François Bonin, estudante de medicina em Paris, não desconfiava de que seria preso em 4 de julho de 1749. Os policiais encarregados da missão o fizeram sem alarde e usando de um artifício, alegando que um marechal gostaria de conversar com ele sobre uma questão de honra. Bonin foi trancafiado na Bastilha e interrogado acerca de um poema. Não qualquer poema, mas sim uma ode que chamava o rei de “Monstro”. Nas três semanas seguintes, a polícia prendeu mais treze homens, todos eles acusados de divulgar poemas e canções contrários a Luís XV, fazendo o episódio ficar conhecido como o Caso dos Catorze. No curso da investigação, que acabou por produzir uma volumosa documentação, as autoridades descobrem um total de seis poemas sediciosos que haviam circulado em uma rede que envolvia estudantes, religiosos e escreventes de justiça. Em um deles, o soberano era censurado por dar mais atenção à sua amante Mme. de Pompadour — uma mulher de origem plebeia, do que ao povo:
Vi cair o cetro aos pés de Pompadour
(…)
Enquanto Luís dorme no seio da vergonha,
E de uma mulher indignamente enamorado,
Ele esquece em seus braços nossos prantos e nosso desprezo.
A partir deste episódio de repressão policial ao crime de lesa-majestade, o historiador norte-americano Robert Darnton empreende uma investigação paralela, digna de um detetive atento a todos os indícios. O que ele pesquisa e desvenda é a existência de uma rede bem maior do que o Caso dos Catorze, atravessando a sociedade francesa de alto a baixo. Segundo o diário de um nobre da época: “Canções, poemas, folhetos satíricos chovem contra a pessoa do rei”. Era um momento difícil para a monarquia francesa, depois de uma guerra dispendiosa e de uma paz vista como desonrosa, o rei criou um tributo excepcional que irmanava a nobreza e o povo no seu descontentamento. A arma de que dispunham era a mesma: a poesia, por isso tornada uma questão de polícia. Havia de tudo. Em um poema de aparência cortês, a favorita do rei era sutilmente difamada enquanto portadora de uma doença venérea a partir da metáfora acerca de “flores brancas”. No outro extremo, diatribes violentas como um poema em que ele é chamado de “Tirano incestuoso, traidor desumano e falsário”. Não falta até mesmo uma ameaça de regicídio:
Luís, deixa tua meretriz
Luís, nos dá pão
Luís, cuidado com tua vida.
A maior capacidade de difusão e penetração acontecia quando um poema destes era associado a uma música já bastante conhecida e começava a circular pelas ruas de Paris, incorporando outras críticas e significados:
À medida que a canção percorria seu circuito, os parisienses modificavam versos antigos e acrescentavam novos. Esse tipo de improvisação proporcionava um entretenimento popular em tavernas, bulevares e desembarcadouros, onde multidões se reuniam em torno de trovadores que tocavam rabeca ou realejo.
Alguns poemas tinham uma estrutura tão simples “que qualquer um podia encaixar um novo par de rimas à antiga melodia e transmiti-la a outras pessoas cantando-a ou escrevendo-a”. Havia canções adaptadas a partir de melodias de ópera, músicas natalinas e até de canções típicas de bebedeira, como “Bebamos, camaradas, bebamos”. Nesta, o refrão é preservado mas se inserem novos versos chamando a infeliz Mme. de Pompadour de “mamãe meretriz” e “tola desbocada”.
Mas o monarca e sua amante principal — pois ele também era acusado de “namorar” três irmãs, não eram os únicos a serem vilipendiados. Num dos poemas que se tornaram mais populares, ao som de uma canção com um refrão envolvente (Ah! aí está, ah! cá está!), a rainha é apresentada como uma fanática religiosa, o delfim como burro e obeso, o chanceler como senil, outros ministros como incompetentes e vários cortesãos como estúpidos e dissolutos.
Na visão de Darnton, alguns destes poemas tornavam-se verdadeiros “jornais cantados” com comentários sobre as questões do momento feitos de uma maneira atraente capaz de grande penetração. Esse tipo de “canção de circunstância”:
era um veículo maleável, que podia assimilar as preferências de grupos variados e expandir-se a fim de incluir tudo o que interessava ao público como um todo.
A principal descoberta deste livro que se lê como um romance policial é absolutamente surpreendente. Numa sociedade semianalfabeta como a França da metade do século 18, havia uma rede onde circulavam informações incessantemente, transmitidas por versos ou canções. Eventualmente fazia-se uso do suporte escrito, pois havia quem copiasse as canções em tiras de papel e até mesmo quem as anotasse e agrupasse, formando coleções intituladas Chansonniers e que ainda hoje estão disponíveis nos arquivos franceses. Uma delas, organizada por um ministro de Estado, o conde de Maurepas, tem mais de 40 volumes de poemas obscenos sobre a vida na corte de Luís XIV e Luís XV. O conde, que chegou a ser o braço direito de Luís XV, caiu em desgraça depois que começou a circular o poema que já mencionamos acerca das “flores brancas” de Mme. de Pompadour e que foi atribuído ao então ministro da Marinha e da Casa Real.
O caso de Maurepas ilustra duas coisas. Primeiro, a força política e a importância que era atribuída aos poemas e canções, levados a sério como uma questão de Estado. E também, como Darnton consegue mostrar, que muitas vezes não se originavam junto ao povo humilde e sim na própria corte, servindo às intrigas palacianas. O ideal era depois difundir aquilo junto à população até que o poema ou canção alcançasse o círculo do rei como se fosse uma “obra popular”. Pelo menos é o que diz um nobre da época:
Um cortesão pusilânime os adapta [os rumores infames] em dísticos rimados e, por meio de criados subalternos, os difunde em mercados e barraquinhas na rua. Dos mercados, passam para artesãos, que, por sua vez, os reenviam aos nobres que os compuseram e que, sem perder um minuto, partem para o Oeil-de-Boeuf [um local de reuniões no Palácio de Versailles] e sussurram uns para os outros num tom de rematada hipocrisia: “O senhor já leu isto? Estão aqui. Estão circulando no meio do povo em Paris”.
Quando os versos se encaixavam em canções populares, chamadas de vaudevilles, passavam a ser cantados “em toda a parte e por todo o tipo de gente”:
Os aristocratas cantavam na corte; os sofisticados, em salões; os ociosos, em cafés; os trabalhadores, em tavernas e guinguettes (locais populares para beber, situados fora dos limites da cidade); os soldados, nos quartéis; os mascates, nas ruas; as vendedoras de feira, em suas barracas; os estudantes, nas salas de aula; os cozinheiros, nas cozinhas; as babás, junto aos berços — Paris inteira muitas vezes desatava a cantar, e as canções registravam reações a episódios da época.
Mestre em seu ofício, Robert Darnton, depois de tudo, ainda oferece um brinde ao leitor. Identifica as melodias com que eram entoadas algumas das canções que incendiavam Paris na metade do século 18. O leitor pode escutá-las na voz de uma cantora parisiense de hoje, Hélène Delavault, no endereço eletrônico www.hup.harvard.edu/features/darpoe. Como ele próprio diz, isso é “fazer a história cantar”.