Fronteiras sem barreiras

Em seu novo romance, Gilles Lapouge determina que os limites só existem enquanto imaginários
Gilles Lapouge: os limites do homem entre o que é certo e incerto mudam de acordo com os ventos do poder.
01/07/2005

Poucos brasileiros se deram conta, pois a notícia não tinha tanta importância para nós. Mas, para quem preza o ir e vir por esse mundo e acha que os controles de fronteiras são uma grande besteira, ela é muito importante. Logo depois dos ataques terroristas de Londres, a França resolveu suspender temporariamente o acordo de Schengen. Esse acordo, assinado em 1985, suspendeu os controles de fronteiras entre determinados países e criava uma política comum de fronteiras externas. Quase todos os países da União Européia estão dentro desse acordo, embora ele não signifique uma política externa comum a todos os países. A França, com medo, quis fortalecer as suas fronteiras. Os Estados Unidos fizeram o mesmo após o 11 de setembro, não necessariamente com sucesso.

E afinal de contas, o que é uma fronteira entre dois países? Quem a determinou? Em que situação ela é verdadeira ou imaginária? Na Croácia, a Dalmácia é um pedaço italiano que se tornou croata em definitivo após o fim da 2.ª Guerra. Ao longo das fronteiras européias, há uma série de cidades que foram divididas ao meio entre dois países, criando assim uma terceira entidade municipal, acima da divisão terrestre. Pero Juan Caballero e Ponta Porã não têm um rio a separá-las, onde começam o Brasil e o Paraguai?

A primeira parte de A missão das fronteiras, último lançamento de Gilles Lapouge no Brasil, ilustra bem a situação. Uma missão do exército português colonial deve colocar um marco na fronteira entre Brasil e Peru, uma pedra de três toneladas de calcário branco extraída diretamente de Portugal, no meio da Floresta Amazônica. A missão enfrenta um inimigo ferocíssimo, que só recentemente o homem vem conseguindo dominar, que é a Floresta Amazônica. A expedição perde seus líderes ao longo do caminho, vitimados que são pela floresta, mas não desiste de seu intento de chegar à fronteira. Mas, no meio da Floresta Amazônica, sem uma bússola que funcione, sem mapas do céu, sem mapas da terra, pois tudo ali era desconhecido, importa de verdade onde será colocado o marco, isso ali por meados do século 18? Em qualquer lugar que ele fosse colocado, seria um marco para ninguém. Os macacos não o entenderiam, as onças tampouco, e ninguém voltaria ali para certificar-se de que o Brasil acabava (ou começava) e o Peru começava (ou acabava) ali.

Lapouge nos apresenta, nessa primeira parte, três personagens que mostram que as fronteiras são criadas por burocratas para serem rompidas pela vida real: Melquior Gralheta, subtenente do exército português, mestiço nascido no Brasil e que leva a cabo a missão a despeito da morte de seus superiores; Joachim De Styjl, cosmógrafo e geógrafo holandês com descendência portuguesa, encarregado de achar o ponto exato da fronteira entre o Brasil e Peru, e que no fim das contas se convence de que dá no mesmo; e Abdullah Nawaz, historiador português de origens mouras, encarregado de narrar a saga da demarcação dos limites do grande e vasto império português naquelas paragens. Esses três personagens mostrarão ao leitor que as fronteiras são imaginárias, pois os homens não as enxergam.

