O fenômeno foi apontado por Silviano Santiago. Há um precioso cuidado com a linguagem nos textos dos autores contemporâneos, apesar das aberrações cometidas pela chamada literatura de periferia. Não é o fato de escrever sobre um ambiente em condições adversas que dá ao escritor o direito de macular de maneira atabalhoada a gramática. Uma leitura atenta de Vidas secas ensina que Graciliano Ramos não precisou empobrecer a língua para contar de uma cachorra.
Neste sentido ainda vale o alerta de José Américo de Almeida no prólogo de A bagaceira, publicado em 1929: “A Língua Nacional tem rr e ss finais… Deve ser utilizada sem os plebeísmos que lhe afeiam a formação. Brasileirismo não é corruptela nem solecismo. A plebe fala errado; mas escrever é disciplinar e construir…”
Voltando ao tema inicial, esta excelência de linguagem se mostra e se destaca no novo livro de Giselda Leirner, Naufrágios. Nos 14 contos há uma elaboração de frase cuidadosa, pensada para favorecer a mensagem e, o mais importante, privilegiar o ofício literário. A escritora não está interessada em apenas contar uma história, quer, além disso, fazer de seu texto uma obra de arte, e assim faz literatura.
Certamente este trabalho de carpintaria é o responsável por outro aspecto bem interessante do livro, o número de personagens escritores ou que deitam no papel suas angústias e apreensões. Giselda opta por dar voz às suas criaturas como um exercício de valorização da linguagem, também. Os homens e mulheres que permeiam os contos existem pelo fato de estarem numa narrativa, como narradores ou não, mas fundamentalmente como seres de papel e tinta. Este sentido de existência não deixa de ser uma sutil metaliteratura. Ou seja, os vários narradores do livro estão ali pela função que exercem, assim como o escritor real ganha importância e relevância pelo que produz, pelo que escreve e como escreve.
Daí se parte para uma outra valorização, a da cultura. Transpondo o debate para um universo ilimitado, é como se Giselda Leirner estivesse nos alertando para um quase adágio judaico: o único bem que definitivamente o homem não perde é o conhecimento. Em toda e qualquer situação em que ele se encontre, sobrevive sempre tudo aquilo que aprendeu. E o registro constante deste saber é também uma maneira de deixar claro que sua vida não foi vã, não foi apenas uma passagem a mais pela terra.
Aliás, a cultura judaica, mais que o judaísmo, tem uma forte presença nos contos. Giselda leva seus personagens a discutir desde as questões religiosas, o sentido de todos os rituais, até mesmo as dores e cicatrizes que sobreviveram ao holocausto promovido pelo nazismo. Outra vez, no entanto, entra em jogo o sentido de cada uma dessas ações. Os ritos, mesmo quando exercidos em língua estranha, aliviam as dores, e as perseguições históricas são lembradas como um ousado alerta para a capacidade do ódio e a necessidade da sobrevivência.
De certa forma é o apego a estas tradições que dá força aos personagens. Todos, de uma maneira ou outra, estão num momento de decadência, ou relatam um desses instantes. Pululam solidões, velhices, finitudes, fechamentos de círculos, mortes. Apesar disso, e aí voltamos à pujança da linguagem, não caminhamos em um terreno melancólico. A vivacidade das narrativas nos diz que há vida diante de tudo isso. Outra vez a importância da sobrevivência e da necessidade de enfrentar as dores.
Tradições
Finalmente chegamos ao último aspecto a destacar, o cosmopolitismo. Como os próprios judeus, os personagens vagam pelo mundo levando toda carga de suas tradições. Esta multiplicidade de cenários, no entanto, é mais sentida que propriamente descrita pela escritora. Aliás, pouco se vê de paisagem em seus contos, quase todos vivenciados em ambientes fechados. Parece interessar a Giselda o que o homem traz em si mesmo, indiferente ao espaço onde vive. Esta é uma curiosa e eficiente maneira de tentar desvendar o âmago de cada ser. É a vida que se vive que constrói o mundo, e não o contrário, nos dizem os textos.
A pressão e as autocobranças sofridas no processo de construção da vida são fortes e doloridas, pelo menos é o que mostra a escritora. Isso a faz levar suas criaturas até os limites da razão. Daí soam com naturalidade umas tantas perversidades, mais outras tantas situações absurdas. Interessante é observar que não se seguem tais caminhos com a pretensão do escândalo, do choque. Tudo aqui está tão impregnado de suavidades e verdades que a leitura remete o leitor para o prazer de um texto seguro e bem escrito.
E por falar nos sentimentos mais profundos do homem, Giselda Leirner, claro, passeia pelas várias formas da paixão. O curioso é o sentido de entrega de todos por aqui. Mesmo aqueles que desprezam, se afastam, fogem, parecem fazer pelo sentido da piedade. “Para ter compaixão é necessário um espaço de separação”, escreve Giselda, e esta metáfora da separação como uma atitude amorosa monta o arcabouço psicológico de seus personagens. Para eles a solidão é um momento de reflexão, um instante onde é possível olhar de frente todos os fantasmas e daí partir para a confecção do novo, da revolução íntima.
Privilegiando a linguagem e o sentido da existência, Giselda Leirner faz da reunião de contos Naufrágios um excelente exercício da literatura real, aquela feita para divertir e para desvendar um tanto da complexidade humana. A literatura de que precisamos, enfim.