🔓 Forró espacial

Ficção científica de Ian Fraser traz universo construído sob elementos da cultura brasileira
Ian Fraser, autor de “A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê”
01/02/2023

O ano é 2577 e o universo, bem diferente do nosso. Com a invenção da propulsão Guineensis e do revolucionário óleo de dendê, as distâncias intergalácticas se tornaram pequenas e a capacidade de percorrer grandes trajetos em pouco tempo permitiu o estabelecimento de sociedades por toda a galáxia, compostas por diversas espécies sencientes.

Esse é o cenário de A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê. Começamos a história em Cabula XI, mais um planeta nessa imensidão. Ali mora Severino Olho de Dendê, personagem que dá nome ao livro, e seu parceiro, o carismático e falastrão Bonfim. Bonfim é um puiuiú, espécie de seres pequenos, sem olhos, que se ecolocalizam como morcegos. Eles são cobertos por uma vasta cabeleira e têm uma capacidade emocatalisadora: podem acessar e compartilhar emoções de outros seres.

Bonfim tem esse nome porque todos os fios de sua cabeleira são amarrados com as coloridas fitinhas do Senhor do Bonfim. Já Severino recebeu sua alcunha de Olho de Dendê depois de uma tragédia. Ao cair em uma emboscada em seu antigo serviço, Severino perdeu o olho e o braço esquerdos.

Durante uma operação de emergência, teve os membros danificados substituídos por implantes cibernéticos — mas o artefato tecnológico ocular tinha uma habilidade exclusiva: ao pingar umas gotas de sangue de uma pessoa recém-falecida no processador do braço e chupar raiz de jurema preta, Severino poderia vivenciar os últimos momentos da vítima.

Aproveitando as habilidades particulares de cada um, Bonfim e Severino resolveram abrir uma agência de investigação independente e ser cúmplices no aperto financeiro & nas bebedeiras noturnas.

No entanto, a aparição de um novo caso vira a vida deles de cabeça para baixo. O que parecia ser um simples assassinato se torna uma trama repleta de conspirações, envolvendo a Federação Setentrional (organização policial que administra as leis interespaciais), a ProPague (um monopólio intergaláctico) e as revolucionárias e independentes Paladinas do Sertão (grupo formado pelas guerreiras que lutaram na Guerra Vermelha, que não viram com bons olhos a criação da Federação Setentrional).

Ao longo da trajetória, a dupla de investigadores se junta a amores antigos, amizades esquecidas e forma uma equipe inesperada. Juntam-se a eles Antonieta Capitolina Macabéa, a única mulher híbrida de capivara com humano, Filomena, uma das Paladinas do Sertão, e Juá, uma robô defensora com a estética de uma carranca. Juntos, tentam desvendar os mistérios que compõem a tramoia toda enquanto são confrontados com inquietações de seus corações.

Space opera nordestina
Em uma entrevista ao iG Gente, Ian Fraser disse que gosta de resumir seu livro como: “É Star Wars abraçando O auto da Compadecida e os dois dançam forró”. Fraser usa elementos clássicos das novelas espaciais (space operas), como a pluralidade de espécies alienígenas, as relações amorosas e as aventuras e mistérios por toda a galáxia, em um universo repleto de elementos brasileiros. Como vemos em uma das cenas, é de fato, um forró espacial.

O humor também é forte na narrativa. Na abertura de cada capítulo, o narrador conversa com seus leitores por meio de um repente que faz brincadeiras e trocadilhos com os heróis, ironiza algumas artimanhas na construção da história e dá pistas sobre o mistério que os personagens investigam.

Além disso, Bonfim também protagoniza bons momentos de alívio cômico. Em um dos diálogos no começo do livro, por exemplo, Severino e seu parceiro discutem interpretações da música Beija-flor, de Timbalada. O puiuiú defende que a música é sobre um casal separado pela morte. O humano discorda.

— Oxi, oxi, oxi. “Beija-flor” alegre? Porra nenhuma.

— Bem, essa versão, nem tanto, nada fica alegre na voz de um zolariano, mas a música original é alegre, porra. É sobre o cara pensando na namorada. Voltando para ela.

— Sim, mas reencarnado.

— É o quê?! — Severino quase cuspiu a cerveja em sua boca, surpreso diante daquela afirmação.

— É. O homem morreu e vai reencarnar. Eu fui embora, meu amor chorou. Vou voltar.

— Maluco, de onde tu tirou isso?