Da selva amazônica, os personagens voltam a uma São Luís do Maranhão abandonada pelos poderes religiosos da época e entregue (desde então?) ao léu, sofrendo a decadência de uma agonia que joga a cidade e todos os seus habitantes em uma vala comum de ruindades: políticos desinteressados da coisa pública e padres devassos. Nesse caso, Lapouge conta que as fronteiras, os limites do homem entre o que é certo e incerto modificam-se rapidamente e de acordo com os ventos de quem está no poder. O que hoje é permitido pela lei pode ser proibido amanhã, com direito a prisão. As coisas em São Luís só pioram com a chegada de um novo bispo, que encarna a bandeira da moralidade e enfrenta a devassidão, desafiando inclusive o poder do governo do Grão-Pará. Certo de que o poder espiritual é superior, Monsenhor Timóteo do Sacramento manda todos os religiosos da cidade se enfiar terra abaixo numa rede de túneis construída muito tempo antes por fugitivos de outras rebeliões, e ali construir uma cidade divina. Quer melhor contra-senso que construir uma cidade divina, uma cidade dos céus, nos subterrâneos de outra? O bispo afirma que o inferno está na superfície, e que o céu está enterrado. Por uma série de contrapontos, vemos que todas as posições podem se inverter, e que a fronteira está dentro das pessoas.

Por fim, o trio, cansado das coisas deste Pindorama, resolve voltar a uma das fronteiras originais do Brasil, a África. E não é assim que pensam os descendentes de outras nações? Um descendente de italianos no Brasil pensa em dois países, pensa em dois limites territoriais diferentes. Assim, Gralheta, descendente de negros, pensa na volta à Mãe África constantemente, e um dia concretiza seu sonho, ainda que não saiba o porquê. E convence De Styjl e Nawaz a embarcar nessa viagem.

Dessa vez, o grupo, acrescido de Glória, a prostituta por quem Gralheta se apaixona, e de Dom Gonçalves, um padre já meio caduco que adota Gralheta, parte em busca de um porto seguro além das fronteiras, onde os negros que os acompanham na viagem não sejam incomodados por traficantes de escravos e possam reconstruir sua vida. Sem saber para onde ir, Dom Gonçalves, também mestiço, sugere que todos tenham como rumo Yamurrassê, cidade talvez verdadeira talvez inventada, de onde teria vindo o trisavô do padre. Eles acham uma cidade abandonada e lá fundam a sua Yamurrassê. Afinal, se a cidade existia apenas nas lembranças de Dom Gonçalves, importa realmente onde ela esteja?

Enquanto a primeira e a terceira partes são muito boas de se ler, o ritmo é um pouco prejudicado na segunda, durante a descrição da batalha de fé entre Timóteo do Sacramento e os poderes civis constituídos. Para quem gosta de filosofar sobre o céu e a terra e toda a vã sabedoria entre eles, é um prato cheio. Mas quem acredita que a primeira parte do livro dará o tom para todo o resto e, com ela, toda a discussão sobre o que é verdade e o que é imaginário na questão de fronteiras, ficará um pouco entediado.

No fim, Lapouge nos mostra que as fronteiras estão dentro de nós, e que as carregamos para onde formos, pouco importando os controles alfandegários. Me lembrei agora do barman do pub londrino que freqüentei durante minha estadia lá (felizmente, uma era “entrebombas” — entre as do IRA e a dos terroristas supostamente muçulmanos). Uma vez, encontrei em outro bar, e começamos a conversar. Eu disse que havia conhecido uns pubs bem bacanas do outro lado do Tâmisa, rio que divide Londres em duas. E ele me perguntou: “Mas existe um outro lado do rio?”. Se você acha que não há nunca um outro lado do rio, em A missão das fronteiras você tem uma dica do porquê.

A missão das fronteiras
Gilles Lapouge
Trad.: Ana Montóia e Ana Ban
Globo
376 págs.
Gilles Lapouge
É jornalista, escritor, e correspondente de O Estado de São Paulo em Paris. Entre suas obras premiadas estão Lês Folies Koenigsmark (Prêmio Goncourt de 1989) e Le bruit de la neige (Grande Prêmio de Ensaio da Sociedade de Letras de 1996). Em 2002, recebeu o Grande Prêmio de Literatura da Academia Francesa pelo conjunto de sua obra. A missão das fronteiras ganhou o prêmio Joseph Kessel de 2002, ano de seu lançamento na França.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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