Fora de ritmo

João Gabriel de Lima faz de seu Carnaval algo bem sem graça
João Gabriel de Lima: diálogos e referências ao cinema com pouco vigor.
01/04/2006

Foi só o tempo de arrumar um lugar decente, lá pela sétima, oitava fila da sala de cinema, bem no meio da tela, e sentar meio desengonçada, com um pacotão de pipoca em uma das mãos e a bolsa na outra, que veio a pergunta: “Como você acha que esse cara se chama?”
“Jeremias.”
“Por quê?”
“Porque tem cara de Jeremias. Parece um Jeremias, olha aí! É Jeremias demais!”
“Parece Olavo.”
“Jeremias!”
“O que o Jeremias faz?”
“É engenheiro florestal. E, à noite, faz curso de auxiliar de cozinha. É isso aí.”
“Impossível. Jeremias que é Jeremias é professor de matemática e patinador no gelo nas horas vagas.”
“Patinador no gelo? Aqui?”
“É. E dos bons.”

Todo mundo já fez isso. Já imaginou uma identidade, uma história, uma vida, para alguém que nunca viu antes. No cinema, no parque, na rua, no elevador… Diversão garantida. Um passatempo bacana. É o que Pedro, protagonista de Carnaval, do jornalista João Gabriel de Lima, faz enquanto toma conta de sua locadora de DVDs. Amante da sétima arte, o moço gasta as horas tentando montar filmes para a vida das pessoas que passam por ele. Nem sempre com sucesso. Mas o que vale é a tentativa.

Pedro é daqueles que assiste ao mesmo filme 15, 20 vezes. Que imagina o que faria para a cena ser melhor. O que faria se fosse o personagem, essas coisas. Tudo o que Tarantino deve ter feito, antes de virar um diretor de cinema de verdade… O bom disso é que quem imagina essas cenas para os outros pode imaginar para si mesmo. E aí não faltam os ingredientes de seu estilo de filme favorito: encontros e desencontros amorosos e diálogos divertidos para os fãs de comédias românticas; lutas marciais e bombas, para os fãs de ação; doenças incuráveis e lágrimas, para os que preferem dramas; paixão e belos cenários, para todos, provavelmente.

Em Carnaval, João Gabriel de Lima optou por deixar o leitor imaginar como o protagonista era, realmente. Em primeira pessoa, o livro conta a “saga” de Pedro, desde a saída de São Paulo, onde mora com a mulher — uma executiva —, até a chegada no Rio de Janeiro, onde encontraria a amante — uma chef de cozinha —, em plena Marquês de Sapucaí. No meio de tudo, alguns personagens secundários que o apresentam a um Rio de Janeiro mais tradicional, com samba de raiz, sambistas de terno impecável e português cheio de não-me-toques, blocos carnavalescos suarentos e com cheiro de cerveja, e muita purpurina. Nas margens, espaço para o cinema.

Lima escreveu sobre tudo o que gosta: cinema, carnaval, música, Rio de Janeiro, São Paulo. Mas há um perigo ao escrevermos sobre temas que nos são caros. Não temos a medida exata de autocrítica. Ou pecamos pelo excesso, ou pela falta. Carnaval peca pela falta. Os diálogos são fracos. As referências ao cinema são fracas. Para uma narrativa comparada, como está na orelha do livro, a uma mistura de Martin Scorsese e Borges, falta muito a ser feito. A certa altura, é inevitável imaginar: esse capítulo parece com algum filme… Poderia até ser uma forma de fazer o leitor pensar mais um pouco, para saber de onde mesmo o autor tirou aquela situação. Mas João Gabriel dá, ele mesmo, em um dos capítulos finais, a resposta. E aí, a graça — que já não era tanta — acaba.

Mas, se em vez de o leitor se preocupar com o cinema, procurar algo sobre a festa de Momo, aí pode encontrar alguma coisa interessante. Sambas antigos, descrições de fantasias, dicas de preparo para antes da festa, roteiro para a chegada na Marquês de Sapucaí… Coisas que eu, curitibana que sou, não saberia avaliar se estão na medida, em excesso ou em defasagem. Curitibanos, como todos sabem, normalmente não gostam de carnaval. Mas não gostar da festa não é o argumento para não gostar do livro. Carnaval, como literatura, é fraco. Falta vigor. Falta criatividade. Parece uma reprise. “Ah, é a mesma coisa em verde”, como diria a minha avó.

Mas é claro que há pontos favoráveis. E não se pode nunca esquecer de falar das coisas boas: a leitura é fácil e rápida. Há uma fluidez interessante entre as “cenas/capítulos”. Existem bons personagens e histórias paralelas suficientes para prender a atenção do leitor. E há uma tentativa louvável de fazer uma história labiríntica (taí a comparação com Borges?), diferente, cheia de idas e vindas. Mas é previsível, infelizmente. O pano de fundo — o carnaval carioca — usado para contar a história (real ou inventada, tanto faz) de Pedro ganha mais alegorias e adereços que o protagonista, em vários momentos. E é aí que o livro perde força. É como lembrarmos de um filme somente por sua fotografia ou sua música. A história, a vida dos personagens — que é o que importa na verdade, sejamos francos — fica em segundo plano. É mais ou menos como o filme Moulin Rouge, de Baz Luhrmann (que também fez o bonito Romeu e Julieta, com Di Caprio recitando Shakespeare). Fotografia lindíssima, músicas confusas (e forçadas, em vários momentos), interpretação fraca dos protagonistas… mas belas cenas de dança de personagens secundários. E a história de amor? Pois é… Ninguém lembra muito da história de amor.

Carnaval
João Gabriel de Lima
Objetiva
130 págs.
João Gabriel de Lima
Estreou na literatura em 2002, com O burlador de Sevilha, finalista do prêmio José Saramago daquele ano. Formado em música e jornalismo, vive atualmente no Rio de Janeiro, onde é repórter da sucursal da revista Veja.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho