EPITÁFIO
Chegar já foi a partida
De onde estive até nascer.
Viver só custou a vida.
Não custa nada morrer
(Jorge Wanderley, Mania de agoras)
Do jeito delas — Vozes femininas de língua inglesa, organizado por Márcia Cavendish Wanderley, Carlos Eduardo Fialho e Sueli Cavendish, chama nossa atenção em relação a três aspectos importantes. Em sua primeira parte, apresenta seletos poemas de autoras consagradas. Na segunda, reúne ensaios a respeito das obras das autoras e do trabalho de tradução de Jorge Wanderley. Ou seja, em apenas um livro temos a oportunidade de ler, em inglês e em tradução portuguesa, belos poemas de grandes poetas, ensaios e reflexões sobre suas obras tão diversas e, ainda, penetrar no universo da tradução, seus caminhos e descaminhos, enquanto processo criativo do poeta e tradutor Jorge Wanderley. Portanto, estamos diante de uma obra que nos oferece produção poética, crítica ensaística e tradução de poesia, tanto dentro de uma perspectiva de fruição e prazer, quanto de reflexão e trabalho artístico.
A obra poética é uma deliciosa amostragem de um significativo legado da poesia em língua inglesa para a literatura ocidental, especialmente, do século 20. Pérolas de uma dúzia de poetas são apresentadas ao público leitor sem, aparentemente, grandes pretensões. São vozes femininas que se manifestam para falar de mundos muito peculiares e, ao mesmo tempo, muito amplos. A diversidade de estilos e abordagens temáticas impede qualquer categorização que possa unificá-las em rótulos ou linhas de força. Como Márcia Wanderley sinaliza, o que há em comum entre esses poema é o terem sido traduzidos por Jorge Wanderley. Este já as havia incluído em outras publicações, junto a outros poetas, nos livros 22 poetas ingleses (1993) e Antologia da nova poesia norte-americana (1992), editados pela Civilização Brasileira. Isso nos indica tratar-se, aqui, de uma reapresentação sob novo invólucro.
O ensaio de Márcia Wanderley, Uma estranha cumplicidade, tem como foco a leitura das obras de Silvia Plath (1933-1963), de Anne Sexton (1928-1974), de Emily Dickinson (1830-1886), de Hilda Doolitte (1886-1961) e de Marianne Moore (1887-1972). Comenta Márcia: “Muito mais que as relações entre os gêneros, as relações entre a vida e a morte estiveram no âmago das preocupações de algumas das poetas inglesas e americanas” traduzidas na obra. A maneira como essa relação de vida e morte se constrói no texto poético insinua-se, muitas vezes, por imagens surpreendentes. Em Colher amoras, de Silvia Path, por exemplo, no corpo do texto, o corpo da mulher que colhe as amoras estabelece uma estranha cumplicidade com a materialidade das frutas que lhe chegam às mãos. “De ébano nas sebes, gordas/ De sumo azul-vermelho. O sumo esbanjam entre meus dedos./ Eu não pedira esta fraternidade de sangue: — elas na certa me amam.” O sumo azul-vermelho repleto de vida sugere o sangue que, como signo de morte, esbanjam entre os dedos.
Militantes
Carlos Eduardo Fialho, em Vozes femininas: quatro momentos, aborda aspectos da poesia de Denise Levertov (1923-1997), de Luoise Bogan (1897-1970), de Elizabeth Bishop (1911-1979) e de Edna St. Vincent Millay (1892-1950). Analisa a obra das poetas ligadas cada uma a um momento específico do universo histórico e literário. Tenta, “como um aventureiro na busca do tesouro”, encontrar através de suas pesquisas elementos que apontem o grandioso na poética dessas personalidades, militantes de causas políticas, feministas e defensoras da liberdade sexual. Descobre que “eram geniais pelo que conseguiam fazer com a simplicidade da vida, com o cotidiano destituído de glamour, com os amores perdidos, frustrados e sofridos” como os da maioria das pessoas comuns. No poema The fish, de Elizabeth Bishop, por exemplo, o crítico considera que “a natureza e a paisagem se humanizam para, em seguida, expor elementos poéticos menos perceptíveis. “Eu fisguei um peixe enorme/ e o mantive ao lado do barco/…/ Ele não lutou./ …Olhei dentro de seus olhos/ que eram muito maiores que o meu/… Seu olhar se desviou um pouco não o bastante/ para devolver o meu./ Eu olhei e olhei/ era o arco-íris agora, era o arco-íris agora./ E eu deixei o peixe ir embora.”
Em Lamento sem música, de Edna St. Vicent Millay, a nostalgia, dor da perda, manifesta-se na simplicidade de uma dor particular e ao mesmo tempo milenar de amores perdidos.
Não estou conformada com o encerramento na terra de corações apaixonados.
…
O fragmento do que você soube, do que você sentiu:
uma fórmula, uma frase, ficam: mas o melhor se perdeu.
…
A resposta arguta, o olhar honesto, o amor, o riso perfeito
— Perdidos. Foram alimentar as rosas. Elegante, ondulado, se descerra…
Eu sei. Mas não aceito. E não estou conformada.
E Sueli Cavensdish, em A inflexão modernista e pós, discute a poética de Edith Sitwell (1887-1964), de Patrícia Hooper (1941) e de Elinor Wylie (1885-1928). Trata de destacar o papel que as escritoras desempenham no ambiente político cultural de sua época, sua relação com seus pares e importantes estudiosos da literatura. Neste sentido, sistematiza do ponto de vista panorâmico uma leitura rica tanto em dados de conteúdos históricos e contextuais quanto na discussão do fazer poético propriamente dito das autoras. Destaca como traço distintivo da poesia de Edith Sitwell uma extraordinária consciência de ritmo: “Ama-me o coração por uma hora, mas meu osso por um dia…/ O esqueleto pelo menos sorri, pois tem um amanhã:/ …// Essa foi a canção que eu ouvi; mas o osso cala/ Quem sabe se o som era o da luz morta chamando,/ ou se era de César rolando sobre seu coração — aquela pedra —/ ou se era o peso de Atlas caindo?”. A questão da musicalidade não é tratada apenas como técnica literária, é transformada em tema, problema para discussão.
