Frágil relação

Narradora pouco verossímil, cacofonias e falhas narrativas são graves problemas de “Meu marido”, de Livia Garcia-Roza
Livia Garcia-Roza: permanente e incômoda sensação de irrealidade.
01/02/2007

A novela de Livia Garcia-Roza, Meu marido, é uma descrição iluminadora do universo pequeno-burguês brasileiro, no que ele tem de mais prosaico e, às vezes, mesquinho. Eduardo, o marido, torcedor fanático do Botafogo, sonhava ser pianista de boate, mas formou-se em direito e trabalha como delegado de polícia; sua esposa, Bela, professora de inglês sem curso universitário, vinda de uma cidadezinha perdida no mapa, nasceu naquela típica família do interior, cujos interesses se resumem às mazelas do dia-a-dia, a diferentes formas de religiosidade, ao moralismo exacerbado e aos mexericos; o filho, Raphael, no início da história ainda um bebê, dá sinais de que seguirá os passos de Eduardo. Vivem no Rio de Janeiro, onde o casal se conheceu, durante a estada de Bela na residência de uma prima.

Graças ao casamento, Bela ascende socialmente, e uma das melhores cenas do livro apresenta um pouco do meio em que ela nasceu. Durante a festa do primeiro aniversário de Raphael, sua irmã, Luli, dá uma amostra da vulgaridade que, se não é característica do ambiente familiar, revela do que Belmira (o verdadeiro nome de Bela) se livrou:

Enquanto isso, Luli, sentada perto das minhas colegas, contava que, lá onde morava, ela fazia xixi em pé. Levantou-se para fazer a exibição. Difícil era se sacudir depois, disse. Mamãe dana a falar que eu sou cismada de não ter peru, vê se pode! Luli terminou de falar rindo. As moças riram […].

Saliente-se também a construção do personagem Eduardo: o perfeito machista, imbuído de um rude senso de superioridade em relação às mulheres, que ele transveste, em determinados momentos, de certo paternalismo. É a figura acabada da estupidez, além de mentiroso, alcoólatra, sarcástico e enrolador. Um canalha, em suma, mas imaturo, ansioso, com profundas inseguranças, provavelmente nascidas de um complexo de Édipo mal resolvido, se levarmos em conta as pistas que a narração nos oferece, nas raras vezes que Eduardo verbaliza as lembranças guardadas da relação com sua mãe.

A autora consegue descrever, de maneira penetrante em alguns momentos, a voragem na qual essa família submerge, tragada pelo ritmo alucinador da vida de Eduardo e de suas radicais variações de temperamento. Em sua constante aflição, uma agonia para a qual a novela não nos oferece justificativas claras, ele comanda a jornada de altos e baixos que não só desorienta a vida familiar, mas o conduzirá à morte.

Narrador e personagem
Quem narra a história é Bela. Ela volta seu olhar para o passado — não sabemos se próximo ou distante — e expõe a sucessão de fatos, o turbilhão de acontecimentos que não só testemunhou, mas viveu. E precisamente nesse ponto temos o problema crucial do livro, pois a narradora somente rememora os fatos, sem esmiuçar suas causas e, o mais grave, sem expressar qualquer juízo.

Ora, a imparcialidade de um narrador — neste caso extrema —, seu afastamento em relação ao drama, pode ser compreensível, mas não quando ele também é personagem da história. Se ele viveu o que está narrando e, principalmente, depois de viver, tomou a decisão de narrar, é por ter encontrado alguma relevância nos fatos, ou deseja acertar contas com o passado, ou sente a necessidade de, por meio da rememoração, compreender melhor aquele período de sua existência. Enfim, as razões podem ser as mais diversas.

No caso de Bela, contudo, ao não esboçar qualquer reflexão, ao se restringir a fazer um relatório dos poucos anos que seu casamento durou, a narradora compromete a verossimilhança da história. Afinal, se não há nada que a emocione ou que a abale, qual o motivo de narrar? Se Bela é, de fato, uma parva sem remédio, então resta apenas uma pergunta: alguém com tal personalidade se debruça sobre o passado, sente necessidade de narrá-lo e decide fazê-lo?

Trata-se, portanto, de um livro destituído de tensões, pois Belmira jamais reage, jamais expressa sua opinião, a não ser em momentos desimportantes, e, pior, nunca reflete sobre o que está narrando. Assim, Eduardo acerta ao definir sua mulher como “uma pessoa sem nuances”; mas, quando o livro termina, temos a impressão de que ele utilizou um eufemismo.

Sensação incômoda
A coerência da obra também é comprometida por alguns aspectos do enredo. No capítulo 2, por exemplo, Bela decide visitar seus pais. Parte, com o filho e a babá, em uma viagem de alguns dias, mas o leitor não recebe uma explicação para o fato de ela abandonar o emprego durante esse período. O motivo talvez seja o que Eduardo disse na noite anterior, “— Tive que comer o Ramón. Amanhã eu explico”, assunto sobre o qual Bela prefere não conversar, mas a ausência no trabalho segue sem esclarecimento. No início do mesmo capítulo, a narradora diz que, chegando ao aeroporto, alugará um carro; contudo, na página seguinte, descobrimos que, novamente sem qualquer justificativa, ela usa um táxi.

Eduardo, Bela, Raphael e a babá moram em um apartamento. No capítulo 6, quando os pais de Bela chegam, para passar alguns dias no Rio e festejar o aniversário do neto, o porteiro do edifício não realiza um dos gestos mais comuns de sua profissão: interfonar, perguntando se aquelas pessoas desconhecidas podem subir. Dessa forma, o capítulo começa com o pai de Bela batendo na porta do apartamento. E a única estranheza que Eduardo demonstra se refere à opção do sogro de não usar a campainha.

