Fraturas da Espanha

Personagem de "A praça do diamante" se confunde com a dor coletiva da Espanha em guerra, exausta e faminta
Mercè Rodoreda: personagem de profunda densidade psicológica
01/05/2004

Passando-se durante a Guerra Civil espanhola (1936-1939), A praça do diamante é um surpreendente romance graças à narrativa envolvente da catalã Mercè Rodoreda, que faz um colorido retrato daquele país ao relatar como seus habitantes foram afetados pelo conflito.

Traduzido direto do catalão, o romance é focado nas pessoas simples, sendo essa outra de suas virtudes, tendo em Colometa a personagem principal, que é dada a vários monólogos divertidos que cativam o leitor. Do dia-a-dia de Colometa, dos seus relacionamentos amorosos desastrados, do seu trabalho como balconista em uma loja de doces e suas posteriores virações para sobreviver com o casal de filhos acontecidos como fatos estranhos em sua existência, obtém-se o cotidiano dessa Espanha fraturada pela Guerra Civil.

A maestria narrativa de Rodoreda é envolvente e rapidamente faz com que se mergulhe na psicologia especial da personagem, que cativa o leitor com sua sensibilidade sempre à flor da pele. Ao mesmo tempo, abstrai-se disso sua opinião de morar numa cidade decorada pelo “senhor Gaudí”, que passa pela narrativa por ser conhecido de alguém que o levou ao hospital após ser atropelado por um bonde. Gaudí acaba por se tornar pivô do fim de um dos relacionamentos de Colometa, porque ela acha que suas obras são “ondas demais e pontas demais”, contrariando o namorado, que fica “como um fósforo, quando depois de aceso é soprado”.

Explica-se, por essa narrativa peculiar, o elogioso prólogo assinado por Gabriel García Márquez, que informa ser Rodoreda “a única escritora (ou o único escritor) que visitei sem conhecer, impulsionado por uma admiração irresistível”. É notável também o comentário de Márquez de que “tenho hoje uma lembrança meio nebulosa daquele estranho encontro, que certamente não foi uma das lembranças que ela levou para o túmulo, mas para mim foi a única vez que conversei com um criador literário que era uma cópia viva de seus personagens”.

A impressão duradoura que ficou em García Márquez não é fortuita, pois há mesmo uma força narrativa envolvente no dia-a-dia dos habitantes dessa Barcelona alegre da década de 1930 que se apresenta ao leitor e que se vai assistindo, com o desenrolar da narrativa, pouco a pouco se transformar na rudeza provocada pela Guerra, pela escassez de alimentos e pelas dificuldades que todos os espanhóis vão passando. A explicação disso está no achado da narrativa de Colometa, na primeira pessoa, que, tal como em fluxos de pensamento interior, dá um colorido especial a esse cotidiano à medida que vai contando como é sua vida sem encantos (em oposição à narrativa), morando com o pai, até ir a um baile na Praça do Diamante. Lá, conhece Quimet, um jovem impetuoso que se tomará seu marido e dará a ela dois filhos e, megalômano, passará a criar pombos a ponto de encher a casa com eles, pensando ficar rico com isso. Porém, com a guerra, tudo muda, ele se alista e apenas esporadicamente retorna, até desaparecer. Restam a Colometa os filhos e os pombos, que passam a ser um problema infernal a ser resolvido e que vai sendo narrado em detalhes peculiares — outro dos pontos altos do romance.

O sofrimento de Colometa se confunde com a dor coletiva da Espanha em guerra, exausta e faminta. Todos os sonhos se desintegram e nessas circunstâncias, com dois filhos, Colometa busca caminhos que vão nos mostrando outras particularidades dessa Espanha conflituosa, representada nas relações cotidianas desses personagens populares que, apesar da Guerra, têm que levar a vida. Ao lado deles, vivem outros mais abastados, mas que, por causa da Guerra, perdem a riqueza, porém não a pompa, transformada em uma encenação agônica pela romancista, que demonstra como todos estão subjugados pelas circunstâncias políticas, alheias a eles, parecendo não entender por que a Guerra ocorre, mas também não têm motivações para questionar sobre isso.

Mercè Rodoreda cria, com Colometa, uma personagem de profunda densidade psicológica que em muitos momentos nos faz suspeitar ser uma louca, suspeição, porém, logo turvada pela impressão de que é a sensibilidade aguda, transformada em linguagem eficiente no romance, que conduz a escrita e demonstra que é assim a vida. Se não é comum, entretanto, que todos percebam isso com a intensidade da personagem, o romance cumpre a função de ser um espelho perfeito para expor ao leitor que, de forma indiscutível, nesse aparentemente anódino cotidiano de todos nós há muito mais coisas acontecendo do que percebemos.

A praça do diamante
Mercè Rodoreda
Planeta
240 págs.
Ademir Demarchi
Rascunho