No primeiro ensaio, a análise crítica sobre as cinco poetas enfatiza a predominância temática que problematiza a relação entre a vida e morte. A criação estética e suas dificuldades, imbricadas na busca de sentidos para a vida e na falta de sentidos para a morte, permeia a poesia aqui discutida. O ponto de vista feminino manifesta-se sob o olhar de sujeitos líricos muitas vezes confundidos com suas autoras. Uma leitura impressionista perfeitamente compreensível, tanto pela avalanche de acontecimentos trágicos que envolveram algumas delas em sua trajetória pessoal quanto por suas escolhas estéticas, temáticas ou formais. A banalidade da vida cotidiana, a natureza física e os arquétipos mitológicos da feminilidade tratados como temas, problemas e objetos de criação e a escolha preferencial pela interlocução com um outro, através do tom confessional, são algumas das marcas da dicção dessas poéticas.
Márcia amplia o leque da crítica para várias esferas. Citando L. M. Rosenthal, situa Silvia Path “na vertente poética marginal americana dos anos que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial”. Isto poderia ser discutido na obra de outras poetas que, “lutando contra a neutralidade imanente da voz poética dominante (Eliot e Pound), tentavam produzir poesia tomando como matéria-prima o húmus do momento histórico vivido e os dramas de suas próprias vidas”. Portanto, tanto as guerras da primeira metade do século quanto a opressão da condição feminina desse momento histórico contribuem para poéticas “conturbadas” como uma “epidemia tanática que dormia no fundo da cultura da geração anglo-saxã pós-Segunda Guerra Mundial” (Andrés Hoyos). Essa epidemia de domínio de Tanatos conduzia a exacerbação da morte sobre a vida como ameaça permanente em seu poder destrutivo, não só na literatura, mas em outros campos da intelectualidade. Em O mal-estar na civilização, por exemplo, Freud evoca a perplexidade desse momento: “Agora só nos resta esperar que o eterno Eros desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?”.
Dramas
Observa-se que os fatos dramáticos que permearam essas vidas, como os suicídios de Silvia Path e Anne Sexton e a reclusão voluntária de Emily Dickinson, foram inevitavelmente impactantes na leitura de seus poemas. Os acontecimentos históricos mundiais e suas conseqüências no imaginário artístico e feminino, em especial, trouxeram suas influências. Entretanto, isso não deve minimizar outros aspectos de relevância. Ou seja, não podemos deixar de considerar a produção de poemas, assim como sua tradução, uma atividade poética, que segundo Octavio Paz “nasce do desespero diante da impotência da palavra e finaliza com o reconhecimento da onipotência do silêncio”. Ou seja, paradoxalmente, esta linguagem se constitui a partir da impotência da palavra, em tensão com a onipotência do silêncio, busca inútil e obsessiva pela expressão que se insinua, mas não cumpre satisfatoriamente a comunicabilidade pretendida.
Ana Cristina César, poeta brasileira, tradutora de algumas dessas autoras, identificada com elas na vida, na morte e na criação artística, compreendia bem a natureza própria da literatura. “A subjetividade, o íntimo, não se coloca na literatura… Eu queria me comunicar. Eu queria jogar minha intimidade, mas ela foge eternamente. E tem um ponto de fuga… ela escapa”. É essa relação, esse jogo entre o desejo de dizer e essa coisa indizível que escapa que vai constituir a matéria-prima da criação poética e o desafio de recriação da tradução para outro código lingüístico. Ser sujeito do seu próprio discurso, meta dessas vozes femininas, é um desejo que esbarra com a própria natureza da linguagem. Neste sentido, Carlos Lima, poeta e também tradutor, em texto crítico da contracapa deste livro chama a atenção para o fato: “…estamos no campo da fala e da linguagem e, neste território, a poesia é uma cartografia do sensível nos seus limites”.
Por fim, é bom aproveitar o espaço para a aproximação desse limite de uma cartografia afetiva que me diz respeito muito de perto, já que neste sentido, acredito que a poesia, a tradução e a crítica estabelecem entre si certa “fraternidade de sangue”, como diria Path, com todos os seus encantos e perigos. Quero aproveitar o espaço para render uma singela homenagem a Jorge Wanderley. Lembro com carinho dos primeiros ensinamentos do mestre, no botequim da esquina da UERJ, um acolhedor pé-sujo que chamávamos de “escritório”. Lá, esticávamos as atividades da Oficina Literária Mário Faustino, que ele coordenava com Carlos Lima, ambos os professores que reuniam alunos, poetas experientes ou não, para a prática e a teoria da arte. Entre um copo de cerveja, um fragmento de poema, letras de músicas, piadas e trivialidades, ouvíamos histórias incríveis. Uma delas nos dizia como o neurocirurgião interrompeu a carreira brilhante para se dedicar à literatura. Um enfarto durante uma cirurgia, concluída com sucesso, foi decisiva para mudar os rumos de sua história. O coração que falhara era o mesmo que poetizava o dia-a-dia, que, às vezes, se fechava birrento, com intransigente rigor, que brindava a vida presente, com “manias de agora” e que, por fim, o levou. Afinal, “viver só custou a vida/ não custa nada morrer”.