Eu vou nos beijos de um beija-flor. No tic tic tac do meu coração, renascerá. Ele agora é um pássaro, porra, olhando a amada a distância.

— Isso é poesia. Não é para ser levado literalmente, Bonfim.

— Eu entendo de poesia, Olho de Dendê. Não sou tapado. Mas é óbvio que se trata de uma música sobre reencarnação, sobre começar de novo.

… e assim eles continuam por mais um tempo. Além do bom humor, outro ponto forte do livro é o projeto gráfico, que mistura elementos clássicos da ficção científica, da linguagem audiovisual e da estética do Movimento Armorial, idealizado por Ariano Suassuna. Inclusive, há um parêntese interessante.

Na trajetória do Movimento Armorial, a preocupação de Suassuna sempre foi a de preservar a cultura e as tradições locais populares do Nordeste (principalmente de Pernambuco). Era uma defesa da identidade local em contraposição à indústria cultural e aos produtos importados, sem contaminações.

No entanto, pensando no diálogo proposto dentro do livro, talvez A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê esteja mais próximo do que foi o Manguebeat, quase sucessor do Movimento Armorial. De maneira breve, podemos pensar em Chico Science & Nação Zumbi como pivôs dessa vanguarda contracultural e afirmar que suas intenções eram de valorizar as tradições por meio de intercâmbios com o produto importado — assim, Pernambuco faria parte do mundo e vice-versa. Por isso, a imagem da antena parabólica fincada na lama.

No Manguebeat, a pluralidade não negava o peso da ancestralidade, mas defendia a possibilidade de tratar a herança cultural com liberdade. Quer dizer… é improvável que Suassuna colocasse o oficórssimente, que flui tão bem na boca do puiuiú, em algum dos seus personagens. Durante o livro, Ian Fraser parece defender a mesma liberdade para trabalhar com repertório que herda de sua vida na Bahia.

O livro é repleto de diálogos e intertextualidades e está claro desde o próprio título do livro. De A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê, podemos destacar Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, e também A morte e a morte de Quincas Berro D’água, novela de Jorge Amado.

Antonieta Capitolina Macabéa, sendo uma capivara leitora, recita trechos de João Cabral de Melo Neto durante a narrativa junto com pedaços de Guimarães Rosa, Machado de Assis, Clarice Lispector, entre outros autores. A rádio Serendipidade também tem papel de destaque na narrativa. Gerenciada por uma inteligência artificial, a estação toca a música de acordo com o que parece mais propício para o momento — e as letras flutuam pela leitura como notas em uma partitura. Na maioria das vezes, elas ditam o tom e geram expectativas; mas, em outros momentos, atrapalham o fluxo da narrativa.

Porém, o mais interessante no trabalho desse repertório não é citação de outras obras cultural, mas na forma com que Ian Fraser constrói o passado daquele futuro. Nesse universo, as hegemonias são invertidas e os centros históricos são outros. A própria escolha do nome do planeta em referência ao conhecido bairro baiano, Cabula XI, em detrimento dos conhecidos deuses greco-romanos evidencia tal posição.

Conforme descobrimos as cronologias das regiões, descobrimos que a vitória das Paladinas do Sertão contra os Estados Confederados do Sul contou com a inspiração das táticas de Canudos. Estátuas de entidades religiosas não são judaico-cristãs, mas baseadas em religiões afro-brasileiras. Nas ruas, as figuras homenageadas não são bandeirantes e traficantes de escravos, mas as que lutaram pela liberdade.

Ian Fraser apresenta ao leitor não uma parabólica no mangue, mas uma fitinha do Senhor do Bonfim tremulando nas antenas de naves espaciais em uma trama que nos faz pensar que, quando se morre mais de uma vez, “nem mesmo a morte é ponto-final”.

A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê
Ian Fraser
Intrínseca
304 págs.
Ian Fraser
Nasceu em 1983, em Salvador (BA), e lá foi criado. Ao longo de sua carreira, escreveu os romances O sangue é agreste (2015), Noir carnavalesco (2020) e a saga de Araruama, o livro das sementes (2017) e o livro das raízes (2018). Escreveu as peças A máquina que dobra o nada (2015) e Ensaio para uma redenção (2021), contempladas com o Prêmio Braskem de Teatro. A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê (2022) é o seu mais recente romance.
Arthur Marchetto

É doutorando em Comunicação Social, com pesquisa sobre crítica literária na Universidade Metodista.

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