineiros – (Arq. 1/Gav. 6/Pasta 01) – Série Correspondência com amigos/ Subsérie Correspondência com Amigos (1935-1966)- Exterior.
[6] ULMER, Gregory L. Applied Grammatology – Post(e)-Pedagogy from Jacques Derrida to Joseph Beuys. Baltimore and London : Johns Hopkins Press Ltd., 1985.