Mais da metade dos brasileiros — 54%, conforme o censo divulgado pelo IBGE em 2014 — tem a pele preta, mas essa maioria da população nem de longe se encontra representada nos palcos de teatro espalhados pelo país. O que é o mesmo que afirmar que as histórias que dizem respeito aos negros e negras, fundamentais para a compreensão do passado e do presente do Brasil — e para a construção de um futuro menos caótico e desumano —, passam quase ao largo das nossas salas de espetáculos.
É este o ponto de partida de dois livros lançados em junho deste ano pela Javali, editora de Belo Horizonte especializada em artes cênicas: O teatro negro e atitude no tempo, de Evandro Nunes, e Maurício Tizumba: caras e caretas de um teatro negro performativo, de Júlia Tizumba.
Ambos os livros narram a trajetória de importantes nomes do teatro de Minas Gerais, e a partir daí levantam questões sobre os papéis que parte da encenação brasileira — e, acima dela, a própria sociedade — insiste em atribuir às populações negras.
A obra da também atriz Júlia Tizumba apresenta a carreira de Maurício, seu pai, um dos principais artistas do estado. Ator, músico e diretor com uma longa carreira iniciada em 1974, Maurício Tizumba destaca-se por uma performance que, ao aliar elementos eruditos e populares do teatro a uma forma de compreensão do corpo típica das manifestações religiosas afro-brasileiras, aponta sempre para a ancestralidade que o precede.
Já o livro do ator, diretor e pedagogo Evandro Nunes traz a história do Teatro Negro e Atitude (TNA), grupo artístico que ele ajudou a fundar e que, desde 1994, é um dos pioneiros em Minas no debate sobre a inserção estética, e também política, do negro na cena. Bebendo de diversas fontes, da poesia de Solano Trindade à prosa de João Ubaldo Ribeiro, o TNA desenvolveu uma dramaturgia própria onde a “negrura”, na expressão de Nunes, invariavelmente ocupa a posição central.
De onde veio e para onde vai
Antes de iniciarem os estudos acerca de seus personagens, as duas publicações se esforçam em refazer os passos daqueles que vieram antes. Esse olhar para o passado, mais do que mera obsessão genealógica, é um imperativo ético: num país onde o fosso socioeconômico entre brancos e negros opera um cínico apartheid disfarçado de meritocracia e cordialidade, a construção de uma estética teatral genuinamente negra não pode prescindir dos elementos ancestrais que a informam. Nas palavras do próprio Tizumba: “A minha performance de Teatro Negro é exatamente o que eu sou, de onde eu vim e para onde eu vou”.
Assim, nos capítulos iniciais dos dois livros, o mesmo grupo teatral paira onipresente: o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944 no Rio de Janeiro sob a liderança do poeta, dramaturgo, ator e professor Abdias Nascimento.
Em uma época em que a falsa ideia de que o Brasil constituía uma “democracia racial” corria solta (e que, no teatro, negros e negras eram aceitos, se tanto, como elementos cômicos), Nascimento foi às favelas e fábricas recrutar novos artistas para o grupo. Seu propósito era abertamente revolucionário: contar histórias historicamente invisibilizadas, reforçando a importância da negritude para a cultura brasileira e subvertendo, assim, os lugares tradicionalmente destinados às populações negras, trazendo-as das periferias para o centro da cena — teatral e socioeconômica.
Ativismo e arte não se dissociam no TEN, complementam-se. As ideias e os procedimentos de Nascimento acabaram por chacoalhar o meio cênico nacional, e delas derivaram diversas trupes e grupos de educação e apoio compostos majoritariamente por artistas negros, como o Teatro Popular Brasileiro, liderado pelo poeta Solano Trindade, o Centro de Integração e Desenvolvimento do Artista Negro, encabeçado pela atriz Zezé Motta, e o Grupo Ação, do qual participou o ator Milton Gonçalves, entre tantos outros.
Percorrido esse caminho, as duas obras chegam enfim a dois desdobramentos contemporâneos do gesto essencial de Abdias Nascimento: Maurício Tizumba e o Teatro Negro e Atitude.
Corpo negro
É estimulante notar como as atuações que Evandro Nunes e Maurício Tizumba desenvolveram ao longo dos anos passam pelo ato de apossar-se do próprio corpo e das histórias neles inscritas. Talvez resida aí o caráter eminentemente religioso — a religiosidade “raiz”, aquela que re-liga — do fazer artístico do TNA e de Tizumba.