Ainda no capítulo 6, quando a mãe de Bela tropeça no degrau de um restaurante, levam-na para o pronto-socorro. Lá, ao invés do procedimento comum de emergência — ou seja, ser, primeiro, examinada por um médico de plantão —, ela segue direto para o setor de radiologia.

Além desses pormenores, que certamente passam despercebidos aos leitores menos atentos, as condições financeiras da família são desproporcionais em relação aos empregos de Eduardo e Bela: o apartamento tem quatro quartos; no que se refere aos empregados, além da babá há uma diarista, e ao chegar da maternidade, Belmira e o bebê têm o acompanhamento de uma enfermeira; mãe e filho fazem aulas de natação quase diárias; e, na festa de aniversário, há garçons servindo os convidados. É possível que Eduardo seja, entre tantos defeitos, um delegado corrupto, o que explicaria a origem do dinheiro que paga todos esses luxos, mas isso não consta da narrativa, gerando no leitor uma permanente e incômoda sensação de irrealidade.

Cacofonia
Página a página, uma cacofonia recorrente se intromete na leitura de Meu marido. Às vezes, a impressão é de que, por entre a tessitura do texto, descobrimos pequenos e impertinentes poemas de rimas pobres. Vejamos um trecho, retirado da página 120: “Eles então diziam que ficaríamos ricos de tanto que meu marido trabalhava. Muitas vezes, chorei de saudade do Eduardo, e quando eu lhe contava, ele dizia que não gostava de me ver fraquejando. Por que eu estaria tendo essa reação adversa?, perguntava”.

Exemplos como este podem ser encontrados a mãos-cheias: “Nessa noite, Eduardo demorava para chegar em casa; quando se atrasava, sempre telefonava” (p. 14); “[…] voltando-se na minha direção, apontou para a cabeça, dizendo que ela estava o cão. Desejei melhoras e saí depressa, de maiô novo, sandália havaiana e touca dentro do roupão” (p. 13); “[…] Culpado. Quando sozinho, percebe-se o quanto está decepcionado, mas aliviado” (p. 32); “[…] Sentava de pernas cruzadas no sofá e ficava imóvel ouvindo as histórias do Eduardo. Todas as vezes, ao saber que o pai vinha, saía correndo e voltava vestido com o uniforme do Botafogo, dos pés à cabeça, e o esperava cantando o hino do time. Assim que ele abria porta, se abraçava em suas pernas, dizendo que o pai estava preso, não podia mais sair de casa. Eduardo se inclinava e beijava a cabeça do filho” (p. 121); “[…] Eu continuava a vida de sempre, aulas e mais aulas. Dentro e fora d’água. A única novidade é que os trotes continuavam. Não sabia quem me ligava; desde a primeira chamada, a pessoa falava pouco e desligava” (p. 122); “[…] — Eduardo puxou minha cadeira com o pé, me agarrando, e não queria me largar. — Estou ficando sem ar… Diz, pra quando é o jantar?” (p. 176 e 177).

Em certos trechos, ocorre uma irritante alternância de rimas, como na página 29: “[…] Carregado. Por Dulce, por mim e pelo porteiro. A diarista ainda não tinha chegado, então eu precisei chamar o Josimar, porque você estava desacordado. E não consegui te tirar do lugar […]”; ou na página 37: “[…] Mamãe se despediu, dizendo que ligaria em outra hora, não sabia que a babá tinha dado uma saidinha e eu estava sozinha com Raphael”.

Mas os problemas se agravam na página 82: “— , bicho, ! — enxotou-o mamãe com um jornal; voltando-se para Luli, perguntou: — Por que está tão longínqua, menina? — e se abanou com o jornal que usara para enxotar o cachorro”. “Xo”, “cho”, “al” e “ou” alternam-se, formando ecos desagradáveis. E temos a expressão “longínqua”, que surge completamente fora do lugar, no discurso de uma mulher interiorana, cuja fala é permeada, quase sempre, de lugares-comuns. Aliás, uma outra expressão erudita já havia aparecido na voz da mãe de Bela, na página 21, quando ela afirma que a filha “engastalhou na terceira série e de lá não sai de jeito nenhum”.

A recorrência viciosa do eco poderia ser justificada pelas origens de Bela, uma pessoa simples, apesar dos anos vividos no Rio, mas a narrativa não nos oferece nenhum ponto no qual esse raciocínio encontre apoio. Ao contrário, Bela é professora de inglês, o que, no mínimo, deve obrigá-la a se comunicar sem a desagradável mania de fazer rimas.

Todas essas questões comprometem, sem dúvida, a leitura de Meu marido. Contudo — e também à parte o fato de Livia Garcia-Roza nos oferecer uma novela que, provavelmente, causará engulhos nas feministas —, a classe social que a autora pretende descrever parece, finalmente, distanciar-se dos inesquecíveis tipos de classe média criados por Nelson Rodrigues, a fim de ganhar características impregnadas de contemporaneidade.

Meu marido
Livia Garcia-Roza
Record
188 págs.
Livia Garcia-Roza
Nasceu no Rio de Janeiro. É psicanalista e estreou na ficção em 1995, com o romance Quarto de menina (Selo de Altamente Recomendável concedido pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil — FNLIJ). É também autora de Meus queridos estranhos, Cartão-postal, A palavra que veio do Sul, Cine Odeon e Solo feminino (estes dois últimos, finalistas do Prêmio Jabuti na categoria romance).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho