O prefácio do livro de poemas Andaimes sofre do mesmo mal do texto prefaciado: abusa do uso da língua estrangeira e de citações. Andaimes é incompreensível: poemas em espanhol, inglês, francês e em linguagem matemática. Apelei para a leitura do prefácio buscando alguma razão para escritos tão herméticos, mas encontrei apenas a análise da obra e a tentativa de firmar a grandeza que não se encontra no objeto artístico, senão na intenção do autor de explorar línguas e linguagens a partir de seu intelecto.
Nada contra o intelecto. Mas cadê a alma, o sentido da escrita, o sentido da leitura e do leitor? Na página 34, há o belíssimo poema do Wassily Chuck:
noite branca
a página em branco e o cansaço de todos os começos
e teces, não as letras
os vazios entre elas; não os sons
os silêncios das ondas quebrando no sono
silêncios entre ti e tua voz
mais que um fazer, um desfazer
as mãos tocam a transparência
o lado de lá das palavras, e vaza o signo
entre os dedos
a forma, apaga-a o vento
o que fica, a sombra no tempo das águas — o poema.
O prefaciador fala em “apropriações” referindo-se ao uso de textos de outros autores. Na página 70, eis que encontro alguma pista sobre o processo artístico do escritor (retirada de Alice no país das maravilhas): “Let’s hear it, said Humpty Dumpty, ‘I can explain all the poems that ever were invented — and a good many that haven’t been invented just yet’”.
O poeta é um inventor. Milton Torres ensaia, estuda inventos. Desnecessário justificar a apropriação. Apropriações e outros recursos de intertextualidade não são necessariamente processos mentais, nem precisam ser justificados, a não ser que o autor não se sinta à vontade para lidar com os elementos que lhe são disponibilizados pela poesia.
Luís Otávio Burnier afirmou, certa vez, num curso de teatro denominado “A linguagem do corpo”: arte é quando o artista, com o menor número possível de elementos, cria inusitados. O trabalho de Milton Torres, em Andaimes, segue o oposto: línguas, linguagens, elementos concretos e abstratos se fundem gerando poemas conceituais, imagéticos; metalinguagem, frases livres, insinuações, tudo pontuado por um formalismo exacerbado.
Para que e para quem?
Cito também uma professora da Unicamp que afirmou: o dadaísmo foi uma arte para poucos e bons; a propósito, a arte é para poucos e bons. Temos aí o elitismo e o preconceito esclarecidos. Arte para poucos. Para e de eruditos. É o que se vê em Andaimes: composição de textos da qual emana vaidade e presunção.
Há no prefácio do livro No fim das terras, de Milton Torres, escrito por Leopoldo Bernucci, uma passagem que ilustra bem o arsenal teórico que encampa a poesia do autor:
Seria possível auferir a qualidade estética de um poema tendo por base o seu grau de dificuldade? Seria correto assinalar o valor literário de uma produção poética tomando em consideração somente os seus aspectos intrinsecamente formais ou conceituais? E o que dizer da seleção do assunto empregado no poema? Poder-se-iam adotar critérios de qualidade para ele? Seria ainda válido apreciar a eficácia da realização poética, julgando-a absolutamente suficiente, na medida em que ela se vê informada só pela tradição literária? Não seria apropriado também considerar como êxito máximo de um poema aquele que, adicionalmente, possui um caráter metalingüístico? Tais perguntas requerem respostas complexas que no seu conjunto podem indicar um caminho, entre outros é claro, para se chegar ao resultado ideal do fazer poético.
Essa passagem, na verdade, é o início do prefácio. O prefaciador necessita de um arcabouço de argumentos e indagações para demonstrar que se está diante de uma grande poesia.
Uma grande poesia se faz não com palavras premeditadas e sim com palavras re-significadas. Segundo Manoel de Barros, “poesia não é para compreender, mas para incorporar”. Numa entrevista, ele explicou: “Porque é nos sentidos que a poesia tem fonte… Não há de ser com a razão, mas com a inocência animal que se enfrenta um poema. A lascívia é vermelha, o desejo arde, o perfume excita. Tem que se compreender isso? Ou apenas sentir? Poeta não é necessariamente um intelectual; mas é necessariamente um sensual. Pois não é ele quem diz eu-te-amo para todas as coisas? E esta desexplicação pode não fazer média com os estatísticos, mas faz com os tontos”.
Sou mais o poeta que desafia o espelho. E menos aquele que não vive sem o próprio reflexo.