Fragmentos de um desabafo

Norueguesa Monica Isakstuen demonstra maestria técnica no romance "Raiva", que aborda os sentimentos de uma mãe de maneira honesta e corajosa
Monica Isakstuen, autora de “Raiva”
01/01/2022

Em 2014, a chilena Lina Meruane lançou Contra os filhos, uma espécie de manifesto raivoso contra a maternidade. É claro que a autora relativiza vários pontos — e de maneira nenhuma se põe contra filhos ou a existência de crianças no mundo de uma maneira geral —, mas seu argumento central é em prol da liberdade de escolha feminina e o respeito a essa escolha. Mais do que isso: ela reage com uma certa raiva contra o discurso dominante sobre a maternidade e sobre a centralidade na figura de filhos em várias construções sociais.

Uma das coisas que mais me marcaram durante a leitura foi justamente perceber o sentimento de raiva que fica evidente nas frases, nos argumentos e no tom um tanto irônico do texto. E um sentimento que se constrói principalmente a partir de um cansaço e um desgaste crescente na relação da autora, mulher sem filhos, com um mundo que vê nos filhos a função da mulher.

O livro que resenho aqui, Raiva, se aproxima em partes do texto de Meruane — ao menos em seu sentimento de raiva, já presente no título. A questão é que a narrativa da norueguesa Monica Isakstuen dá voz a uma mãe de três filhos.

Esse não é o tipo de livro que tem um enredo propriamente dito — é um desabafo, sobretudo. É uma sequência de narrativas curtas de episódios na vida de uma mãe, intercalados com os sentimentos e angústias que estão presentes em sua existência diariamente. Eu diria que o livro funciona como a descrição de um cenário emocional. É um daqueles textos bem redondinhos, em que é difícil separar a narradora da personagem e assim por diante. Mas vamos lá.

Coragem e sinceridade
O livro começa com um episódio relativamente banal em um supermercado: a narradora tenta se mostrar como uma personagem relativamente calma e perplexa com a facilidade com a qual outras pessoas se estressam e saem do controle na fila de um mercado cheio.

No primeiro parágrafo, a narradora em primeira pessoa se retrata como a cara da plenitude. Mas o comentário seguinte já problematiza isso: “Suponha que eu estivesse errada. Imagine se eu estivesse no lugar dela. Imagine se lá dentro as pessoas perceberam outra coisa, pense na cena tendo múltiplas interpretações, imagine se eu fosse como ela disse”, admite a narradora.

E é assim que se constrói o tom do texto: uma narradora nem sempre sincera consigo mesma em busca de entender e descrever seu próprio sentimento de raiva. Se esquivando em alguns momentos, sendo mais aberta eventualmente, percebendo a si mesma pelo olhar dos outros — e chegando em um texto sincero e corajoso sobre a raiva existente na relação entre uma mãe e seus filhos.

O desabafo é construído pela costura de pequenos trechos, que intercalam os relatos de situações, acontecimentos e eventos (como a do mercado) com reflexões mais específicas ou até bem abstratas. Estes trechos trazem a busca da própria narradora pelo seu vocabulário, em busca de construir uma narrativa que explique por que sente tanta raiva — e de fundo, a pergunta tem um tom de expectativa versus realidade. Afinal, por que se sente assim quando a expectativa e os discursos dominantes dizem que a maternidade é uma das maiores alegrias da vida? Que tipo de mãe ela é se sente tanta raiva dos pequenos acontecimentos cotidianos?

É claro que muitas vezes esse discurso está centrado naquele momento quase transcendental para as pessoas que tiveram um filho — o parto. Mas a narradora não está pensando nisso. Está pensando no dia a dia, no cotidiano massacrante de uma mãe de três crianças, que toma a forma de uma eterna lista de coisas para se fazer. E esse é um aspecto muito bem-construído do texto: a raiva não deriva de um momento apoteótico, assim como um momento incrível não apaga o resto. A vida, e o texto de Isakstuen, é construída do acúmulo das pequenas coisas do cotidiano, e a raiva explode quando a filha derruba o leite na mesa ou qualquer outro episódio tão pequeno quanto.

