Fraturas em jogo

Coletânea de ensaios discute o diálogo entre guerra e literatura ao longo da história
Homero, autor dos clássicos “Ilíada” e “Odisséia”
01/12/2011

As armas e os barões assinalados […] E também as memórias gloriosas são versos da emblemática epopéia de Camões. Um tempo em que falar das guerras, das vitórias e das conquistas significava falar de um povo e das suas glórias. Sem dúvida, a guerra é um dos temas mais recorrentes não só na literatura, mas nas manifestações artísticas em geral. Uma pergunta a ser feita: como a guerra ao longo dos tempos foi lida e ressemantizada nas obras deixadas pelos escritores? O perfil do grande herói identificado na Odisséia e na Ilíada, na figura de Ulisses, que à terra natal retorna depois de muitas aventuras, seduções e lutas, que perdurou no imaginário ocidental durante muitos séculos, não é mais possível. Já Dante no Canto XXVI do Inferno dá um desfecho diferente para o retorno a Ítaca, que é um não-retorno.

O Ulisses de nossos dias se voltasse, um retorno quase impossível, não encontraria a sua Penélope tecendo e destecendo a mítica peça no seu tear. O Ulisses contemporâneo é aquele cujo sentido não está no chronos. “Contemporâneo é o intempestivo”, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, que retoma essas palavras de Roland Barthes para pensar o significado dessa palavra. Diz ainda Agamben: “Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”.

Tempos e sobreposição de tempos requerem olhares e tratamentos diferentes e diversificados. O século 20 é o século da barbárie, de guerras declaradas (como no passado), mas ao aproximar-se do 21 essas guerras deixam de ser declaradas, deixam de ser uma (singular), são muitas e esparsas ao mesmo tempo. Por qual motivo o século 20 ficará marcado pelas batalhas, pelo silêncio, pelas mudanças de perspectivas, pelos desastres e, enfim, pelo trauma? Será que a plasticidade, a velocidade da vanguarda futurista, ao postular a guerra como higiene do mundo, tinha idéia de como seria esse século que estava “inaugurando”? O manifesto futurista de 1909, publicado no Le Figaro, que repercutiria logo em seguida tanto na União Soviética como na América Latina, trazia alguns pontos programáticos dentre os quais: “1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade; 7. Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a prostrar-se diante do homem; 9. Queremos glorificar a guerra — única higiene do mundo —, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas idéias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher; 10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de toda a natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda a vileza oportunista e utilitária”.

E o que dizer das palavras de Adorno: “depois de Auschwitz fazer poesia não é mais possível?”. E as experiências de muitos que tiveram no front e vivenciaram a experiência da guerra e da morte bem de perto, como o francês Maurice Blanchot? A era dos extremos, para recuperar a expressão de Eric Hobsbawm, alterou e deixou profundas marcas, cesuras, fraturas, lacerações incontornáveis em nossa sociedade. Como bem coloca Jaime Ginzburg, no primeiro texto, do volume Literatura e guerra: “Em época de catástrofes, o impacto traumático do processo histórico impregna a arte de modo latente, sendo necessário, através da interpretação, atribuir a ela uma força de contrariedade às inclinações violentas do período”.

É essa questão, além daquela temática, que une os doze ensaios desse livro, organizado pelos professores e pesquisadores Elcio Cornelsen e Tom Burns. Os textos, com enfoques e perspectivas diferentes, foram divididos em três grupos: Guerra, literatura e contexto histórico, que concentra mais textos, Guerra, literatura e política e Guerra, literatura e mito. Os autores, todos relacionados ao mundo universitário, são professores ou doutorandos, sendo a maioria ligada à UFMG.

Em Guerra, literatura e contexto histórico estão em foco: Guimarães Rosa, com três contos cujo pano de fundo é a Alemanha nazista; Ernst Jünger e Erich Maria Remarque, cujas obras confirmam a visão de que a escrita de quem participou da guerra (evento traumático) é sempre parcial e não uniforme; Apollinaire visto pelos poemas de guerra e pela correspondência durante a Primeira Guerra; Joseph Heller que retrata por meio da ficção o final da Segunda Guerra; Jean-Paul Sartre, figura polêmica do século 20, cujo engajamento, apesar de complexo, é defendido no ensaio. E por fim, um texto que propõe uma reflexão dos escritores de língua inglesa, vencedores do Prêmio Nobel, que pouco trataram dos momentos trágicos do século 20.

Guerra, literatura e política tem como foco a questão política como motivação para a narrativa literária. Entram em cena, nesse segundo momento do volume, o escritor albanês Ismail Kadaré, e nesse caso a questão da identidade nacional é uma discussão interessante; José Sanchis Sinisterra e Jorge Díaz, dois dramaturgos espanhóis que retratam e relêem a partir do hoje a Guerra Civil espanhola; Juan José Saer e Haroldo Conti são enfocados por meio das guerras de guerrilha latino-americanas.

Guerra, literatura e mito traz também uma variedade de abordagens e objetos de estudo, o Homero da Ilíada e a questão do herói anônimo de nossos dias; a constelação formada por Hesíodo, Ésquilo, Heródoto, Javier Cercas e George Orwell, com textos no limiar entre história-ficção; e, por fim, a obra clássica indiana Bhagavad-Gita lida por Gandhi e Sri Aurobindo.

Nessa combinação de textos literários, ordenada mas também caótica (o que é positivo), cada qual com suas especificidades, ressoa uma pergunta benjaminiana: “o que significa ganhar ou perder uma guerra?”. E poderíamos acrescentar como reagir ou agir num período de guerras silenciosas como o nosso presente?

Literatura e guerra
Org.: Elcio Cornelsen e Tom Burns
UFMG
340 págs.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

Rascunho