A figura de Exu, “o dono do corpo”, orixá “que liga o sujeito e o seu predicado”, como escreve Nunes, citando a pensadora Leda Maria Martins, surge então como articuladora das performances desses artistas, muito embora, entre si, elas guardem diversas diferenças.
Nunes, que antes de fazer-se ator se descreve como um adolescente tímido, avesso à própria imagem, toma consciência de sua negritude ao ver-se em cena, momento no qual o pior que um ator pode fazer, nos diz ele, é mostrar-se ao público de maneira “fragmentada”. Essa percepção marca a sua trajetória nos palcos: apresentando-se “com um corpo negro potente, cheio de si, sabedor do que é capaz”, Nunes inverte a relação que tinha com si mesmo. “O espelho passa a ser meu aliado”, conta.
Para Tizumba, essa revelação se deu mais precocemente. Ainda na década de 1960, na extinta TV Itacolomi, do então todo poderoso Assis Chateubriand, o ator mirim já se apresentava nos concursos de calouros — e num dos tantos que venceu, cantou Tributo a Martin Luther King, de Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli, num prenúncio das questões que o motivariam nos anos seguintes.
Na avaliação de Tizumba, “tudo que o negro pode fazer na dramaturgia mundial”, “passando por Sófocles, Sêneca, Shakespeare, Oscar Wilde, Goethe, Brecht…”, é passível de tornar-se Teatro Negro, com a ressalva de que este é “um teatro que tem causa: contra o racismo, a desigualdade racial e a invisibilidade do negro”. Justamente por isso, parecem ser não as histórias clássicas, mas aquelas raramente representadas as preferidas tanto do TNA quanto de Tizumba.
Importância civilizatória
Destaco dois espetáculos, entre os tantos de que os livros tratam. Encenado pela primeira vez em 1998, Conversa de dois, do Teatro Negro e Atitude, funde aspectos da música Diário de um detento, dos Racionais MC’s, com o conto Conversa de bois, de Guimarães Rosa.
Um par de atores negros — Nunes e Hamilton Borges — surge numa carroça, ora puxando-a, ora confinados em seu interior, que emula uma cela do presídio do Carandiru no dia anterior ao massacre de 2 de outubro de 1992, quando a Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo assassinou 111 presos.
A peça ganhou as ruas e os espaços alternativos de BH, e foi apresentada inclusive em uma penitenciária — o presídio Antônio Dutra Ladeira, em Ribeirão das Neves, Minas Gerais. “Tivemos 300 detentos nos assistindo, um público muito, mas muito respeitador”, relata Nunes. Ao fim da apresentação, como acontece também no clássico da literatura do cárcere Recordação da casa dos mortos, de Dostoiévski, os presos se puseram de pé e deram um único grito. “Alguns segundos depois descobri que eram os aplausos e a forma de dizer que gostaram”, lembra Nunes.
Já em Galanga Chico Rei, que estreou em 2011 sob a direção de João das Neves, com texto de Paulo César Pinheiro, Tizumba conta as desventuras de Galanga Conguemba Ibiála Chana, rei congolês sequestrado e trazido para o Brasil colonial na condição de escravizado. Sua odisseia, que culmina com a compra da própria liberdade e a dos companheiros que trabalhavam com ele numa mina em Ouro Preto, é narrada por Tizumba encorporado em griot, o Pai Grande que preserva as histórias dos seus e, por meio da música, da dança e da oratória, as transmite aos mais jovens.
Misto de mito com história, Galanga, convertido em Chico Rei, é considerado um dos pais do congado mineiro, expressão que combina símbolos da fé católica e das religiões de matriz afro, tradição que Tizumba também perpetua em sua performance.
Nessa capacidade de recontar velhas e necessárias histórias que o brasileiro por muito tempo preferiu recalcar, e em acrescentar novas perspectivas aos clássicos da literatura e da dramaturgia, mora parte da força e da importância não só estética, mas civilizatória, do Teatro Negro que os dois livros se propõe a analisar.
O formato acadêmico de ambas as obras, que são frutos de dissertações de mestrado nas áreas da Educação e Artes Cênicas defendidas por Nunes e Júlia, e a exposição sistemática de autores, própria do estilo acadêmico, prejudicam em algumas passagens o ritmo das narrativas — resultando, às vezes, num certo distanciamento entre autor e objeto que poderia ter sido descartado. Nada, entretanto, que diminua a relevância dos dois registros, que interessarão a todas as pessoas preocupadas com o passado, o presente e o futuro do teatro brasileiro.