Voz da narradora
Outro aspecto muito bem-construído do livro é a voz da narradora. Pouco interessada em admitir sua raiva e em negação, para nós e para si mesma, deixa transparecer já muito cedo o sentimento de culpa atrelado à raiva que sente da maternidade. Esses desvios — e os momentos em que nos damos conta deles — são feitos principalmente por duas estratégias: a repetição de uma mesma história com alterações e o contato com outras personagens, colocando a própria narradora em perspectiva.

Vamos falar primeiro sobre as repetições com mudanças. Algumas alterações são mais substanciais, mas em geral é apenas o acréscimo de um determinado detalhe que já muda significativamente o ocorrido e nos mostra o quando ela não estava deixando transparecer antes. Isso ocorre, por exemplo, em uma situação em que machuca um dos filhos, um pouco por descuido, um pouco por negligência, um pouco por violência. Se da primeira vez que o episódio é narrado ele parece ter sido um completo acidente (o que não deixa de ter uma parcela de verdade) e em negativa (“não esmaguei os dedos dele na porta, estão inteiros”), nas próximas vezes ele recebe outros contornos e detalhes até ser apresentado como uma situação pela qual ela assume toda a culpa, o que vai para o pólo extremo.

A outra estratégia usada por Isakstuen é mostrar o quanto a narradora está em negação pela comparação de suas atitudes com a reação de outras personagens, ou ainda colocar as informações na voz dos outros. É nesse contato com o marido, com o vizinho, com a pessoa na fila do mercado ou com o terapeuta que muitas de suas ações são relativizadas para nós, como leitores, e para ela mesma. Fica evidente, por exemplo, quando ela é abordada por um vizinho preocupado, o que nos revela também como a situação é vista de fora.

O fato de a autora intercalar momentos mais narrativos com as reflexões, sem nenhuma ordem cronológica evidente, faz com que não tenhamos acesso rápido e seguro a informações factuais da vida da narradora. Isso só chega em partes e de maneira difusa, o que acrescenta ao clima de indefinição da vida da narradora e a falta de clareza em relação aos seus próprios sentimentos.

O que sabemos, porém, é que a filha mais velha, de oito anos, vem de um relacionamento anterior. Depois de achar que não teria mais filhos, se apaixona e engravida novamente, desta vez de gêmeos (que têm quatro anos no presente da narrativa).

Em outro ponto alto da construção da narrativa, não se sabe com clareza o status atual do relacionamento — afinal, apesar de uma separação não ser mencionada explicitamente no texto, a ausência da figura paterna é sentida no texto e mais evidente conforme nos aproximamos do momento atual.

Ligando tudo isso, Isakstuen se mostra como uma grande autora na construção deste desabafo da maternidade. Ligando com maestria a forma e o conteúdo, apresenta uma mulher que se descontrola em sua maternidade e acumula em si vários sentimentos de culpa. De já ter feito um aborto quando era mais nova. De ter tido gêmeos que prejudicaram a vida tão tranquila de sua primogênita, a obrigando a lidar com uma nova família. De perder a paciência em episódios pequenos do dia a dia. A culpa de ter machucado um dos filhos em um acidente. De nem sempre tratá-los com o amor que gostaria de sentir com mais frequência. Afinal, a própria narradora afirma: “Ninguém se pergunta como você vai conseguir amar tanta gente”.

Raiva
Monica Isakstuen
Trad.: Leonardo Pinto Silva
Rua do Sabão
162 págs.
Monica Isakstuen
Nasceu em 1976, em Fredrikstad, na Noruega. Estreou na literatura em 2008. De lá para cá escreveu romances, livros de poesia e uma peça de teatro. Raiva é seu primeiro romance publicado no Brasil.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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