Fraturas e dobras

Cidades italianas e seus habitantes compõem os "microcosmos" de Magris
Claudio Magris, autor de “Microcosmos”
01/11/2011

Cenários e tempos anacrônicos que se cruzam e se intercalam numa escrita entre romance e ensaio. Essa poderia ser uma primeira visão de Microcosmos, do italiano Claudio Magris. Microcosmos (Prêmio Strega 1997) e Danúbio (também lançado no Brasil), como o leitor perceberá, apresentam muitos pontos em comum. No entanto, neste novo livro, a cidade natal do escritor italiano ganha corpo e espaço na narrativa inserida numa espécie de entre-lugar. Trieste e seus arredores, com cenários e paisagens características, personagens que vão e vem — alguns reais e outros fictícios —, são talvez o fulcro desse romance-ensaio. Magris propõe um passeio histórico e imaginário, dividido em nove partes, cada uma com as suas especificidades, por lugares simbólicos e outros mais anônimos, fraturas, microcosmos de um cotidiano.

Em Caffè San Marco, tem-se a descrição desse ponto de encontro tradicional e da pluralidade de seus personagens e freqüentadores, de transeuntes a literatos e estudantes.

O café é um burburinho de vozes, um coro desconexo e uniforme, a não ser por uma ou outra exclamação em uma mesa de enxadristas ou, à noite […]. Vozes erguem-se, confundem-se, apagam-se, ouvimo-las atrás de nós, rumo ao fundo da sala […]. As ondas sonoras se afastam como os círculos de fumaça, mas ainda estão em algum lugar.

A Valcellina é a região que ocupa todo o segundo capítulo. Aqui passam a ser ressaltados os detalhes geográficos e humanos que permeiam essa zona e delineiam a sua topografia. O moleiro personagem de O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg, é dessa zona e aparece citado em alguns momentos. “[…] o moleiro herético da vizinha Montereale, queimado na fogueira no século XVI, por conta de suas metáforas […]”. Em Lagunas, é a vez das várias localidades da Laguna de Grado — a lente do autor foca a história e algumas personalidades do lugar. O Nevoso, quarto capítulo, traz histórias e particularidades de uma outra zona, a do monte Nevoso. Em Colina, visita-se as cidadezinhas de Cambiano, Chieri, Pecetto Torinese e arredores. Atmosferas que ajudam a ver melhor as dobras dessa região, os inúmeros microcosmos que estão ali, contudo passam, muitas vezes, invisíveis e despercebidos. Uma relação complementar de legibilidade e ilegibilidade. Percurso de exploração do cotidiano, sem esquecer a história, que continua no capítulo seguinte, intitulado Absirtides, com a visita às ilhas croatas Cherso e Lussino. O próximo, Antholz, apresenta o sul do Tirolo. Jardim Público faz um movimento de retorno a Trieste e descreve uma história nesse espaço tão presente da cidade italiana de atmosfera mitteleuropea. A abóbada, o último capítulo, é um texto de cunho mais autobiográfico.

Uma narrativa do fragmento, ou dos fragmentos, que juntos dão forma a uma complexa trama, inserida na tradição literária e ensaística italiana. Ao lado de Magris, hoje, poderiam ser citados, nessa linha, Carlo Ginzburg e Roberto Calasso.

Uma galeria de personagens e paisagens mais e menos conhecidos. E a citação inicial de Jorge Luis Borges, nesse sentido, é muito elucidativa da proposta do microcosmo de Magris: “Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Com o decorrer dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, reinos, montanhas, baías, navios, ilhas, peixes, moradas, instrumentos, astros, cavalos e pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que aquele paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto”. Um labirinto formado de fragmentos dispersos, de dobras, de luz e sombra. A atenção está justamente nas vidas singulares, vidas “quaisquer” — e aqui seria possível lembrar o indivíduo qualquer definido por Giorgio Agamben em A Comunidade que vem —, lugares do homem da natureza, históricos ou de passagem, aos quais foram e são, a todo momento, impressos significados. De fato, a relação do indivíduo com os espaços que o circundam é latente nessas páginas.

O olhar de Claudio Magris sai em busca de rugas, fraturas, rasgos, rastros, vestígios que tratam e dão forma à história e à sua consciência, como ele mesmo afirma: “como dobras num rosto esculpido”. Um fluxo da memória não estática, uma memória que faz e se refaz a todo instante, mediante as fronteiras físicas e geográficas, reais e imaginárias. Eis aqui um outro tema do livro, além do fragmento, da memória, do romance-ensaio: a fronteira, vista também a partir de uma perspectiva simbólica. Uma topografia que é ainda aquela da alma, na qual as palavras podem ser vistas como uma forma de ordem mental (microcosmos). A narrativa do presente, dessa forma, está incrustada nas marcas e nos eventos históricos, porque os lugares fazem parte dela, e eles estão impregnados de sinais da história dos indivíduos que viveram e vivem. Escrever para Magris, e Microcosmos pode ser um exemplo, é desfazer, como a figura de Penélope, a trama imbricada da história.

Microcosmos, microviagens reais e fictícias, em espaços geográficos e metafóricos, deslocamentos externos e internos. Toda viagem pressupõe uma mudança, o ver o outro, outros cenários, não importa a duração, pode ser mais ou menos longo. O foco está no sair e no “retornar”. Aqui pode estar a filosofia de Claudio Magris: a viagem como o narrar, como o viver. Um mero acaso pode mudar o curso, o fluxo de uma trajetória. Aqui também está a fratura, a dobra, nesse imprevisto. Como afirma Claudio Magris logo nas primeiras páginas, uma advertência para seu leitor: “Escrever significa saber que não se está na Terra Prometida e que jamais se poderá chegar lá, mas ainda assim seguir o caminho com tenacidade em sua direção, através do deserto”. E ainda: “O mundo é uma cavidade incerta, na qual a escrita penetra perplexa e obstinada”.

Microcosmos
Claudio Magris
Trad.: Roberta Barni
Companhia das Letras
292 págs.
Claudio Magris
Nasceu em Trieste, em 1939. É professor de literatura alemã. É autor de vários livros de ensaios e romances, entre os quais Danúbio, Às cegas e O senhor vai entender. Escreve para o jornal Corriere della Sera e foi senador de 1994 a 1996.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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